sexta-feira, 28 de outubro de 2011

A boa-fé objetiva

A boa-fé pode ser compreendida por várias dimensões e finalidades jurídicas, destacando-se, basicamente, em duas vertentes: a feição subjetiva e a objetiva.

Em razão do fenômeno recente e ainda inacabado – o neoconstitucionalismo - a quase totalidade dos sistemas jurídicos caracteriza-se pela prevalência do elemento ético, leal e probo, assegurando o acolhimento do que é lícito e a repulsa ao ilícito. A boa-fé [01] é conceito moral que impõe conduta pautada na honestidade, na moralidade, na transparência, na cooperação, na confiança, na probidade, no intuito de não lesar, prejudicar e nem frustrar outrem.

Pode-se falar em boa-fé objetiva e subjetiva. Aquela, também chamada de boa-fé lealdade, resume-se no dever de lealdade dos homens, importando não o que se passa no seu foro íntimo, mas sim a sua conduta objetivamente falando.

Pouco importa se o sujeito tinha ou não o desiderato de prejudicar o outro; se ele deixou (= conduta negativa, quando deveria ser positiva) de prestar todas as informações necessárias exigíveis na concretude das coisas, feriu a boa-fé objetiva. Irrelevante se o agente tinha o convencimento de estar agindo corretamente; relevante, sim, é o agir corretamente.

Já a bona fides subjetiva, a vocacionada de boa-fé crença, analisa o espírito do agente, sua feição psicológica. É a boa-fé invocada por todo o nosso ordenamento civil (casamento putativo, usucapião, herdeiro aparente etc). É a inocência, a pureza, a candura daquele que age colimando não prejudicar ninguém.

O que se convém assinalar é que todo o fenômeno jurígeno, em razão dos valores constitucionais, é permeado pela boa-fé objetiva, qual um fio de ouro a coser todas as relações de direito, informando-as, completando-as e protegendo-as de qualquer conduta que arranhe o indigitado vetor axiológico.

Para Teresa Negreiros (2006, p. 129) a boa-fé objetiva é o elo entre as negociações privadas e a normativa constitucional, trazendo para todo o ordenamento jurídico a dignidade da pessoa humana como valor normativo supremo. É verdade que a doutrinadora faz essa assertiva ao analisar a boa-fé no direito contratual, o que não impede de adaptá-la para a afirmar que a cláusula geral é o elo, um fio principiológico e eticizante a coser todo fenômeno jurígeno, dando-lhe unidade e lógica.

O assunto, boa-fé no direito privado, foi tese de doutorado do doutrinador lusitano António Manuel da Rocha e Meneses Cordeiro, que originou a obra "Da boa-fé no Direito Civil" [02], dissecando o instituto em inúmeros outros, como supressio, surrectio, tu quoque, venire contra factum proprium e a noção de violação positiva do contrato.

Afirma o citado autor (2007, p. 1230) que a boa-fé objetiva e seus deveres anexos são exigências que se apresentam antes, durante e mesmo finda a relação negocial, o que chamou de pós-eficácia das obrigações ou culpa post factum finito. Juntamente com o autor português, a doutrina nacional, de forma uníssona, indica a existência de obrigações laterais (anexos, acessórios, secundários, instrumentais) traduzidas em concepções conectadas à cooperação, transparência, informação, proteção, honestidade, lealdade, cuidado entre os contratantes e, superando o princípio da relatividade, terceiros.

A doutrinadora fluminense Teresa Negreiros (2006, p.130) sintetiza acerca da boa-fé objetiva, aduzindo que esta:
atua como eixo comum de diversas teorias que se vêm difundindo seja na formulação de critérios de interpretação-integração do contrato, seja para impor a criação de deveres no contexto da relação contratual, ou para limitar o exercício de direitos. Em comum, as diversas ramificações da boa-fé têm um sentindo e um fim éticos, segundo os quais a relação contratual deve ser compreendida como uma relação de cooperação, impondo-se um dever de recíproca colaboração entre os contratantes em vista da realização do programa econômico estabelecido no contrato.
É fácil perceber que a boa-fé objetiva encontra-se em franco desenvolvimento e fixação na área negocial. Contudo, por encontrar seu próprio fundamento no ápice normativo do sistema, pertence ao fenômeno jurídico em sua totalidade, sendo plenamente possível adaptar toda a sua sistematização e proficuidade para as inúmeras áreas da ciência jurídica, inclusive a processual.

Por fim, é preciso trazer à tinta o escólio de Cordeiro (2007, p. 18), verbatim:
Com implicações de toda a ordem, o tema de pesquisa anuncia-se complexo. A dificuldade pode ser minorada com o antecipar de alguns dados: os vectores integrativos da boa fé, a sua posição no Código e a terminologia que ela informa, o sentido da segunda codificação português, as coordenadas da Ciência do Direito utilizada, o lugar da boa-fé na cultura jurídica actual e o plano de trabalho, com as suas razões. Sendo uma criação do Direito, a boa fé opera como um conceito comum. Em vão se procuraria, nas páginas que seguem, uma definição lapidar do instituto: evitadas, em geral, pela metodologia jurídica, tentativas desse gênero seriam inaptas face ao alcance e riqueza reais da noção. A boa fé traduz um estádio juscultural, manifesta uma Ciência do Direito e exprime um modo de decidir próprio e certa ordem sócio-jurídica.



NASCIMENTO, José Moacyr Doretto. A boa-fé objetiva e o processo civil . Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3039, 27 out. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20311>.

Nenhum comentário:

Postar um comentário