quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A Justiça nem sempre decide quem está errado. Às vezes, é sobre quem está mais certo.

Saiu na Folha do dia (6/10/11):
Conselho de medicina aprova ação contra Vigilância Sanitária
O plenário do CFM (Conselho Federal de Medicina) aprovou ontem a proposta levantada pela diretoria da entidade de acionar a Justiça contra a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). A ação deve ser apresentada entre hoje e segunda-feira, segundo o conselho.
O motivo da contestação judicial é a decisão da agência de tirar do mercado inibidores de apetite do grupo das anfetaminas e derivados (mazindol, anfepramona e femproporex) (…)
O CFM considera que a restrição aos inibidores interfere de forma indevida na autonomia do médico na hora de escolher o melhor tratamento para os pacientes. Antes mesmo de a Anvisa bater o martelo, o CFM ameaçava levar o caso à Justiça

Nessa questão, aparentemente tão simples, pode-se identificar um conflito básico e eterno das democracias:

Um dos princípios fundamentais dos regimes democráticos é que ninguém pode ser obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. É isto o que diz, literalmente, o inciso II do art. 5º. da Constituição. A idéia é clara: é somente através da lei, aprovada por representantes dos eleitores, livremente eleitos, que se manifesta a vontade daqueles que terão que se submeter às regras,. Com base na lei, e apenas com base na lei, é que as autoridades públicas podem proibir ou ordenar o que quer que seja; da lei, e unicamente da lei, lhes vem toda autoridade.

Mas a lei, em nosso sistema jurídico, é quase sempre geral e abstrata; estabelece regras e princípios mas, por sua própria natureza, não pode descer a pormenores. Não seria plausível, por exemplo, que fossem reguladas em lei, mesmo que leis municipais, coisas como em que trecho de uma rua é proibido estacionar.  Uma lei, o Código de Trânsito, delega esse poder às autoridades do executivo municipal. É dessa lei que vem, indiretamente, a possibilidade de as prefeituras  instalarem cada placa de trânsito em cada cidade do Brasil.

O mesmo fenômeno – obrigações e proibições estabelecidas em lei de forma indireta mas diretamente  baseadas em decretos, portarias ou resoluções de agências do poder executivo – aparece em uma imensa multiplicidade de situações.

O caso concreto referido na matéria é uma dessas situações: um órgão vinculado ao governo federal – uma agência reguladora, a Anvisa  tem por lei poder para controlar a área de saúde. No exercício desse poder, estabeleceu proibições e restrições ao uso de certas substâncias químicas. Formalmente o ato é legal. Compreende-se dentro das atribuições concedidas por lei à Agência. As limitações estabelecidas não podem, portanto, ser consideradas como violando a regra de que ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Mas em toda delegação de poderes existe sempre uma limitação, expressa ou implícita. A própria lei que tem o poder de determinar que alguém faça ou deixe de fazer alguma coisa não pode contrariar outras normas constitucionais. Da mesma forma, os atos administrativos emitidos com base coerente em uma lei, não podem ser totalmente arbitrários. Têm que ser razoavelmente motivados e não podem  ferir interesses legítimos.

E daí?  Pode ou não a Anvisa estabelecer validamente as restrições que estabeleceu?  Não é difícil perceber que existem argumentos de ambos os lados. A Agência, baseada em laudos de seus técnicos, diz que as substâncias mencionadas são lesivas ou perigosas à saúde. A classe médica, representada pelo Conselho Federal de Medicina, que é seu órgão supremo e também uma espécie de autarquia (mas com muito mais autonomia que a Anvisa), diz que o ato da agência interfere com a autonomia de escolher para os pacientes a medicação mais apropriada.

Quem terá razão? Não dá para saber, mas o Judiciário terá de decidir a questão (ainda que ela seja técnico-científica) e isso serve como exemplo de como o Judiciário muitas vezes tem de decidir não quem está certo ou errado, mas que está mais certo, decidindo conflitos que opõem  princípios, posturas e interesses igualmente razoáveis . 

O que é o tal do mandado de segurança que ouvimos com tanta frequência?

Saiu na Folha de quarta (5/10/11):
Prefeitura vai fechar o Center Norte hoje
O Shopping Center Norte, que já constou no "Guiness Book" como o maior do Brasil, será interditado hoje, por tempo indeterminado. No início da noite de ontem, a Justiça cassou a liminar que impedia o fechamento do local, construído em área contaminada devido à presença de gás metano. O argumento da prefeitura é de que há risco de explosão (…)
A prefeitura decidiu interditar o centro de compras por precaução, contra a opinião de técnicos da Cetesb (agência ambiental do Estado).
Em uma reunião, a Cetesb foi cobrada a apresentar garantias de que não haveria nenhuma explosão no shopping center. Nenhum técnico quis assumir o risco. A partir disso, a prefeitura decidiu interditar o local.
O Center Norte, onde trabalham cerca de 6.000 pessoas, foi construído sobre um antigo lixão. A matéria orgânica do subsolo produz gás metano, inflamável.
Inaugurado em 1984, o shopping diz que faz medições diárias do nível de gás no local, mas as medidas adotadas para evitar explosões não foram suficientes, na avaliação da Cetesb.
Na semana passada, o shopping fechou acordo com o Ministério Público se comprometendo a instalar nove drenos dos gases em um prazo de 20 dias.
Após o acordo, o juiz Emílio Migliano Neto, da 7ª Vara da Fazenda Pública, concedeu liminar proibindo a prefeitura de interditar o local.
O juiz argumentou que no acordo não consta a necessidade de interdição - a Cetesb é contra o fechamento por considerar que o risco de explosão é apenas ‘potencial’, e não imediato. Ontem, às 17h15, o mesmo juiz extinguiu a ação e cassou a liminar. Migliano Neto considerou que o mandado de segurança, instrumento jurídico utilizado pelos advogados do shopping, não é adequado para esse tipo de pedido

No último parágrafo o magistrado diz que o mandado de segurança não é o instrumento adequado para impedir o fechamento do shopping. Mas o que é o tal do mandado de segurança que ouvimos com tanta frequência?

Ele é um tipo de ação muito especial e simples que serve para proteger direitos quando eles são líquidos e certos. E essas são as duas coisas essenciais que faltaram no pedido feito pelo shopping da matéria acima. Mas o que significa um direito líquido e certo?

Direito certo é aquele que está bem definido. Por exemplo, se você tem uma conta no banco, seu direito de sacar o dinheiro que está lá é certo porque não há nenhuma dúvida de que o direito é seu.

Em outras palavras, o direito certo é aquele sobre o qual não cabe dúvida: temos certeza de que ele existe e a quem ele pertence.

Direito líquido é aquele que independe de qualquer outro evento ou ação. Por exemplo, se você passou em um concurso vestibular, formou-se no segundo grau e está com a documentação em dia, você tem o direito de se matricular. Não existe nenhum outro requisito que ainda precisa ser preenchido.

Em outras palavras, o direito líquido é aquele que pode ser exercício imediatamente.

No caso do shopping acima, o mandado de segurança é inadequado porque o direito do shopping permanecer aberto não é nem certo (porque, segundo a prefeitura, ele pode explodir) nem líquido (ele só permanecer aberto se os donos provarem que não há risco de explosão). Ora, se ainda há dúvidas se ele pode ou não permanecer aberto porque há dados científicos nos dois sentidos, não podemos dizer que não há dúvida a respeito da existência do direito do shopping de permanecer aberto. E sem certeza, não há mandado de segurança.

Existe um segundo termo técnico usado na matéria que pode causar confusão: a liminar. A liminar não é a mesma coisa que um mandado de segurança. Enquanto o mandado de segurança é um tipo de ação, a liminar é um tipo de pedido que pode existir dentro de qualquer ação, inclusive do mandado de segurança, como no caso da matéria acima.

Pense na seguinte analogia: o mandado de segurança é um tipo de veículo (por exemplo, um Fusca). A liminar é uma peça não essencial mas às vezes muito importante do veículo (por exemplo, um alarme). Todo Fusca pode ter um alarme (mas não precisa ter um para funcionar), mas o alarme pode estar em qualquer outro tipo de veículo.

E para que serve o pedido de liminar? Ele é um pedido feito para que o juiz dê uma ordem que impeça que algum dano irreparável aconteça antes de julgar o resto do caso. Mais uma analogia: pense que você e seu irmão estejam brigando por causa de um sorvete. Sua mãe irá decidir de quem é o sorvete, mas se ela não mandar guardar o sorveate no congelador até que ela decida que é o dono, ele irá derreter. A liminar é essa ordem para que o sorvete seja protegido até que sua mãe (a juíza) possa decidir quem de fato é o dono. Ela serve para proteger o direito de uma das partes quando ela parece ter direito ao que está pedindo (chamado em direito de ‘fumus boni iuris’) e convence o magistrado de que se ele não proteger aquele direito imediatamente, esse direito irá sofrer danos irreparáveis (o que os juristas chamam de ‘periculum in mora’).

STJ reconhece casamento entre pessoas do mesmo sexo

A 4ª Turma do STJ reconheceu que um casal de mulheres também tem direito de casar. Por maioria, nesta terça-feira (25/10), os ministros deram provimento ao Recurso Especial no qual duas mulheres pediam para serem habilitadas ao casamento civil.

O julgamento começou começou na última quinta-feira (20/10), quando quatro ministros votaram a favor do pedido do casal. Marco Buzzi, o último a votar, pediu vista. Ao apresentar seu voto na sessão desta terça-feira (25/10), ele levantou um questão de ordem recomendando que o caso fosse levado a julgamento na 2ª Seção, que reúne os ministros das duas Turmas especializadas em Direito Privado.

Por maioria de votos, a questão de ordem foi rejeitada. No julgamento do mérito, o ministro Buzzi acompanhou o voto do relator, ministro Luis Felipe Salomão, dando provimento ao recurso.

“Por consequência, o mesmo raciocínio utilizado, tanto pelo STJ quanto pelo STF , para conceder aos pares homoafetivos os direitos decorrentes da união estável, deve ser utilizado para lhes franquear a via do casamento civil, mesmo porque é a própria Constituição Federal que determina a facilitação da conversão da união estável em casamento”, concluiu Salomão.

Em seu voto-vista, o ministro Marco Buzzi destacou que a união homoafetiva é reconhecida como família. Se o fundamento de existência das normas de família consiste precisamente em gerar proteção jurídica ao núcleo familiar, e se o casamento é o principal instrumento para essa opção, seria despropositado concluir que esse elemento não pode alcançar os casais homoafetivos. Segundo ele, tolerância e preconceito não se mostram admissíveis no atual estágio do desenvolvimento humano.
 
Divergência - Os ministros Antonio Carlos Ferreira e Isabel Gallotti já haviam votado com o relator na sessão do dia 20, quando o julgamento começou. O ministro Raul Araújo, que também acompanhou o relator na sessão da semana passada, mudou de posição. Segundo ele, o caso envolve interpretação da Constituição Federal e, portanto, seria de competência do STF.Para o ministro, o reconhecimento à união homoafetiva dos mesmos efeitos jurídicos da união estável entre homem e mulher, da forma como já decidido pelo STF, não alcança o instituto do casamento. Por isso, ele não conheceu do recurso e ficou vencido.
 
Raul Araújo chegou a propor – inspirado em sugestão de Marco Buzzi – que o julgamento do recurso fosse transferido para a 2ª Seção do STJ, que reúne as duas Turmas responsáveis pelas matérias de direito privado, como forma de evitar a possibilidade de futuras decisões divergentes sobre o tema no Tribunal.
Segundo o ministro, a questão tem forte impacto na vida íntima de grande número de pessoas e a preocupação com a “segurança jurídica” justificaria a cautela de afetar o caso para a 2ª Seção. A proposta, porém, foi rejeitada por três a dois.
 
A decisão do tribunal gaúcho afirmou não haver possibilidade jurídica para o pedido, pois só o Poder Legislativo teria competência para insituir o casamento homoafetivo. No recurso especial dirigido ao STJ, elas sustentaram não existir impedimento no ordenamento jurídico para o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Afirmaram, também, que deveria ser aplicada ao caso a regra de direito privado segundo a qual é permitido o que não é expressamente proibido.

A advogada especialista em Direito Homoafetivo, Sylvia Maria Mendonça do Amaral, ressalta que a decisão do STJ abre um importante precedente aos casais do mesmo sexo para o casamento civil. "Mais uma vez coube ao Poder Judiciário suprir lacunas deixadas pela inércia do Legislativo. Esta decisão abriu precedente para que outros casais façam o mesmo pedido o que tornará o casamento homoafetivo uma realidade e ao alcance de todos que desejam oficializar sua relação com pessoa do mesmo sexo", afirma.

O recurso foi interposto por duas cidadãs residentes no Rio Grande do Sul, que já vivem em união estável e tiveram o pedido de habilitação para o casamento negado em primeira e segunda instância. A decisão do tribunal gaúcho afirmou não haver possibilidade jurídica para o pedido, pois só o Poder Legislativo teria competência para insituir o casamento homoafetivo. No recurso especial dirigido ao STJ, elas sustentaram não existir impedimento no ordenamento jurídico para o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Afirmaram, também, que deveria ser aplicada ao caso a regra de direito privado segundo a qual é permitido o que não é expressamente proibido. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

Resp 1.183.348
Revista Consultor Jurídico