quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Livro mostra bastidores da Justiça no Direito de Família




“Sou uma observadora da alma humana”, diz a juíza. Mas como assim? Juiz não é para aplicar a lei? Quem observa a alma humana é psicólogo, filósofo, padre, pastor, outro profissional. Juiz é para equacionar conflitos. Direitos e deveres. Não é assim? Depende. Sobretudo se for juiz de Vara de Família, onde a sala de audiências é muitas vezes o único espaço de comunicação entre o casal. Mas depende de quê?

Assistimos crescente tendência da sociedade para judicializar o afeto. Casais, pais e filhos, irmãos, sogros e tios, esposos, namorados e amantes, famílias transferem suas decisões, responsabilidades e impasses para o juiz. Querem transformar o afeto ou o desafeto em sentenças.

Naquele caso, o casal brigava sobre qual escola o filho de 9 anos deveria estudar. Brigavam. Entraram na Justiça e pediram que a juíza decidisse. Ela se recusou. Não era da competência do Poder Judiciário. Naquele outro, a esposa vai à Justiça com único objetivo. Que se colocasse na certidão de divórcio que ela fora traída pelo marido. O culpado era ele. “Nunca entendi a finalidade de se determinar quem é o responsável pelo fim do afeto. Uma sentença declarando a traição não alivia qualquer dor”, pensou a juíza. Não concedeu.
(...)
Não é só de lei que se faz a Justiça. O livro é um making of da Justiça no Direito de Família. Revela o processo de convicção do juiz, como formula a sentença. O que deve levar em consideração além da lei e dos fatos? O que influencia a sua decisão? Até que ponto deve se deixar levar por suas intuições? Por seus valores pessoais? Até que ponto, pelo fato de ser mulher, corre o risco de parcialidades, ao solucionar conflitos entre homem e mulher? Onde termina a juíza e começa a ativista feminista?
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 Leia a íntegra em: http://www.conjur.com.br/2013-fev-26/joaquim-falcao-livro-mostra-bastidores-justica-direito-familia

Joaquim Falcão é professor da Escola de Direito da FGV.
Revista Consultor Jurídico, 26 de fevereiro de 2013

TJ-MS autoriza casamento de jovem de 15 anos


 O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul autorizou uma adolescente de 15 anos a se casar com o pai de seu filho. Segundo o relator do processo, desembargador Sérgio Fernandes Martins, os dois namoram e possuem um filho. “Foge aos anseios sociais ver uma mãe tão jovem tendo de criar seu filho sozinha, principalmente quando o genitor tem pleno interesse em participar diariamente de sua criação”, escreveu.

De acordo com o Código Civil o casamento só é possível com dezesseis anos, porém a mãe da adolescente buscou a Justiça para solicitar autorização. O juiz cosiderou o pedido improcedente, com argumentos de que, neste caso, não está presente o interesse social que justifica a aplicação da exceção, prevista no artigo 1.520 do Código Civil, pois as condições psicológicas da menor não demonstraram a maturidade fisiológica necessária para contrair o matrimônio.

O juiz alegou ainda outras particularidades do caso, considerando o fato do pretenso marido ter sido padrasto da futura esposa, o que o coloca numa possível relação de parentesco por afinidade — o que caracteriza impedimento para o casamento, nos termos do artigo 1.521, inciso II, do Código Civil.

Na sentença, ficou destacado que "se é verdadeiramente amor o que sente a autora por A.G. do R. e, principalmente, ele por ela, certamente serão capazes de aguardar menos de um ano (até ela atingir 16 anos), período em que poderão melhor se conhecer. Ela, inclusive, amadurecer mais, avaliar seu pretenso marido no papel de pai (pois já há um filho em comum) e então tomar uma decisão mais segura”, afirmou o juiz.
(...)

Na decisão, Martins diz ainda que (...) "Negar o consentimento implica em privar a criança do convívio paterno, que deseja acolhê-la e participar de sua criação", afirmou. Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-MS.
Revista Consultor Jurídico, 20 de fevereiro de 2013
Leia a íntegra em: http://www.conjur.com.br/2013-fev-20/tribunal-justica-ms-autoriza-casamento-adolescente-15-anos 

Laços afetivos permitem registro de trio em certidão



Em razão dos laços afetivos que se estabelecem nas relações humanas, uma criança terá, em sua certidão de nascimento, os nomes do pai, da mãe biológica e da madrasta. A decisão foi do juiz Élio Braz Mendes, da 2ª Vara da Infância e Juventude de Recife. Em seu entendimento, a afetividade é a principal elemento na constituição da família, seja ela de qual natureza for. Assim, fica garantido ao trio o direito de registrar e cuidar da criança em conjunto.

Quando a criança nasceu, a mãe passava por dificuldades financeiras e abriu mão, provisoriamente, de sua guarda, passando-a para a madrasta, companheira do pai da criança, que possui a guarda fática da criança desde seu nascimento. Assim, o pai e sua companheira poderiam cuidar do bebê.

Deste então, o pai e sua esposa vêm garantindo os direitos básicos e indispensáveis para o desenvolvimento do garoto, e a mãe, mesmo sem a guarda, manteve o convívio com seu filho, estabelecendo o vínculo afetivo.

“No plano da realidade, ambas, a requerente e a genitora biológica, são responsáveis pela criação do infante, cabendo a elas, em conjunto, a responsabilidade pelo dever de guarda, sustento e educação”, afirmou o juiz. Em seu entendimento, tanto a genitora, quanto a madrasta, possuem laços filiares com a criança e não se pode afirmar quem melhor desempenha a função materna.

Na decisão, Mendes também explica que o Direito de Família tem sido sabiamente conduzido através dos laços de afetividade que nascem a partir das relações humanas.
(...)
Leia a íntegra em: http://www.conjur.com.br/2013-fev-22/justica-autoriza-registro-mae-pai-madastra-certidao-nascimento
Revista Consultor Jurídico, 22 de fevereiro de 2013

Configuração do Ministério Público a partir da CF/88

No Brasil, a instituição do Ministério Público passou por várias transformações, passando a acumular com o decorrer do tempo inúmeras atribuições. Porém, foi a partir da Constituição da República Federativa de 1988 que passou a dispor dos instrumentos necessários para poder exigir de forma condizente dos infratores da ordem vigente o cumprimento das leis com o intuito de assegurar a população seus direitos essenciais.
Foram destinados ao parquet alguns instrumentos processuais para assegurar tal fim. Assim, para fazer prevalecer o interesse social, o MP possui à sua disposição o Inquérito Civil Público, que poderá culminar com a assinatura do Compromisso de Ajustamento de Conduta pelo transgressor (no caso em tela, o poluidor), e a Ação Civil Pública, que levará ao Judiciário a decisão final sobre o litígio.
Assim, diante do texto Constitucional pode-se extrair;
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;
Porém, não basta enunciar o fim de um instituto sem que a ele seja assegurado um aparato legal para que seja possível realizá-lo. Não é a toa que a nossa Carta Magna assegurou ao Ministério Público uma série de prerrogativas e garantias objetivando efetividade para seu atuar.
Nas sábias palavras do eminente constitucionalista Alexandre de Moraes, “As garantias constitucionais do Ministério Público foram-lhe conferidas pelo legislador constituinte objetivando o pleno e independente exercício de suas funções e podem ser divididas em garantias institucionais e garantias aos membros. Tão importante este objetivo, que a Constituição Federal considera crime de responsabilidade do Presidente da República a prática de atos atentatórios ao livre exercício do Ministério Público (art. 85, II, da Constituição Federal)”. [10]
No que tange à sua natureza jurídica, muito já foi debatido, até pelo fato de que, com o passar dos tempos, foram-lhe asseguradas diversas funções, como de membro do Poder Executivo, de advogado da União, etc. Porém, diante da estruturação trazida pela Constituição Federal de 1988 através dos artigos 127 ao 130-A, não resta dúvida de que se trata de um órgão que, desvinculado dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbido da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. [11]
Assegurando-lhe independência funcional, através de um regime jurídico próprio com prerrogativas, garantias, deveres e vedações, a Lei Magna propiciou ao MP os meios para realização de seu mister através da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Assim, nas palavras do ex-ministro Sepúlveda Pertence, enquanto discursava na tribuna:
“O legislador constituinte concedeu [ao ministério público] uma titularidade genérica para promover medidas necessárias à proteção da vigência e da eficácia da Constituição, (...) legitimando-o para uma proteção a patrimônio público em uma vigilância ativa com legitimação processual, sob a legalidade da administração”.
Diante desta formatação, vem o parquet desincumbindo seu papel de forma pró-ativa (não sendo apenas um mero fiscal da lei), valendo-se do seu papel acusador para fazer prevalecer os anseios da sociedade, já que, detentor de parcela de soberania estatal, tem o poder-dever de interferir na condução dos negócios políticos estatais.

QUEIROZ, Victor Calegare Largura. A atuação do Ministério Público na implementação de políticas na área ambiental. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3527, 26 fev. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23784>. Acesso em: 27 fev. 2013.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

O toque de recolher e o direito infanto-juvenil



Aniêgela Sampaio Clarindo

Ao Poder Judiciário está reservada parcela de competência legislativa, a ser exercida nos casos expressamente já expostos em lei. Um exemplo disto seria a função que o juiz da vara de infância e juventude possui de emitir portarias e alvarás, em conformidade com o art. 149 do ECA. Este dispositivo considera as hipóteses nas quais o magistrado disciplinará a entrada e a permanência de crianças e adolescentes em determinados lugares, atendendo-se, em contrapartida, a uma série de requisitos, também elencados pelo dispositivo.

Justificando sua postura, sobretudo, nos apelos da comunidade e na efetivação do princípio da prevenção, alguns magistrados têm decretado em portarias a limitação de horários para que infantes e jovens circulem sozinhos, à noite, pelas vias públicas e em determinados estabelecimentos. As medidas encontraram resistência no meio jurídico, sob os argumentos de que o ECA não elenca a possibilidade da instituição de uma espécie de “toque de recolher” e também no fato de que o juiz estaria confundindo seu papel atua com o extinto poder normativo do juiz de menores.
(...)
O art. 149 da lei nº 8.069/90 determina: “Compete à autoridade judiciária disciplinar, através de portaria, ou autorizar, mediante alvará:
I - a entrada e permanência de criança ou adolescente, desacompanhado dos pais ou responsável, em:
a) estádio, ginásio e campo desportivo;
b) bailes ou promoções dançantes;
c) boate ou congêneres;
d) casa que explore comercialmente diversões eletrônicas;
e) estúdios cinematográficos, de teatro, rádio e televisão;
II - a participação de criança e adolescente em:
a) espetáculos públicos e seus ensaios;
b) certames de beleza”.

Esta espécie de função que o magistrado possui é denominada anômala, por escapar das atribuições inerentes à atividade judicante. A portaria e o alvará são instrumentos que possibilitam a regulamentação mais esmiuçada de dispositivos legais preexistentes, tendo em vista os graus de abstração e generalização destes. A redação do art. 149 continua, sinalizando os fatores que justificam a expedição de alvarás e portarias:

§ 1º - Para os fins do disposto neste artigo, a autoridade judiciária levará em conta, dentre outros fatores:
a) os princípios desta Lei;
b) as peculiaridades locais;
c) a exigência de instalações adequadas;
d) o tipo de freqüência habitual ao local;
e) a adequação do ambiente a eventual participação ou freqüência de criança e adolescentes;
f) a natureza do espetáculo.
§ 2º - As medidas adoradas na conformidade deste artigo deverão ser fundamentadas, caso a caso, vedadas as determinações de caráter geral.

A validade de portarias e alvarás está condicionada à obediência da regra insculpida nos par. 1º e 2º do art. 149, não se constituindo em atitude de cunho meramente discricionário. O objetivo desta norma é efetivar, entre outros princípios, o da prevenção, enunciado no art. 70 do ECA: “É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente”. A leitura do dispositivo deve ser realizada em conjunto com a do caput do art. 227 da CF/88: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Ao contrário do que comumente a sociedade conhece a respeito do ECA, a lei menorista não restringe o seu alcance às situações de delinqüência infanto-juvenil, ressaltando, também, a responsabilidade de todos (família, sociedade e Estado) na tomada de medidas preventivas, visando afastar crianças e adolescentes de qualquer situação em que potencialmente possam ter seus direitos lesionados. A função anômala dos juízes da infância e juventude possibilita a tomada destas medidas, no âmbito local (das comarcas).

Situação que tem gerado polêmica é a respeito de haver ou não permissão legal para que o magistrado, através de portaria, convencione restrições à circulação noturna de menores de dezoito anos pelos logradouros públicos, fixando um horário para que isto aconteça sem que seja imprescindível o acompanhamento por um adulto. Isto porque o art. 149 não estipula expressamente este caso, fazendo com que juristas se dividam a respeito da validade de portarias com este teor que já foram editadas em algumas comarcas brasileiras.

O “TOQUE DE RECOLHER” E AS OPINIÕES CONTRÁRIAS

Em cidades do interior de São Paulo foram expedidas pelas varas de justiça da infância e juventude portarias de conteúdo similar, vedando, a partir de determinado horário, a circulação de menores desacompanhados dos pais ou responsáveis. A medida adotada nas cidades de Fernandópolis, Ilha Solteira e Itapura foi taxada pela imprensa como o “toque de recolher”, situação que foi imitada no município paraense de Cambará, onde a juíza responsável determinou em portaria a limitação de horários para que menores estivessem desacompanhados em bares, restaurantes e lanchonetes. Além de São Paulo e Paraná, a medida foi decretada em cidades do interior paraibano, a exemplo de Taperoá. Em 2009 já se contabilizavam, ao todo, 21 cidades em oito estados do país onde o “toque” passou a vigorar.

Em todos os casos, os magistrados fundamentam suas decisões no argumento de que a comunidade destas localidades clamava por uma medida urgente que contribuísse para a redução dos casos de atos infracionais e envolvimento de menores com álcool e drogas ilícitas, situações normalmente verificadas após nove ou dez horas da noite.

Em relação aos índices de violência praticada por menores, notícia veiculada no portal eletrônico do jornal O Estadão confirma que, após ter sido imposto em maio de 2005, o “toque” ajudou a reduzir em 80% o cometimento de atos infracionais e em 82% o número de reclamações dirigidas ao Conselho Tutelar, na comarca de Fernandópolis. Em 2005, foram 378 ocorrências, contra 329 em 2006; 290 em 2007; e apenas 74 em 2008. A redução também acompanha outras ocorrências, como porte de entorpecentes, de 17 casos para 8; lesão corporal, de 68 em 2005 para apenas 19 em 2008.

Apesar do considerável avanço demonstrado, alguns operadores do direito se opõem rigidamente à edição de portarias que condicionem a certa faixa de horários a circulação de menores de dezoito anos nas ruas. Isto representaria uma violação indevida ao direito de livre locomoção, consoante se encontra insculpido no inc. XV do art. 5º da CF/88: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” [...] XV – “À livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;”.

A competência disciplinar do juiz da infância e juventude, na medida em que permite limitar o exercício de direitos infanto-juvenis, deverá então restringir-se aos casos expressamente elencados no caput do art. 149 do ECA. Entender que o magistrado poderia expedir portarias e alvarás em outras situações seria um retorno indevido à antiga lei menorista, o Código de Menores da década de setenta, o qual rezava em seu art. 8º: “A autoridade judiciária, além das medidas especiais previstas nesta Lei, poderá, através de portaria ou provimento, determinar outras de ordem geral, que, ao seu prudente arbítrio, se demonstrarem necessárias à assistência, proteção e vigilância ao menor, respondendo por abuso ou desvio de poder”.

Tratava-se do extinto poder normativo do juiz de menores, a ser exercido sem parâmetros específicos, em consonância com a Doutrina da Situação Irregular. Na época as crianças e adolescentes não eram vistos como sujeitos de direitos, devendo submissão quase que irrestrita às determinações das autoridades judiciárias e policiais. Desta forma, aceitar que o magistrado a seu bel prazer trace normas de comportamento sem que sua atitude esteja justificada pela Lei nº 8.069/90, cujo espírito é o posto daquele que permeava o anterior Código, significa, contraditoriamente, zelar pelo princípio da prevenção através de uma violação ao próprio texto legal.

Conforme pesquisa do IBGE com dados coletados entre 2000 e 2006, percebe-se que a questão da violência infanto-juvenil é extremamente complexa, não merecendo uma solução de cunho simplista. Em 2009 o referido órgão publicou a pesquisa completa, na qual se constata que o aumento das redes de tráfico de drogas, a ineficácia das políticas públicas, a impunidade e a fragmentação das relações familiares contribuíram para o aumento da violência no Brasil, especialmente dos homicídios nos últimos anos. Os homens jovens, pobres, na faixa de 15 a 29 anos de idade são, ao mesmo tempo, as principais vítimas e os principais agentes da situação que afeta a sociedade de modo geral.

Por isso entende-se o motivo pelo qual o princípio da prevenção se efetiva através de ações coordenadas tanto pelo Estado na esfera judiciária, como pela atuação dos poderes executivo e legislativo, não se olvidando, ainda, as participações da família e da comunidade. A adoção do “toque de recolher” é medida que tenta suprir, de maneira desesperada e ineficaz, a ausência de políticas públicas ou a precariedade das que já existem na área infanto-juvenil, a insuficiência dos aparatos de segurança pública e o sentimento de descompromisso em relação à proteção dos direitos infanto-juvenis que ainda permeia grande parte da sociedade.

OS ARGUMENTOS EM PROL DO “TOQUE”

Para os que apóiam as medidas tomadas pelos juízes das cidades retro citadas, não vinga o argumento de que o “toque de recolher” significa privação indevida da liberdade de locomoção. Conforme o inc. I do art. 16 do ECA, o direito à liberdade de ir e vir nos logradouros públicos e espaços comunitários não é absoluto, estando seu exercício condicionado à obediência das restrições legais. A título exemplificativo reporte-se ao art. 82 do ECA, onde se encontra a proibição de hospedagem de menor em “hotel, motel, pensão ou estabelecimento congênere, salvo se autorizado ou acompanhado pelos pais ou responsável”. Percebe-se, assim, que a limitação à liberdade do menor não é exclusivamente imposta por ocasião da aplicação de medidas sócio-educativas, mas sempre que se mostrar imprescindível à proteção integral da criança e do adolescente, tendo em vista sua peculiar condição de seres em desenvolvimento físico e psíquico.

De fato, a redação do inc. V do par. 3º do art. 227 da CF/88 dá margem a este raciocínio, na medida em que obriga a obediência aos critérios de “brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade;”. Restringir a livre circulação de crianças e adolescentes deve ser um ato fundamentado, portanto, no respeito ao saudável crescimento infanto-juvenil, tendo em vista as peculiaridades da comunidade na qual o infante e o jovem estejam, por ventura, inseridos.

As portarias que instituem o “toque” não são ilegais porque possuem um caráter preventivo, no sentido de garantir que crianças e adolescentes não sejam expostos a situações de risco, conforme aduz o juiz da comarca de Fernandópolis, Evandro Pelarin. Para ele o elemento preventivo do “toque” é justamente o que não o torna propriamente uma medida de privação da liberdade. O ato de abordar nas ruas meninos e meninas em situação de risco, conduzindo-os para suas casas em seguida, juntamente com recomendação dirigida aos pais ou responsáveis é cumprir o mandamento da proteção integral, garantindo que crianças e adolescentes tenham "desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade" (art. 3.º da Lei nº 8.069/90).

Reza o art. 70 do ECA: “É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente”. A atuação do juiz não pode restringir-se, portanto, aos casos em que já se verifica a violação aos direitos infanto-juvenis; indo mais além, cabe à autoridade judiciária garantir, dentro da sua competência, a maior redução possível da exposição infanto-juvenil a situações que atentem contra o seu saudável crescimento físico e mental.

Aliás, tocando na questão da competência, embora não esteja inserido expressamente no rol do art. 149 do ECA, existe sim a permissão legal para a instituição do toque, tendo-se em conta como a Lei nº 8.069/90 deve ser interpretada. Diz o art. 6º: “Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”.

Não se deve considerar, pois, que a intenção do legislador fosse a de elencar taxativamente as hipóteses em que se permitem a edição de portarias e alvarás, conforme entende Denilson Cardoso de Araújo. A Lei 8.069/90 deve ser submetida a uma interpretação de cunho sistêmico, tendo em vista a própria lógica jurídica de que nenhum dispositivo legal impera sozinho e absoluto, principalmente aqueles referentes ao direito infanto-juvenil, tendo em vista a recorrente relação que se estabelece entre estes e a CF/88. O autor ilustra sua explicação, aludindo à redação do art. 122 do ECA: “A medida de internação só poderá ser aplicada [...]" onde se denota explicitamente a intenção do legislador em enumerar um rol definitivo, o que não ocorre na redação do art. 149.

Reforçando a tese, tem-se o art. 72 determinando: “As obrigações previstas nesta Lei não excluem da prevenção especial outras decorrentes dos princípios por ela adotados.” Estaria assim consagrado que a emissão de portarias e alvarás, antes de obedecer a uma lista meramente exemplificativa, deve se dar em acordo com a necessidade de se garantir a proteção integral através de medidas preventivas.

Embora a violência infanto-juvenil e a exposição de menores a situações de risco sejam questões complexas porque envolvem a omissão ou atuação insuficiente não apenas do judiciário, mas sim do Estado como um todo, o “toque de recolher” não significa ignorar a obrigação que os demais poderes possuem, dentro de suas competências. Continuam restando ao executivo e ao legislativo o cumprimento de deveres nos quesitos segurança pública e políticas públicas voltadas para menores de idade.

A emissão de uma portaria semelhante às que estão sendo discutidas neste trabalho deve respeitar o devido processo legal. Consoante o magistrado Evandro Pelarin, não está eivada de ilicitude a determinação judicial que está devidamente fundamentada, conforme manda o art. 149 do ECA. Ilustrando a regra com circunstâncias da sua portaria, o juiz explica o caminho percorrido até a vigência desta: após receber reclamações emanadas de populares e associações de bairro, a partir de uma petição do Ministério Público local, o Poder Judiciário determinou a formação de uma força-tarefa, com a atuação conjunta das Polícias Civil e Militar e do Conselho Tutelar. A OAB foi convidada para fiscalizar as ações desta força-tarefa.

Percebe-se que a instituição do “toque” não representa o exercício do extinto poder normativo do juiz de menores, pois a própria legislação menorista atual impõe a necessidade de fundamentação, quesito este cuja ausência é o que caracterizava um poder quase absoluto e ditatorial nas mãos do antigo juiz de menores.

O magistrado ainda ressalta que o tratamento dado aos infantes e jovens encontrados, altas horas da noite, sozinhos e expostos a situações em que se verificava o consumo de álcool e drogas ilícitas, eram conduzidos em viatura do Conselho Tutelar, sem algemas, de acordo com as diretrizes do ECA. Eram encaminhados aos pais ou responsáveis, que deveriam, por sua vez, assinar um termo de compromisso. Caso o menor fosse novamente flagrado na mesma situação, os responsáveis poderiam ser penalizados consoante os dispositivos do ECA, a exemplo da aplicação de multa. Não se pretende usurpar dos pais a tarefa de educar e vigiar seus filhos menores, e sim colaborar com ela, inclusive conscientizando genitores e responsáveis legais omissos.

Alguns aspectos devem ser considerados, contudo, para que a decretação da medida do “toque” seja viável na prática. É necessário, antes de sua instituição, uma consulta aos órgãos de representação popular, ou diretamente exercida na comunidade, para que se verifique a necessidade da medida. Também não se deve ignorar que as Polícias devem dispor de um numero mínimo de policiais disponíveis para esta tarefa específica, bem como os Conselhos Tutelares devem disponibilizar Conselheiros nos dias e horários em que funciona a força-tarefa. Deve-se, em suma, atender às peculiaridades locais e à exigência de instalações adequadas, aspectos de cunho prático impostos pelo par. 1º do art. 149 do ECA.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A instituição do “toque de recolher” à primeira vista parece oriunda de um ato totalmente discricionário, revelando inclusive um suposto caráter ditatorial. Na realidade cada caso concreto deve ser analisado, sob pena de se formar uma opinião generalizada, e, portanto, ingênua.

Quando a comunidade de alguma maneira alerta os órgãos do Poder Judiciário ou quaisquer outros que possam atuar em defesa dos interesses dos menores, não pode ser ignorada, sob o singelo argumento de que o ECA não prevê expressamente a imposição da limitação de horários. É desnecessário o lançamento de dados estatísticos para a realidade que grita, no cotidiano da população, o crescente envolvimento infanto-juvenil em situações de violência e submissão a hábitos nocivos e degradantes. Em respeito à imaturidade natural da condição do menor, deve-se protegê-lo, aplicando-se, contudo, parâmetros na aplicação de qualquer medida preventiva.

Desde que o menor não seja tratado como um “criminoso”, esteja presente um membro de seu respectivo órgão de proteção (conselho tutelar) e haja, na localidade, aparato estatal necessário, a medida do “toque” é possível de ser aplicada. Caso seu decreto tenha seguido os trâmites procedimentais necessários, deve-s esperar se a aplicação da medida surte os efeitos desejados, podendo assim ser discutida futuramente sua manutenção ou não. A própria instituição da portaria que regulamenta a circulação noturna de menores serve de alerta à sociedade como um todo e à família de cada criança ou adolescente, em relação à necessidade de se cobrar de todos os poderes estatais o compromisso que cada um deveria honrar relacionado ao respeito aos direitos e garantias infanto-juvenis elencadas na CF/88.

Fonte: http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=2260