sábado, 12 de janeiro de 2013

O mérito como pressuposto da coisa julgada material

1    Do mérito

Divergente. Adjetivo que resume o tratamento do mérito na ciência processual civil. Múltiplas significações lhe são emprestadas. Encontram-se na doutrina nacional e alienígena inúmeras definições.
Em se tratando de matéria fincada em dissensos, devem ser trazidas balizas teóricas e interpretativas firmes. Portanto, para a realização do estudo do mérito, adotar-se-á como premissa fundamental a distinção entre conceitos lógico-jurídicos e jurídico-positivos.

2   Dicotomia: conceitos lógico-jurídicos e jurídico-positivos

Os conceitos jurídicos podem ser: lógico-jurídicos ou jurídico-positivos.
O emprego mais famoso desta classificação foi realizado por Hans Kelsen. O jurista austríaco tratava a constituição em dois planos. Em um está a norma hipotética, fundamento transcendental de validade de todo o sistema, no outro a constituição positiva, a prevista no ordenamento jurídico. O primeiro plano é o lógico-jurídico; o segundo é o jurídico-positivo (SILVA NETO, 2006, pp. 28/29).
Na doutrina pátria, Borges (1999, pp. 94/95), abordando o tema do lançamento tributário, é quem melhor apresenta o caráter dicotômico dos conceitos. Para ele, jurídico-positivos são conceitos que somente podem ser apreendidos a posteriori, empiricamente, após o conhecimento de um determinado Direito Positivo, aplicáveis, portanto, a um âmbito de validade restrito no espaço e no tempo. Quanto aos conceitos lógico-jurídicos, pelo brilhantismo, melhor a transcrição das palavras do autor:
Contrapõem-se os conceitos lógico-jurídicos. São estes obtidos a priori, com validade constante e permanente, sem vinculação, portanto, com as variações do Direito Positivo. [...]
Os conceitos lógico-jurídicos constituem pressupostos fundamentais para a ciência jurídica. Entre esses pressupostos essenciais estão as noções de direito subjetivo, dever jurídico, objeto, relação jurídica etc. Correspondem, pois, à estrutura essencial de toda norma jurídica. Conseqüentemente, não são exclusivas de determinado ordenamento jurídico, mas comum a todos. Não são dados os conceitos lógico-jurídicos empiricamente, porque são alheios a toda experiência. São necessários a toda realidade positiva, efetivamente existente, historicamente localizada ou apenas possível, precisamente porque funcionam como condicionantes de todo pensamento jurídico.
À luz das lições de Borges e de Kelsen, será proposto, neste trabalho, um conceito de mérito aplicável a qualquer direito positivo que se examina e pertencente à teoria geral do direito processual civil – lógico jurídico – e outro relativo ao ordenamento jurídico pátrio, atento às particularidades legais – jurídico positivo.
Antes de se buscar a conceituação de mérito em ambos os sentidos, é indispensável conhecer os conceitos já elaborados pela doutrina. A análise da evolução conceitual facilitará a compreensão, seja do conceito lógico-jurídico de mérito, seja do jurídico-positivo.
Serão elencadas, assim, de modo conciso, posições nacionais e estrangeiras sobre o conceito de mérito, a fim de demonstrar a variedade de entendimentos existentes e familiarizar o leitor com a temática.

3    Posições conceituais doutrinárias sobre o mérito

Nada obstante pontuais diferenças, aglutinam-se em um mesmo bloco os autores que conceituam o mérito no plano do complexo de questões referentes à demanda, isto é, nas questões de fundo do processo (DINAMARCO, 2001, p. 239). Seguem este posicionamento: Liebman, Carnelutti e Garbagnati.
Liebman[1] afirma que (apud DINAMARCO, 2001, pp. 239/240):
O conhecimento do juiz é conduzido com o objetivo de decidir se o pedido formulado no processo é procedente ou improcedente e, em conseqüência, se deve ser acolhido ou rejeitado.  Todas as questões cuja resolução possa direta ou indiretamente influir em tal decisão formam, em seu complexo, o mérito da causa.
Carnelutti, sempre atrelado à noção de lide, marco metodológico de todo seu trabalho, aduz que o “mérito da lide significa [...] o complexo das questões materiais que a lide apresenta” (apud DINAMARCO, 2001, pp. 240)
Garbagnati, por seu turno, define o mérito como “o grupo de questões relativas ao fato constitutivo do direito invocado processualmente pelo autor e à escolha e interpretação das normas jurídicas que lhe serão aplicadas” (apud DINAMARCO, 2001, p. 242).
Outra posição fundamental é a que associa o mérito à demanda inicial proposta em juízo, ao pedido principal do processo (DINAMARCO, 2001, 246/247). Nesta trilha Chiovenda, Luigi Montesano e Elièzer Rosa.
Chiovenda assevera que (apud DINAMARCO, 2001, p. 246):
a sentença de mérito é o provimento do juiz acolhendo ou rejeitando a demanda do autor destinada a obter a declaração da existência de uma vontade de lei que lhe garanta um bem, ou da inexistência de uma vontade de lei que o garanta ao réu.
Luigi Montesano firma que “sentenças de mérito são aquelas que acolhem ou rejeitam a demanda” (apud DINAMARCO, 2001, p. 246).
Elièzer Rosa defende que “por mérito se há de entender o pedido principal”. E continua: “o que se pede em via principal que o juiz decida de modo definitivo para eliminar um tipo de conflito, isto é o mérito” (apud DINAMARCO, 2001, p. 247).
Não menos importante o posicionamento de Redenti, Fazzalari e Friedrich Lent, os quais identificam o mérito em algo exterior ao processo, ou seja, algo da vida comum das pessoas, entendendo, pois, que o mérito é a relação jurídica substancial deduzida e controvertida em juízo quanto a sua existência, inexistência e modo de ser (DINAMARCO, 2001, p. 248).
Alfredo Buzaid perfilha outro caminho. O Autor do anteprojeto do vigente Código de Processo Civil iguala o mérito à lide. Assim registrou na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil:
Haja vista, por exemplo, o vocábulo de “lide”. No Código de Processo Civil ora significa processo (art.96) ora o mérito da causa (arts. 287, 684, IV, e 687, § 2º). O projeto só usa a palavra “lide” para designar o mérito da causa. Lide é, consoante lição de CARNELUTTI, o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um dos litigantes e pela resistência do outro. O julgamento desse conflito de pretensões, mediante o qual o juiz, acolhendo ou rejeitando o pedido, dá razão a uma das partes e nega-a à outra, constitui uma sentença definitiva de mérito. A lide é, portanto, o objeto principal do processo e nela se exprimem as aspirações em conflito de ambos os litigantes.
Há ainda quem compreenda o mérito como pretensão: exigência de subordinação de um interesse alheio. Inspiram-se na doutrina processual alemã que, ao contrário da italiana, não desenvolve seus estudos a partir do conceito de ação, preferindo dar destaque ao instituto da Anspruch: pretensão (DINAMARCO, 2001, p. 267). Assentem os germânicos que a pretensão é o objeto do processo[2], dissentindo somente quanto ao conteúdo desta pretensão, o que deu origem a três correntes: a primeira sustenta que o conteúdo da pretensão é a mera afirmação de um direito material, pois o fato da sentença negar a existência do direito não conduz à conclusão de que o processo não possuiu objeto; a segunda defende que a pretensão compõe-se pelo pedido (Antrag) e pelo estado de coisas (Sacherverhalt), esta última que, na língua latina, outra coisa não é senão a causa de pedir; a terceira aduz que o pedido, e tão somente ele, é a verdadeira pretensão (DINAMARCO, 2001, pp. 267/273). Nessa linha de mérito como pretensão, Dinamarco e Pontes de Miranda.
Dinamarco (2001, pp. 254/255), a partir da etimologia da palavra mérito, da interpretação do que seja pretensão no conceito carneluttiano de lide e claramente inspirado pelos germânicos, aduz que tal pretensão ostenta dupla face, pois exige do juiz o provimento que seja útil e, de outra banda, exige de outrem o bem da vida pretendido[3].
Pontes de Miranda elabora três espécies de pretensão (apud WATANABE, 2005, pp. 119/120): a pretensão à tutela jurídica, conceito pré-processual, eliminável pela desaparição do interesse de agir; a pretensão processual, pretensão a que se entregue a prestação prometida; e a pretensão de direito material, alegação jurídica do autor, pretensão de direito que faz a demanda. O mérito, então, estaria no pedido, ou melhor, no objeto do pedido, em que se veicula a pretensão de direito material (apud WATANABE, 2005, pp. 119/120).
Por fim, a peculiar posição de Didier Jr. e Cunha (2009, p. 364), para quem o mérito “[...] é sinônimo de objeto litigioso (composto pelo pedido e pela causa de pedir)”. Sucede que não restringem o mérito ao pedido inicial. Para eles, o mérito é a qualquer postulação – principal ou incidental (DIDIER JR.; CUNHA, 2009, pp. 368/369).
Em linhas gerais, aqui estão alguns dos conceitos de mérito já elaborados pela doutrina. Neste trabalho, a definição de mérito aplicável à coisa julgada material só será obtida após a análise de seus sentidos lógico-jurídico e jurídico-positivo.

GOMES, Iuri de Castro. O mérito como pressuposto da coisa julgada material. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3481, 11 jan. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23432>. Acesso em: 12 jan. 2013.