quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Contratos de Plano de Saúde

É de origem contratual a relação entre as operadoras de plano de saúde e seus consumidores, razão pela qual se mostra fundamental uma breve passagem pelo tema. Aurisvaldo Sampaio conceitua o contrato de plano de saúde como:
(...) aquele por meio do qual uma das partes, a operadora, obriga-se diante da outra, o consumidor, a proporcionar a cobertura dos riscos de assistência à saúde mediante a prestação de serviços médico-hospitalares e/ou odontológicos em rede própria, reembolso das despesas efetuadas, ou pagamento direto ao prestador de dos referidos serviços (SAMPAIO, 2011, p. 187).
Trata-se de um contrato de prestação de serviços por tempo indeterminado, no qual o seu destinatário, em regra, se obriga ao pagamento de contraprestações mensais previamente definidas.
Os valores constitutivos dos contratos dos planos de saúde estão visceralmente ligados aos princípios constitucionais de proteção à vida, à saúde e ao dever do Estado de colocar a dignidade da pessoa humana acima dos interesses monetários dos empresários do setor (SILVEIRA, 2009, p. 81).
Apesar da fundamentalidade dos bens jurídicos envolvidos na relação estabelecida entre operadoras e seus consumidores, o mercado de planos de saúde no Brasil desenvolveu-se em um contexto de baixa regulação estatal até os fins da década de 1990 (COSTA, 2002, p. 49). Predominava a crença neoliberal de que a disputa entre as operadoras de planos de saúde por clientes seriam suficientes para garantir a estabilidade do setor. Por isso, as ações de controle e fiscalização do governo concentravam seus esforços para corrigir/atenuar as falhas de mercado, através da criação de regras econômico-financeiras (GAMA, 2002, p. 73).
O passar dos anos demonstrou que os contratos de planos de saúde estavam sendo veículos de exploração por parte das operadoras. A partir da década de 1980, a população brasileira passou a denunciar tal realidade, expondo uma série de abusos praticados, destacando-se dentre eles: negação de atendimento, aumento exagerado dos preços e seleção de risco e de usuários por parte das operadoras (REZENDE, 2011, p. 31). Tornou-se perceptível na época que a efetivação do direito à saúde dos clientes de planos estaria subordinada ao surgimento de um novo modelo de regulação. Um modelo que se respaldasse na ótica dos direitos consumeristas, direcionando sua atenção para a garantia do acesso e qualidade da assistência aos clientes dos planos (BAHIA, 2001, p. 337). Esse foi o ponto de partida para o surgimento do marco regulatório do setor, consubstanciado pela Lei nº 9.656 de 3 de Junho de1998, e da criação da Agência Nacional de Saúde (ANS) através da Lei 9.961 do ano de 2000.
Antes de analisar os aspectos regulatórios que irão influenciar os contratos dos planos de saúde, vale salientar que a legitimidade e a legalidade que fundamentam a interferência estatal no setor estão claramente expressas no artigo 197 da Constituição Federal, que determina ser “de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle (...)”.

5.1. O marco regulatório e seus impactos nas relações contratuais

Como visto no tópico anterior, o mercado de planos de saúde no Brasil por muito tempo se desenvolveu longe de uma eficaz regulação estatal, algo que produziu alta lucratividade advinda de práticas exploratórias de consumo. A promulgação da Lei 9.656/98, a Lei dos Planos de Saúde, surgiu como importante instrumento para coibir tais abusos, causando, logicamente, impactos significativos à mencionada atividade econômica. Outro mecanismo que veio efetivar a regulação estatal é a Agência Nacional de Saúde (ANS), criada com a promulgação da Lei 9.961/00. Trata-se de uma autarquia vinculada ao Ministério da Saúde que atua como órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantem a assistência suplementar à saúde (RIANI, 2012, p. 25).
Os instrumentos regulatórios supracitados provocaram alterações profundas nas relações contratuais estabelecidas no âmbito da Saúde Suplementar. Torna-se interessante, para o desenvolvimento teórico deste estudo, que sejam descritas algumas das principais modificações ocorridas nas regras contratuais e estruturais***. Primeiramente*, os instrumentos regulatórios proporcionaram novos contornos ao modelo de contratação, que deixa de se pautar em um contrato jurídico determinado exclusivamente pelas operadoras para se tornar um contrato de adesão de via dupla. Neste novo cenário, as operadoras devem aderir a um conteúdo mínimo estabelecido pelo poder público, algo que garante maior equilíbrio na sua relação com os consumidores (REZENDE, 2011, p. 36).
Uma das maiores inovações trazidas pela Lei dos Planos de Saúde foi o estabelecimento de uma cobertura mínima a ser ofertada pelas operadoras, englobando um rol de procedimentos básicos que deve ser garantido em qualquer contrato estabelecido. As partes contratantes, porém, ficam livres no que se refere à fixação de serviços adicionais, podendo haver cobrança diferenciada nesses casos. As taxas de reajuste e os períodos de carência também são pré-fixados através da atividade regulatória (VALLE, 2012, p. 6), evitando a existência de cláusulas de adesão extremamente prejudiciais aos consumidores. Essas são mostras de como a regulação estatal tem contribuído para uma relação mais equilibrada entre consumidores e operadoras, proporcionando maior qualidade aos serviços e maior proteção à saúde e à dignidade dos clientes de planos de saúde.
Mas os mecanismos regulatórios estão voltados também para os aspectos econômico-financeiros da Saúde Suplementar. Sabe-se que a desestabilização financeira das operadoras de plano de saúde não é interessante para ninguém, muito menos para o consumidor. Este tem total interesse que tais empresas desenvolvam suas atividades de forma lícita e sustentável, possuindo capital disponível suficiente para cumprir suas responsabilidades contratuais. Em virtude disso, a atividade regulatória tem verificado se as operadoras possuem real capacidade de ofertar os serviços contratados, impondo regras mais rígidas para a constituição dessas empresas, sendo que apenas aquelas com condições financeiras mínimas de se manter no mercado passam a ter registro na ANS. Atualmente, dentre outros requisitos para operação, exige-se das operadoras capital social mínimo, provisão de risco, provisão para eventos não ocorridos e não avisados e margem de solvência (REZENDE, 2011, p. 36).
Na medida em que as operadoras tiveram que garantir maior equilíbrio econômico-financeiro para se manter no seu ramo de atividade, os contratos de planos de saúde se revestiram de maior segurança jurídica. Não se pode negar que a solvência das empresas é um requisito fático para o cumprimento dos contratos. E essa lógica ganha ainda mais importância quando tratamos de serviços de saúde, já que o não cumprimento das obrigações contratuais por parte das operadoras é capaz de gerar sérios prejuízos aos consumidores (REZENDE, 2011, p.34). Porém, ao mesmo tempo em que o mercado da Saúde Suplementar se revestiu de maiores garantias econômicas, ocorreu uma limitação no número de pessoas jurídicas capazes de cumprir os requisitos necessários para adentrarem no mencionado mercado. A conseqüência natural de tal realidade: a grande concentração de beneficiários em algumas poucas operadoras. Em 2009, mais de metade dos consumidores (50,2%) dos serviços suplementares de saúde estava vinculada a apenas 38 operadoras, de um total de 1.098. Acrescenta-se ainda que 90% dos beneficiários estavam concentrados em 366 empresas, enquanto os 10% restantes de dividiam nas outras 725 (RIANI, 2012, p. 26). Nesse contexto, a concorrência entre empresas fica extremamente desequilibrada, situação que prejudica a oferta de vantagens aos beneficiários. Tal fato legitima ainda mais o estabelecimento de conteúdos contratuais mínimos por parte da ANS, objetivando que a baixa concorrência não submeta os consumidores a contratos abusivos.
Outro impacto da regulação estatal sobre o setor da Saúde Suplementar se refere ao considerável impacto financeiro gerado. A exigência de uma cobertura mínima e a limitação no reajuste das mensalidades foram as principais razões para que as operadoras de planos de saúde passassem a ter maiores despesas assistenciais. Paulo Roberto de Rezende (2011, p.38) faz a seguinte consideração sobre o assunto:
Segundo dados da ANS, em 2003 as operadoras médico-hospitalares apresentaram uma receita de R$28.244.222.059, com uma despesa assistencial no importe de R$22.967.722.881, sendo que até o primeiro trimestre de 2011 já apresentavam uma receita de R$71.097.946.389 contra uma despesa assistencial de R$57.650.399.394. Caso leve-se em consideração apenas este dado, chega-se a um superávit de R$13.447.546.215, a ser dividido entre as 1.618 operadoras com registro na ANS, o que alcançaria um lucro de pouco mais de R$8.000.000,00 por ano. Esta situação demonstra que as operadoras não são tão superavitárias quanto se pensa e, ainda, deixa evidente que os custos assistenciais estão aumentando.
Como já mencionado, o incremento tecnológico contínuo na área da saúde torna a assistência cada vez mais onerosa, sem necessariamente trazer benefícios proporcionais. Esse fato, aliado ao aumento da faixa etária média dos beneficiários de planos de saúde, tem onerado de forma importante as operadoras. Esta realidade econômica impõe restrições à atividade regulatória estatal, que deve considerar as limitações financeiras das operadoras de planos de saúde, sob pena de inviabilizar a existência delas. Tais particularidades financeiras é que irão fundamentar, por exemplo, a estipulação de um período de carência de 24 meses para as doenças preexistentes.

RODRIGUES, Raoni. Doença preexistente nos planos de saúde. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3506, 5 fev. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23649>. Acesso em: 6 fev. 2013.

Defesa do consumidor

O legislador constituinte de 1988 inseriu a defesa do consumidor no rol de direitos fundamentais do sistema jurídico brasileiro, sendo que a Carta Magna dispõe em seu artigo 5º, inciso XXXII: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Reconhece-se, portanto, que o consumidor é um sujeito de direito especialmente fraco nas suas relações com os fornecedores, principalmente em tempos atuais, onde ocorre massificação imposta pelo sistema de produção e consumo na atualidade e concentração de fatias do mercado nas mãos de algumas poucas corporações (SAMPAIO, 2011, p. 54).
Referida preocupação é também encontrada no dispositivo elencado no artigo 170, que trata da ordem econômica. Mesmo dispondo que a atividade econômica se funda na livre iniciativa, deve observar determinados princípios fundamentais, dentre eles, a defesa do consumidor.
Finalmente, o artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estipula que 120 dias após a promulgação da Constituição, o Congresso Nacional deveria elaborar um Código de Defesa do Consumidor (CDC), algo que só ocorreu dois anos depois (GRINOVER, 2004, p. 22).  
Os mecanismos jurídicos de proteção dispostos no CDC são aplicáveis às relações de consumo, ou seja, nas relações estabelecidas entre consumidores e fornecedores de produtos ou serviços. Cabe ao presente estudo, portanto, delimitar o sentido jurídico de consumidor e fornecedor.
O CDC determina no caput de seu artigo 2º: “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. O conceito de consumidor adotado pelo Código foi exclusivamente de caráter econômico, ou seja, levando-se em consideração apenas o personagem que no mercado de consumo adquire bens e contrata a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de outra atividade negocial (GRINOVER, 2004, p. 27).
Uma corrente de doutrinadores, por outro lado, defende que o caráter econômico não foi o único adotado pelo CDC para conceituar o que seria consumidor, agregando também a perspectiva da vulnerabilidade deste em relação ao fornecedor (SILVEIRA, 2009, p. 27). A vulnerabilidade decorre do fato de o fornecedor possuir domínio de tecnologia e informação dos seus produtos ou serviços, apresentando força desproporcional quando surge um conflito com consumidores. Aurisvaldo Sampaio lembra, contudo, que a vulnerabilidade não é um critério legal para a definição de consumidor, mas surge como conseqüência da relação de consumo (2011, p. 112).
O conceito jurídico de fornecedor perpassa por menos polêmicas, sendo que a compreensão predominante gira em torno da definição extraída do artigo 3º, caput, do CDC:
Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
Entende-se que fornecedor é qualquer pessoa física ou jurídica que, mediante desempenho de atividade civil ou mercantil, e de forma habitual, ofereça no mercado produtos ou serviços (SILVEIRA, 2009, p. 27).
Para fins de desenvolvimento do estudo, é importante perceber que uma entidade associativa cujo fim é a prestação de serviços de assistência médica, cobrando para tanto mensalidades ou outros tipos de contribuição, não resta dúvida de que será fornecedora desses mesmos serviços. Já que se destina à prestação de serviços, e não à gestão da coisa comum, suas atividades se revestem da mesma natureza que caracterizam as relações de consumo. E, em conseqüência, pressupõem um fornecedor, de um lado, e uma universalidade de consumidores, de outro (GRINOVER, 2004, p. 46).
A conceituação de serviço se encontra no § 2º do mesmo artigo 3º: “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”. Os serviços em geral são atividades e benefícios que têm como escopo satisfazer uma necessidade do adquirente ao serem colocadas no mercado de consumo (SILVEIRA, 2009, p. 28). De modo mais objetivo: são atividades, benefícios ou satisfações que são oferecidos à venda (GRINOVER, 2004, p. 48).

RODRIGUES, Raoni. Doença preexistente nos planos de saúde. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3506, 5 fev. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23649>. Acesso em: 6 fev. 2013.

Direito à vida e à saúde

O caput do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 garante aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a “inviolabilidade do direito à vida”. Trata-se do direito de permanecer vivo, proibindo a interferência nos processos vitais que possam resultar em morte (DIMOULIS, 2007, p. 397). A vida é o pressuposto de todos os demais direitos (SAMPAIO, 2010) e por isso é considerada um bem jurídico de valor elevado. A conservação da vida humana é um direito inato, adquirido no nascimento, portanto, intransmissível, irrenunciável e indisponível (ROBERTO, 2012, p. 4).
O significado constitucional do direito à vida é amplo, pois ele se associa com outros bens jurídicos, a exemplo dos direitos à liberdade, igualdade e à dignidade (BULUS, 2010, p. 529). Considerar a vida como um bem jurídico desconectado dos direitos fundamentais que a cercam é limitar o ser humano a uma existência meramente biológica, afastando dele os aspectos sociais, psicológicos e espirituais, tão imprescindíveis à sua felicidade. A vida constitucionalmente referida não é uma vida qualquer. Seu conceito se apóia em outra definição constitucional, que é a da dignidade (ROBERTO, 2012, p. 8). Assim surge o conceito de vida digna, que estimula o esforço da sociedade no sentido de não apenas ser direcionado à subsistência da espécie, mas, acima de tudo, à busca da qualidade de vida.
Se a vida é o pressuposto de todos os demais direitos, a saúde é o pressuposto da vida. Sem saúde não há vida digna, não há trabalho, não há cidadania, há apenas resquício de vida (SILVEIRA, 2009, p. 17). A saúde também garante as condições necessárias à fruição dos demais direitos, fundamentais ou não, inclusive no sentido de viabilização do livre desenvolvimento da pessoa e de sua personalidade (SARLET, 2012, p. 5). Por ser tão primordial à existência digna dos homens, o ordenamento jurídico brasileiro, através do artigo 6º da Constituição Federal, elevou a saúde à condição de direito social.
O direito à saúde, na qualidade de direito social, exige do Estado brasileiro a realização de ações concretas e efetivas para a promoção, a proteção e a recuperação da saúde de sua população. O Estado, então, possui o poder/dever de intervir na dinâmica social para a proteção da saúde coletiva. O direito à saúde pode ser também considerado um direito subjetivo público, na medida em que permite que o cidadão ingresse com uma ação no Poder Judiciário para exigir do Estado ou de terceiros responsáveis legalmente a adoção ou a abstenção de medidas concretas em favor da saúde (BRASIL, 2006, p. 50).
Nesse sentido, o artigo 196 da Constituição Federal dispõe:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Nem sempre, porém, a saúde foi objeto de proteção jurídica. Ao longo da história, o cuidado sanitário esteve ligado a questões místicas ou divinas, associada à prática de virtudes como a caridade e a compaixão (GLOBEKNER, 2009, p. 5962). Acreditava-se que as decisões humanas não tinham capacidade de modificar o curso natural das doenças, concepção que fazia da saúde um objeto dissociado do mundo jurídico.
Com o desenvolvimento técnico científico ocorrido na Revolução Industrial, inúmeros fatores físicos, químicos ou biológicos foram identificados como capazes de afetar a saúde humana. Percebeu-se que a manutenção de um razoável estado de saúde seria fruto da interação entre esses fatores e o comportamento humano, englobando tanto hábitos particulares dos indivíduos quanto a própria estrutura social e política em que eles estão inseridos. A saúde passou a ser um bem disponível no mercado, e frisa-se: um bem de escassez moderada, demandando critérios de justiça para a sua distribuição (GLOBEKNER, 2009, p. 5962).
Como todo bem que apresenta certo grau de escassez, a saúde pode vir a ser alvo de conflitos potencialmente danosos ao ser humano, conflitos que poderiam até mesmo comprometer o desenvolvimento das sociedades. Diante de tal relevância pública, diversos países do mundo passaram a direcionar o maquinário estatal para o cuidado da saúde de suas populações, buscando meios efetivos de gerir os recursos assistenciais. Até meados do século XX, contudo, as políticas sanitárias eram prestadas pelo Estado por razões estritamente econômicas, já que as doenças poderiam comprometer a atividade produtiva de uma nação. A saúde não era concebida como um direito do indivíduo e por isso não se obtinha em seu favor tutela específica do ente estatal relacionado a um direito fundamental (BORGES, 2011, p. 102).
A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, documento internacional que inovou a concepção de direitos humanos, reconheceu a essencialidade da saúde para a construção da vida digna que o mundo almejava no pós-guerra. Essa declaração introduziu a saúde no hall dos direitos fundamentais dos países signatários, afirmando que todas as pessoas têm direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e serviços sociais indispensáveis (UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS, 1997a). Pelo fato da saúde ser tão essencial ao desenvolvimento econômico e social das sociedades, o Estado passou a concentrar a responsabilidade pela sua promoção.
O predomínio estatal na área de assistência sanitária não resistiu à sucumbência do Welfare State ocorrida na segunda metade do século XX. O sistema público de saúde foi acusado de comprometer as finanças do Estado, além de ser considerado um obstáculo ao crescimento da riqueza. O discurso neoliberal provocou imensas repercussões na tutela jurisdicional do direito à saúde, na medida em que a saúde humana foi adquirindo aspectos de “mercadoria”. Sob essa visão, o desenvolvimento médico-científico não seria voltado necessariamente para uma maior racionalidade sanitária, mas principalmente para a exploração econômica. O incremento tecnológico visando a lucratividade tornou a assistência à saúde mais onerosa, sem necessariamente trazer benefícios à saúde pública. Ações sanitárias caracterizadas por alocar recursos de forma mais rentável, buscando menores custos e maiores benefícios, foram sendo substituídas por estratégias advindas dos interesses do setor privado (GLOBEKNER, 2008, p. 3.775). O cuidado com a saúde, bem de importância primordial para a consolidação da dignidade humana, foi se tornando cada vez menos eficaz, mais custoso e, por isso, mais escasso. E é claro que, quanto mais escasso é um bem jurídico, mais difícil ele será tutelado pelo Estado.
Daí surge questão paradoxal: como pode o Estado se obrigar a prover os cuidados com a saúde de sua população, se os recursos capazes de realizar tal feito não estão todos ao seu alcance? Se a incorporação de tecnologias torna a saúde um bem cada vez mais difícil de ser distribuído equitativamente para a população? Para tentar suprir tal deficiência, as nações do mundo se dividiram entre dois paradigmas de sistema de saúde. Um dos paradigmas se baseia na alocação de recursos por parte da iniciativa privada, no qual ao Estado só cabe regular o mercado e realizar ações assistencialistas específicas. O segundo paradigma se refere à atenção universalista provida pelo Estado, que direciona o sistema público de saúde a toda a população (GLOBEKNER, 2008, p. 3.775). Independente do paradigma adotado, os países optam por sistemas híbridos, que comportam a participação do setor privado na promoção da saúde, seja de forma preponderante ou não.
A exploração econômica do serviço privado tem sido vista como necessária para suprir as deficiências da atuação estatal, seguindo a lógica do discurso neoliberal vigente na contemporaneidade. Seguindo essa linha de pensamento, a Constituição Federal brasileira de 1988 consagra o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde como um direito de cidadania (BORGES, 2011, p. 103), mas, por outro lado, permite que a iniciativa privada possa prestar serviços de assistência à saúde ou, até mesmo, fazer parcerias com o setor público, participando de forma complementar do sistema único de saúde.
Não foi apenas na realidade brasileira que o passar de algumas poucas décadas tornou clara uma constatação: as problemáticas advindas da má qualidade da prestação dos serviços de saúde não são inerentes ao setor público. A iniciativa privada, erigida basicamente sobre os planos privados de saúde, frequentemente encontram dificuldades relacionadas a recursos relativamente escassos diante das demandas de seus clientes. Na verdade, a mesma incorporação tecnológica exponencial que fundamentou a participação crescente de agentes privados na prestação de serviços de saúde acaba por prejudicar a sua sobrevivência. Como resultado disso, notou-se o surgimento de inúmeros conflitos entre os planos de saúde e seus consumidores que perduram até os dias atuais, principalmente oriundos das constantes elevações dos valores contratuais e das restrições de cobertura assistencial (SILVEIRA, 2009, p. 64).
Após essa apresentação geral sobre algumas das particularidades do direito à saúde, chega-se a duas percepções imediatas. A primeira delas se refere ao problema da alta onerosidade existente no modelo assistencial da saúde adotado, marcado por que alto incremento tecnológico, sem necessariamente provocar elevação proporcional nos padrões de saúde da sociedade. A revisão desse modelo não está entre os objetivos do presente estudo, mas compreender sua dinâmica é importante para se verificar que, conforme as particularidades do caso concreto, a cláusula da reserva do possível pode limitar a tutela do direito à saúde quando os tratamentos médicos indicados estiverem além dos limites financeiros das empresas ou do setor público. Frisa-se que, não adianta existir possibilidade jurídica enquanto a aplicação de uma tutela não for revestida também de possibilidade fática (GLOBEKNER, 2008, p. 3.779).
Da segunda percepção decorre um dos fundamentos que baseiam a temática deste estudo. Trata-se da necessária interferência pública no setor privado de assistência à saúde. Sem dúvida, embora a saúde seja inegavelmente um direito subjetivo público, é equivocada a concepção que a coloca exclusivamente nessa situação, já que este direito manifesta sua atuação também na relação entre os particulares (SAMPAIO, 2010, p. 53). Importante mencionar que a saúde é dotada de grande relevância pública, por ser um bem jurídico indispensável ao desenvolvimento social e econômico de toda uma nação. Com base em sua fundamentalidade, a Constituição Federal de 1988 dispõe que a iniciativa privada atuante na área da saúde está sujeita a normas, controle e fiscalização do poder público (WEICHERT, 2007, p. 343).
Dentre as ferramentas que consubstanciam a atuação do Estado na esfera privada, o Direito do Consumidor tem sido uma das mais importantes para a proteção da saúde dos usuários de serviços particulares. Os princípios da defesa do consumidor promovem subsídios para a aplicação de tutelas nos casos concretos onde a saúde das pessoas está sendo ameaçada pela exploração econômica desenfreada do mercado. Compreender o delineamento constitucional das relações de consumo, por isso, é o tema do tópico que se segue.

RODRIGUES, Raoni. Doença preexistente nos planos de saúde. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3506, 5 fev. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23649>. Acesso em: 6 fev. 2013.