sexta-feira, 7 de junho de 2013

A queima da palha da cana de açúcar: competência legislativa e fiscalizadora

Nos termos do art. 225, § 1º, V da CF/88, todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Incumbe ao Poder Público, para assegurar a efetividade deste direito, "controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente".

Determina o artigo 23 da Constituição Federal, outrossim, a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para, dentre outras providências, "proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas" (inciso VI), bem como "preservar as florestas, a fauna e a flora" (inciso VII). Compete à União, aos Estados e ao DF, ademais, legislar concorrentemente sobre "florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição" (art. 24, VI da CF-88)[6] .

Esclarece o texto constitucional, ainda, que "No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais" (art. 24, § 1º). Assim, enquanto compete à União fixar as normas gerais acerca da proteção ao meio ambiente e do controle da poluição, cabe aos Estados e ao DF regular particularidades e eventos específicos e suprir eventuais omissões das normas gerais federais.

Verifica-se, assim, nos dizeres de Consuelo Yoshida, competência legislativa concorrente / suplementar e competência administrativa comum[7].

No que respeita à legislação federal, há de se distinguir os dispositivos atinentes à possibilidade da queima daqueles concernentes à autorização, ao controle e à fiscalização de tal atividade.

Quanto à possibilidade da queima, dispunha o art. 27, caput do Código Florestal anterior (lei 4.771/65) ser "proibido o uso de fogo nas florestas e demais formas de vegetação". Nos termos do parágrafo único do mesmo dispositivo legal, contudo, "Se peculiaridades locais ou regionais justificarem o emprego do fogo em práticas agropastoris ou florestais, a permissão será estabelecida em ato do Poder Público, circunscrevendo as áreas e estabelecendo normas de precaução". O decreto 2.661/98, ao regulamentar o disposto no referido artigo 27, fixou em seu Capítulo II as regras para a "Permissão do Emprego do Fogo", com as condições necessárias à obtenção da "Autorização de Queima Controlada".

Determinou-se que "O emprego do fogo mediante Queima Controlada depende de prévia autorização, a ser obtida pelo interessado junto ao órgão do Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA[8] , com autuação na área onde se realizará a operação" (art. 3º), sendo tal autorização necessariamente precedida de uma série de providências por parte do interessado (arts. 4º e 5º[9]). A "Autorização de Queima Controlada", de seu turno, deverá "conter orientações técnicas adicionais, relativas às peculiaridades locais, aos horários e dias com condições climáticas mais adequadas para a realização da operação, a serem obrigatoriamente observadas pelo interessado" (art. 10).

Foram previstas, também, as possibilidades de "escalonamento regional do processo de Queima Controlada, com base nas condições atmosféricas e na demanda de Autorizações de Queima Controlada, para controle dos níveis de fumaça produzidos" (art. 13) e de suspensão da queima quando "constatados risco de vida, danos ambientais ou condições meteorológicas desfavoráveis", quando "a qualidade do ar atingir índices prejudiciais à saúde humana" ou quando “os níveis de fumaça, originados de queimadas, atingirem limites mínimos de visibilidade, comprometendo e colocando em risco as operações aeronáuticas, rodoviárias e de outros meios de transporte” (art. 14). Por fim, a própria "Autorização de Queima Controlada” poderá ser “suspensa ou cancelada pela autoridade ambiental" nos casos de "risco de vida, danos ambientais ou condições meteorológicas desfavoráveis", "interesse e segurança pública" ou "descumprimento das normas vigentes." (art. 15).

Determinou o mesmo decreto 2.661/98, igualmente, que o "emprego do fogo, como método despalhador e facilitador do corte de cana-de-açúcar em áreas passíveis de mecanização da colheita[10], será eliminado de forma gradativa, não podendo a redução ser inferior a um quarto da área mecanizável de cada unidade industrial ou propriedade não vinculada a unidade agroindustrial, a cada período de cinco anos, contados da data da publicação deste Decreto" [11](art. 16, caput), exceto no que respeita às lavouras de até cento e cinquenta hectares (art. 16, § 4º).

O emprego do fogo para fins de queima controlada, portanto, configura prática expressamente admitida e regulada pela legislação federal, inclusive quanto aos requisitos necessários à expedição, pelo órgão integrante do SISNAMA com atuação na respectiva área, da "Autorização de Queima Controlada".

Não há, destaque-se, qualquer determinação no sentido de que a referida Autorização não possa "abranger atividades agroindustriais ou agrícolas organizadas"[12]. Ao contrário, as diversas providências exigidas por parte dos interessados bem demonstram serem as atividades agroindustriais ou agrícolas organizadas o principal objeto dos referidos dispositivos legais e regulamentares.

Entendimento diverso, com o devido respeito, não pode ser aceito por implicar restringir onde a lei não restringe, ferindo princípio elementar de hermenêutica[13], como ensina Carlos Maximiliano: "Quando o texto dispõe de modo amplo, sem limitações evidentes, é dever do intérprete aplicá-lo a todos os casos particulares que se possam enquadrar na hipótese geral prevista explicitamente; não tente distinguir entre as circunstâncias da questão e as outras; cumpra a norma tal qual é, sem acrescentar condições novas, nem dispensar nenhuma das expressas."[14] Implicaria, ainda, atuar o Poder Judiciário como legislador positivo, disciplinando além do quanto previsto em lei, o que é igualmente inviável no sistema jurídico pátrio, em obediência ao princípio da separação dos Poderes[15].

Note-se que as referidas disposições do decreto 2.661/98 subsistem plenamente aplicáveis na medida em que a autorização do uso de fogo na vegetação, quando constatadas peculiaridades que a justifiquem, continuou possível com o advento do novo Código Florestal (lei 12.651/2012). Ademais, passou a haver, na própria lei, expressa determinação no sentido de ser competente para tal autorização o órgão ambiental estadual integrante do SISNAMA[16].

Com efeito, o art. 38 da lei 12.651/2012, de forma ainda mais clara e detalhada que o art. 27 do Código Florestal anterior, determina ser “proibido o uso de fogo na vegetação”, exceto, dentre outras situações, "em locais ou regiões cujas peculiaridades justifiquem o emprego do fogo em práticas agropastoris ou florestais, mediante prévia aprovação do órgão estadual ambiental competente do Sisnama, para cada imóvel rural ou de forma regionalizada, que estabelecerá os critérios de monitoramento e controle" (inciso I).

Determina o § 1º do mesmo dispositivo que, na referida situação, "o órgão estadual ambiental competente do Sisnama exigirá que os estudos demandados para o licenciamento da atividade rural contenham planejamento específico sobre o emprego do fogo e o controle dos incêndios".

Portanto, a queima da palha da cana já era legítima antes do novo Código Florestal (desde que, por óbvio, cumpridos os requisitos legais pertinentes), cujo advento apenas reforçou tal legitimidade, além de afastar qualquer dúvida quanto a ser cabível sua autorização pelo "órgão estadual ambiental competente do Sisnama".

De fato, quanto à autorização, ao controle e à fiscalização da queima da palha da cana, cumpre destacar que também eram de competência do órgão ambiental estadual antes mesmo do advento da lei 12.651/2012. Isto porque a lei 6.938/81 (e alterações), que dispôs sobre a Política Nacional de Meio Ambiente, criou o já referido SISNAMA, do qual fazem parte o Conselho de Governo ("com a função de assessorar o Presidente da República na formulação da política nacional e nas diretrizes governamentais para o meio ambiente e os recursos ambientais"); o CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente, como órgão consultivo e deliberativo); a Secretaria do Meio Ambiente da Presidência da República (órgão central, "com a finalidade de planejar, coordenar, supervisionar e controlar, como órgão federal, a política nacional e as diretrizes governamentais fixadas para o meio ambiente"), o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, "com a finalidade de executar e fazer executar, como órgão federal, a política nacional e as diretrizes governamentais fixadas para o meio ambiente"); "os órgãos ou entidades estaduais responsáveis pela execução de programas, projetos e pelo controle e fiscalização de atividades capazes de provocar a degradação ambiental" (grifos não originais); e "os órgãos ou entidades municipais, responsáveis pelo controle e fiscalização dessas atividades, nas suas respectivas jurisdições" (art. 6º, incisos I a VI).

Não há como negar, face ao disposto nos referidos art. 6º, V da lei 6.938/81 e 3º do decreto 2.661/98, a competência do órgão ambiental estadual integrante do SISNAMA para a autorização, o controle e a fiscalização da queima da palha da cana, antes mesmo do advento do novo Código Florestal.

Em suma, dúvida não remanesce acerca da possibilidade de tal prática e da competência do órgão ambiental estadual integrante do SISNAMA para autorizá-la, controlá-la e fiscalizá-la na vigência quer do Código Florestal anterior (lei 4.771/65), quer do atual (lei 12.651/2012).
(...)
Mário Luiz Oliveira da Costa é advogado do escritório Dias de Souza Advogados Associados S/C.
http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI180001,61044-A+queima+da+palha+da+cana-de-acucar+no+Estado+de+Sao+Paulo

A queima da palha da cana-de-açúcar no Estado de São Paulo: considerações preliminares

A queima da palha da cana, verificada antes da colheita, tem por objetivo eliminar, por combustão, folhas secas (as "palhas") e vegetação localizadas ao redor da cana-de-açúcar. Isto porque esta matéria vegetal não tem qualquer serventia e sua eliminação antes da colheita evita o transporte desnecessário (com o consequente aumento do custo por tonelada de cana transportada), do canavial para a usina, de material imprestável. Auxilia, especialmente, o corte manual da cana-de-açúcar, tanto por afastar animais que poderiam atacar o cortador da cana, geralmente encontrados nos canaviais (abelhas, aranhas, cobras e outros), quanto por reduzir o esforço físico despendido na atividade do corte (aumentando a produtividade) e, ainda, possibilitar ao trabalhador uma melhor visualização da área em que esteja promovendo o corte, reduzindo os riscos de, acidentalmente, vir a atingir seu próprio corpo.

A queima ocorre apenas na área a ser objeto da colheita, sempre "de fora para dentro" em relação a determinado perímetro previamente estabelecido, a fim de evitar que o fogo atinja outras áreas ou fuja de controle. Dá-se de forma rápida, a fim de assegurar a queima apenas da palha e do mato indesejáveis, e não da própria cana a ser colhida e industrializada. Ou seja, no caso da palha da cana-de-açúcar a sua queima[1] não objetiva eliminar toda a plantação (como se verifica em determinados cultivos como forma de "limpeza" da área a ser plantada[2]) - mesmo porque ela se renova dentro de certo período -, mas apenas reduzir riscos e custos, otimizando a colheita e a produção industrial.

É certo, todavia, que a fuligem decorrente da queima da palha de cana, ainda que estudos demonstrem não produzir degradação do meio ambiente propriamente dita, pode provocar grande incômodo às áreas vizinhas, assim como sério risco de acidentes, quando levada pelo vento para trechos de rodovias, momentaneamente reduzindo - ou até mesmo eliminando - a visibilidade (além de eventuais efeitos adicionais, comentados no item 2). Por esta razão, mesmo a queima da palha da cana não pode ser praticada de forma aleatória, conforme apenas e tão somente os interesses do proprietário da respectiva lavoura. Há de haver, sempre, prévia autorização das autoridades públicas competentes, às quais cabe verificar, por exemplo, quanto à adoção dos mecanismos de controle e segurança necessários, se a data e o horário escolhidos para a atividade mostram-se adequados, se há risco de redução da visibilidade em rodovias próximas (e neste caso, adotar previamente as providências cabíveis), dentre outras providências.

Não obstante a legislação paulista admita e regule a queima, bem como fixe termos finais para a sua prática (em complemento ao quanto disposto na legislação federal), inclusive antecipados de comum acordo entre o Governo do Estado e o setor sucroalcooleiro, alguns membros do Ministério Público do Estado de São Paulo e do Ministério Público Federal passaram a arguir sua ilegitimidade em sede de ações civis públicas. Em alguns casos pleiteiam a pura, simples e imediata proibição da atividade; em outros, seja ela necessariamente precedida de autorização do IBAMA. Sustenta-se, ainda, em determinadas ações, que a autorização - independentemente do órgão competente para tanto - deva ser precedida de licença ambiental específica para a atividade, bem como de EIA - Estudo de Impacto Ambiental e respectivo RIMA - Relatório de Impacto Ambiental.

Diversas decisões judiciais já foram proferidas acerca da matéria, tanto acolhendo quanto desacolhendo - de forma integral ou parcial - tais pleitos. Vejamos as peculiaridades envolvidas.
(...)

Mário Luiz Oliveira da Costa é advogado do escritório Dias de Souza Advogados Associados S/C.
http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI180001,61044-A+queima+da+palha+da+cana-de-acucar+no+Estado+de+Sao+Paulo

Benefício assistencial ao deficiente: impedimentos de longo prazo?

O Benefício Assistencial de Prestação Continuada (BPC), previsto na Constituição Federal e na Lei nº 8.742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS) é um direito fundamental destinado a amparar as pessoas idosas e deficientes cujas famílias não tenham condições de lhes prover um sustento digno. Trata-se de prestação assistencial, que independe de prévia filiação ao regime de previdência ou contribuições sociais.

De acordo com a Constituição Federal, o direito ao BPC é garantido nos seguintes termos:
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
(...)
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.
Da leitura do dispositivo, depreende-se que a Constituição Federal estabeleceu dois requisitos para concessão do benefício assistencial mensal no valor de um salário mínimo:
1) Ser a pessoa portadora de deficiência ou idosa; e
2) Não ter condições de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.

O objeto do presente estudo é o requisito da deficiência, atualmente concebido na Lei nº 8.742/93 como impedimentos de longo prazo que podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas.

2. Impedimentos de longo prazo.

Trata-se de requisito alternativo em relação à idade de 65 (sessenta e cinco) anos do requerente. Isto porque o benefício pode ser concedido ao idoso ou ao deficiente, desde que preenchidos os demais requisitos (renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo, e não receber qualquer outro benefício da Seguridade Social ou de outro regime, salvo o de assistência médica e pensão especial de natureza indenizatória).

As Leis nº 12.435/2011 e 12.470/2011 alteraram a redação da LOAS no que se refere ao requisito da deficiência do postulante ao benefício, passando a exigir que os impedimentos sejam há longo prazo, o qual foi estipulado em, no mínimo, dois anos. A primeira pergunta a ser feita é se a reforma legislativa representa uma modificação de fundo no conceito de deficiente para fins de concessão do BPC, ou se apenas redacional. Considerando que a Lei nº 8.742/93 foi editada para tornar aplicável o artigo 203, V da Constituição Federal, por ter sido ele considerado de eficácia limitada pelo Supremo Tribunal Federal, conclui-se que qualquer alteração legislativa não pode infringir o núcleo essencial do artigo 203, V da CF, sob pena de ser considerando inconstitucional.

Em outras palavras, o direito ao benefício assistencial foi previsto na Constituição Federal (artigo 203, inciso V), a qual delimitou os requisitos básicos, cabendo à lei de regência, no caso, a Lei nº 8.742/93 (LOAS), apenas “esmiuçar” o comando constitucional. Por esta razão, a interpretação possível acerca da alteração trazida pelas Leis nº 12.435/2011 e 12.470/2011, que modificaram a redação do artigo 20 da LOAS apenas será a de que não houve mudança na essência dos requisitos, em especial de pessoa portadora de deficiência, sob pena de afronta à Constituição.

Além disso, por se tratar de modificação recente, os tribunais não se manifestaram sobre a nova configuração do requisito da deficiência, o que torna ainda mais importante conhecer o posicionamento acerca da matéria antes da alteração legislativa para, a partir daí, chegar-se ao conceito atual e definitivo de “pessoa portadora de deficiência”.

3. Interpretação doutrinária e jurisprudencial da redação original da Lei nº 8.742/93

Em relação ao requisito da deficiência, o texto constitucional exige que o beneficiário seja deficiente, enquanto o artigo 20 § 2º da Lei nº 8.742/93 na redação original determinava que esta pessoa fosse incapacitada para o trabalho e para a vida independente, nos seguintes termos:

Para efeito de concessão deste benefício, a pessoa portadora de deficiência é aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho. (Redação anterior à alteração dada pela Lei nº 12.435/2011)
A simples leitura do dispositivo legal levaria à conclusão de que apenas as pessoas que não conseguem exercer atividades diárias como se vestir, banhar-se e alimentar-se poderiam ser destinatárias do benefício assistencial. Entretanto, esta não é a finalidade da norma constitucional, razão pela qual doutrina e jurisprudência pacificaram que a incapacidade para a vida independente deveria ter interpretação mais ampla do que a incapacidade para as atividades da vida cotidiana sem auxílio de terceiros, bastando a incapacidade para o exercício do trabalho.

A Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU), a propósito, já firmou posicionamento no sentido de que, para se aferir a incapacidade para os atos da vida independente para fins de concessão do BPC, não se exige que o indivíduo seja totalmente dependente de terceiros para os atos da vida cotidiana, mas, sim, que o pretendente ao benefício tenha efetivamente comprometida sua capacidade produtiva lato sensu. Neste sentido, a TNU editou a súmula nº 29, com o seguinte teor:
Para os efeitos do art. 20, § 2º, da Lei n. 8.742, de 1993, incapacidade para a vida independente não é só aquela que impede as atividades mais elementares da pessoa, mas também a impossibilita de prover ao próprio sustento.
Assim sendo, restou pacificado que a incapacidade que daria ensejo à concessão do benefício assistencial é a incapacidade laborativa, de prover o próprio sustento, e não para exercer atividades da vida cotidiana. Eis algumas ementas que demonstram este entendimento, a título exemplificativo:
PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. LEI Nº 8.742, DE 1993 (LOAS). REQUISITOS LEGAIS. PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA OU IDOSA. COMPROVAÇÃO DA IMPOSSIBILIDADE DE PROVER A SUA PRÓPRIA MANUTENÇÃO OU TÊ-LA PROVIDA POR SUA FAMÍLIA. HIPOSSUFICIÊNCIA FINANCEIRA. RENDA PER CAPITA INFERIOR A ¼ DO SALÁRIO MÍNIMO. DEFICIÊNCIA RECONHECIDA POR LAUDO PERICIAL. BENEFÍCIO CONCEDIDO A PARTIR DA DATA DA CITAÇÃO. CORREÇÃO MONETÁRIA. JUROS DE MORA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. HONORÁRIOS PERICIAIS. CUSTAS. ISENÇÃO. (...) 3. A incapacidade para a vida independente deve ser entendida não como falta de condições para as atividades mínimas do dia a dia, mas como a ausência de meios de subsistência, visto sob um aspecto econômico, refletindo na possibilidade de acesso a uma fonte de renda. 4. Laudo médico pericial (fls. 86/88) concluiu que, em razão das doenças, hipertensão arterial sistêmica, diabete mellitus, hipercolesterolemia e catarata, há incapacidade laborativa, "devido à extensão e gravidade das patologias por ela apresentadas e o caráter crônico e irreversível das mesmas". 5. Tendo, então, sido comprovada sua miserabilidade, por prova testemunhal (fls. 47/48), é forçoso reconhecer que tem a autora direito à concessão do benefício de assistência social, desde a data da citação, tendo em vista, a ausência do requerimento administrativo. (...)" (Tribunal Regional Federal da 1ª Região, AC - APELAÇÃO CIVEL – 200801990134355, Segunda Turma, e-DJF1 DATA:05/03/2009 PAGINA:186)[1]

PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSITENCIAL. LOAS. REQUISITOS LEGAIS PREENCHIDOS. INCAPACIDADE COMPROVADA POR LAUDO PERICIAL. APELAÇÃO IMPROVIDA. 1. O artigo 203, inciso V, da Constituição Federal prevê a concessão de benefício assistencial no valor de um salário-mínimo mensal ao idoso e à pessoa portadora de deficiência que comprovem não possuir meios de prover a própria subsistência ou de tê-la provida por sua família. O legislador ordinário regulamentou o benefício através da Lei 8.742/93, definindo como portador de deficiência, para fins da concessão do benefício, a pessoa incapaz para a vida independente e para o trabalho, e como família incapaz de prover a manutenção aquela cuja renda familiar per capita seja inferior 1/4 do salário-mínimo. 2. Quanto à verificação da deficiência - cerne da controvérsia -, deve-se ter como incapacitado aquele impassível de prover sua subsistência sob condições normais de trabalho e que não possua condições econômicas para prover sua manutenção por outros meios (TRF 4ª Região, AC 463283, Rel. Juiz CELSO KIPPER, DJU 12/03/2003), devendo o julgador estar atento às condições individuais do autor, sejam elas pessoais ou referentes ao meio social em que se encontra inserido. 3. Hipótese em que o laudo pericial atestou que a apelada foi acometida de poliomielite aos 4 anos de idade, doença que acarretou em "sequelas comprometendo todo membro inferior esquerdo, tornando-a incapaz de realizar qualquer atividade profissional". 4. O pleito sucessivo do INSS objetivando a anulação da sentença para que a perícia seja realizada por médico especialista em psiquiatria não merece acolhimento, pois resta bastante claro, pelo que consta nos autos, que a deficiência da autora não condiz em nada com problemas mentais, vez que se trata de sequela física decorrente de poliomielite. 5. Apelação improvida.(AC 00041195220104059999, Desembargador Federal Edílson Nobre, TRF5 - Quarta Turma, DJE - Data::14/04/2011 - Página::438.)
Saliente-se que, após a vigência das Leis nº 12.435/2011 e 12.470/2011, a jurisprudência continua considerando o requisito da deficiência como a incapacidade para o exercício de atividades laborativas, nos mesmos termos da redação original da LOAS. A manutenção deste entendimento, mesmo após a alteração legislativa, reforça o argumento de que a nova redação do artigo 20 da Lei nº 8.742/93 não consistiu em alteração substancial dos requisitos para a concessão do benefício, continuando a ser considerada a deficiência sob o aspecto econômico, que incapacita o requerente a exercer atividade laborativa apta ao sustento.
PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. LEI Nº 8.742, DE 1993 (LOAS). REQUISITOS LEGAIS. PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA. COMPROVAÇÃO DA IMPOSSIBILIDADE DE PROVER A SUA PRÓPRIA MANUTENÇÃO OU TÊ-LA PROVIDA POR SUA FAMÍLIA. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. HIPOSSUFICIÊNCIA FINANCEIRA. CONDIÇÃO DE MISERABILIDADE. CORREÇÃO MONETÁRIA. JUROS. MULTA. EXCLUSÃO. 1. A Renda Mensal Vitalícia será devida ao idoso, maior de 65 (sessenta e cinco) anos de idade ou ao inválido que não exercer atividade remunerada, não for mantido por pessoa de quem dependa obrigatoriamente e não tiver outro meio de prover o próprio sustento, na forma do art. 20 da Lei 8.742/93. 2. Restou comprovada a situação de vulnerabilidade social da autora, que percebe renda familiar per capita inferior a ¼ do salário-mínimo, previsto na Lei 8.742/93. 3. No tocante à incapacidade, conclui o perito médico que em razão da moléstia da autora, seqüela de poliomielite, ela está incapacitada para o trabalho rural de forma total e permanente (fls. 90/91) 4. A incapacidade para a vida independente deve ser entendida não como falta de condições para as atividades mínimas do dia a dia, mas como a ausência de meios de subsistência, visto sob um aspecto econômico, refletindo na possibilidade de acesso a uma fonte de renda. (...) (REO , JUIZ FEDERAL JOSÉ HENRIQUE GUARACY REBÊLO (CONV.), TRF1 - SEGUNDA TURMA, e-DJF1 DATA:20/10/2011 PAGINA:477.)
PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. REMESSA OFICIAL. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. LEI Nº 8.742, DE 1993 (LOAS). REQUISITOS LEGAIS. PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA. COMPROVAÇÃO DA IMPOSSIBILIDADE DE PROVER A SUA PRÓPRIA MANUTENÇÃO OU TÊ-LA PROVIDA POR SUA FAMÍLIA. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. HIPOSSUFICIÊNCIA FINANCEIRA. CONDIÇÃO DE MISERABILIDADE. TERMO INICIAL. CORREÇÃO MONETÁRIA. JUROS. (...) 2. A Renda Mensal Vitalícia será devida ao idoso, maior de 65 (sessenta e cinco) anos de idade ou ao inválido que não exercer atividade remunerada, não for mantido por pessoa de quem dependa obrigatoriamente e não tiver outro meio de prover o próprio sustento, na forma do art. 20 da Lei 8.742/93. (..) 6. O fato da renda familiar per capita ser superior a ¼ (um quarto) do salário-mínimo não impede que outros fatores sejam considerados para a avaliação das condições de sobrevivência da parte autora e de sua família, fazendo com que a prova da miserabilidade necessária à concessão do benefício assistencial seja mais elástica. 7. A incapacidade para a vida independente deve ser entendida não como falta de condições para as atividades mínimas do dia a dia, mas como a ausência de meios de subsistência, visto sob um aspecto econômico, refletindo na possibilidade de acesso a uma fonte de renda. 8. No tocante à incapacidade, conclui o perito médico que em razão da deficiência mental, o autor é incapacitado para o trabalho, de forma total e permanente, sem possibilidade de reabilitação para qualquer atividade, necessitando de auxílio de terceira pessoa para realizar tarefas cotidianas (fls. 49/51). (...) (AC 200836010007409, JUIZ FEDERAL JOSÉ HENRIQUE GUARACY REBÊLO (CONV.), TRF1 - SEGUNDA TURMA, e-DJF1 DATA:07/10/2011 PAGINA:244.)
Em relação ao grau de incapacidade para fins de concessão do benefício, a incapacidade para a vida independente não precisa ser total, podendo o BPC ser concedido quando é constatada pela perícia médica a incapacidade parcial, principalmente se considerarmos a condição social, cultural e intelectual da pessoa. A incapacidade parcial (conceito médico) que, aliada a outros fatores, impossibilita a inserção no mercado de trabalho também preenche o requisito para concessão do benefício assistencial. A jurisprudência também acolhe este entendimento:
PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. EMBARGOS INFRINGENTES EM APELAÇÃO CÍVEL. AMPARO SOCIAL. ART. 203, V da CF/88 E LEI Nº 8.742/93. IMPLEMENTO DOS REQUISITOS PARA CONCESSÃO. BENEFÍCIO DEVIDO. 1- A circunstância de o laudo pericial haver concluído pela incapacidade permanente porém parcial da autora para o trabalho não obstaculiza a concessão do amparo social quando existirem nos autos elementos que autorizem a conclusão de que a enfermidade mental, associada às precárias condições de instrução, cultura e formação profissional da autora, impossibilita a obtenção de recursos para sua subsistência, consistindo, na prática, em causa invalidante para o trabalho. Precedentes deste Tribunal. 2- Manutenção do acórdão turmário que, diante do implemento dos requisitos do art. 20 da Lei nº 8.742/93 (LOAS), reconheceu o direito ao benefício assistencial. 3- Embargos infringentes aos quais se nega provimento.(EIAC 20070599000037801, Desembargador Federal Marcelo Navarro, TRF5 - Pleno, DJE - Data::13/06/2011 - Página::117.)
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. ART. 20 DA LEI Nº 8.742/93 (LOAS) C/C ART. 34 DA LEI Nº 10.741/03 (ESTATUTO DO IDOSO). CONSTATAÇÃO DE INCAPACIDADE LABORAL. CONDIÇÕES PESSOAIS DESFAVORÁVEIS. ESTADO DE MISERABILIDADE. ESTUDO SOCIAL. RENDA FAMILIAR PER CAPITA INFERIOR A ¼ DO SALÁRIO MÍNIMO. COMPROVAÇÃO. CONSECTÁRIOS. TUTELA ESPECÍFICA. ARTIGO 461 DO CPC. OBRIGAÇÃO DE FAZER. IMPLANTAÇÃO IMEDIATA DO BENEFÍCIO. DEFERIMENTO. 1. Se a parte autora comprovar a sua deficiência, bem como a sua condição de miserabilidade, faz jus à concessão do benefício assistencial, nos termos previstos nos art. 20 da Lei nº 8.742/93. 2. Caso em que embora o laudo pericial conclua pela incapacidade parcial e permanente, considerando-se a patologia apresentada pela parte autora, além das condições pessoais desfavoráveis, notadamente a pouca escolaridade e sua idade, afigura-se correta ao presente caso a concessão do amparo assistencial. (...)3. A comprovação da situação econômica do requerente e sua real necessidade não se restringe à hipótese do artigo 20, § 3º, da Lei 8.742/93, que exige renda mensal familiar per capita não superior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo, pois a condição de miserabilidade poderá ser verificada por outros meios de prova. Precedentes do STJ. 4. Aplicação por analogia do disposto no artigo 34, § único da Lei nº 10.741/03 (Estatuto do Idoso), permitindo que a verba de natureza de caráter assistencial ou previdenciário, percebidos por idoso ou deficiente, sejam desconsiderados para fins de renda per capita. Precedente desta Corte. 5. Reforma da sentença para concessão do benefício assistencial de prestação continuada, a contar da data da perícia médica em juízo (09/10/2008), com o pagamento das parcelas em atraso. (...) 10. Deferida tutela específica da obrigação de fazer prevista no artigo 461 do Código de Processo Civil, para a imediata implantação do benefício previdenciário nos parâmetros definidos no acórdão, em consonância com o entendimento consolidado pela Colenda 3ª Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região no julgamento proferido na Questão de Ordem na Apelação Cível nº 2002.71.00.050349-7. 11. Inexistência de ofensa aos artigos 128 e 475-O, I, do CPC e ao artigo 37 da Constituição Federal, por conta da determinação de implantação imediata do benefício com fundamento no artigo 461 e 475-I do CPC. 12. Apelação provida. Determinada a implantação do benefício. (AC 200871080029295, FERNANDO QUADROS DA SILVA, TRF4 - QUINTA TURMA, D.E. 15/03/2010.) [2]
A Turma Nacional de Uniformização, da mesma forma, e dando interpretação à Súmula 29 (“Para os efeitos do art. 20, § 2º, da Lei n. 8.742, de 1993, incapacidade para a vida independente não é só aquela que impede as atividades mais elementares da pessoa, mas também a impossibilita de prover ao próprio sustento”), uniformizou o entendimento no sentido de que a incapacidade parcial que impossibilite a inserção no mercado de trabalho dá ensejo à concessão do benefício assistencial.

É preciso estar atento, entretanto, que não é qualquer caso de incapacidade parcial que autoriza a concessão do BPC. Para fins de benefício assistencial, a incapacidade parcial deve estar aliada à impossibilidade de inserção do mercado de trabalho devido à idade, grau de instrução e tipo de doença. No caso de incapacidade parcial em que haja possibilidade de reabilitação para o trabalho, o requisito da deficiência não estará preenchido, o que acarretará no indeferimento do benefício.
Não sendo constatada incapacidade para o exercício de atividade laborativa, o benefício não é devido, por estar ausente um dos requisitos essenciais.

Em suma, restou pacificado na jurisprudência que a condição de deficiente para efeito de concessão de benefício assistencial é verificada quando apurada incapacidade para o trabalho e para a vida independente. Assim sendo, a incapacidade que dá ensejo à concessão do benefício é a referente ao exercício de atividade laborativa, e pode ser parcial, desde que considerado o contexto em que o requerente está inserido e a impossibilidade de exercer o trabalho.

MESQUITA, Maíra de Carvalho Pereira. Benefício assistencial ao deficiente: impedimentos de longo prazo?. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3627, 6 jun. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/24641>. Acesso em: 7 jun. 2013.

De como fabricamos psicanaliticamente os menores delinquentes (Luiz Flávio Gomnes)

Em razão da ímpar oportunidade (tendo em vista que o legislador brasileiro está discutindo a questão da maioridade penal), vale a pena conhecer um trecho do livro O delinquente que não existe, de Juan Pablo Mollo, que estamos traduzindo (e que queremos publicar ainda este ano no Brasil). Segue o texto do autor citado:
O desamparo se transforma em crime por meio do sistema penal.
Quando as crianças fogem de seu lar e ficam nas ruas, começam um caminho difícil, sem rumo fixo, em situação de desproteção, suportando grandes privações. Como forma de defesa e subsistência, os meninos de rua organizam-se precariamente entre si, e tentam dispor de um mínimo apoio afetivo mediante a identificação comum que oferece o grupo. É evidente que os meninos de rua são altamente vulneráveis e, por isto, são uma “oportunidade” e um negócio para organizações criminais que lucram com a prostituição infantil, o tráfico de órgãos ou a exploração sexual e de trabalho dos menores etc.
 Sem uma pessoa adulta ou um “pai” que responda por eles, o grupo infantil perambula à deriva e tenta subsistir por meios lícitos e ilícitos, segundo o que encontrarem à disposição dia após dia. A mesma vulnerabilidade dos meninos torna explicável o roubo simples de carteiras, bicicletas ou celulares, que despois vendem para obter um dinheiro mínimo, gratificante em curto prazo. Com o tempo, se não são detidos e enviados a um reformatório, a associação de meninos de rua pode ser dirigida por organizações criminais dedicadas ao tráfico de drogas e outras mercadorias, ou realizar tarefas ilegais para a polícia.
 Esta breve descrição do caminho infantil à deriva é uma representação do fenômeno a partir do ponto de vista econômico-social; no entanto, existe outra lógica subjacente aos atos delitivos das crianças e adolescentes, que alcança uma dimensão afetiva: a fuga infantil intempestiva para a rua está relacionada com “ter sido deixado fora” (abandonado) por sua família de origem. Daí sua persistência em não voltar ao lar, ainda que em situações de desamparo extremo. A fuga da criança para a rua implica que “algo” insuportável lhe acontece em sua casa, e, por isto, o escape toma uma forma de precipitação, urgência subjetiva e sem referências, em direção à hostilidade de um mundo sem regras.
 Verifica-se na clínica psicanalítica que a fuga infantil é uma resposta subjetiva da criança ante uma diversidade de circunstâncias tais como a marca da rejeição, não se sentir querido, ser ferido ou explorado afetivamente, não resistir à violência ou aos conflitos familiares já intoleráveis, a morte de algum de seus pais, tios, irmãos, avós ou maior responsável etc. Assim, uma fuga desesperada, que mais é uma queda ou uma derrubada simbólica, joga-o a uma situação de desamparo e angústia pela perda de um apoio afetivo.
 O desamparo real nasce com a perda de um lugar no desejo do Outro, que não é um conceito abstrato, senão a certeza de “ser” algo para alguém concreto, neste caso um familiar ou um responsável pela criança. Em outras palavras, ter um lugar no desejo do Outro, encarnado em alguma das figuras familiares, supõe que a criança ou o adolescente é alojado, levado em consideração e sustentado, para além das palavras e das razões. Inversamente, sendo a rua o lugar dos que não têm lugar, a fuga infantil mostra bem a queda do desejo do Outro [daí a sensação de isolamento, de não pertencência].
 Por definição, ser deixado cair fora (ser abandonado) do desejo do Outro produz angústia, perda de recursos simbólicos e ações intempestivas. Logo, o salto ao vazio da rua devido à perda de um lugar não conceitual, mas real, lhe acrescenta outro desamparo mais tangível no plano social. Com efeito, a angústia pela perda de “alguém” que respondia por ele, visivelmente o deixa sem referências simbólicas e literalmente à deriva, fora das obrigações de horários e demais convenções sociais.
 Da angústia ao sistema penal
 Entretanto, não se trata da influência do ambiente físico ou social da família do menino, senão da ruptura de um “ambiente afetivo”, como causa do perambular da criança ou do jovem. Aqui, o desamparo não é social e não se trata da exclusão econômica e geográfica do marginal, mas da rejeição original e a queda subjetiva que sofre uma criança ou um jovem, para além de sua classe social.
 O abandono produz angústia e esta se transforma em ações intempestivas e inadequadas em relação às convenções sociais. Na verdade, a transformação da angústia em atos, já supõe estar fora da proteção das normas simbólicas; e por isto, tais atos inadequados constituem um chamado ao lugar perdido no desejo do Outro. As condutas antissociais de um menino de rua se dirigem a um Outro para que este responda por ele. Ou ainda, o comportamento antissocial constitui uma “chamada de atenção” porque, justamente, se perdeu a atenção de um Outro familiar.
 A partir desta perspectiva, as ações delitivas e associais do jovem delinquente constituem um modo de “golpear” as instituições sociais, suas normas e sua moral, com a finalidade consciente ou não, de ser incluído na legalidade perdida. Portanto, resulta primordial ingressar numa realidade “afetiva”, pacificadora da angústia, como condição de uma possível adaptação à legalidade social. Em outras palavras, o abandono inicial deixa o jovem como um objeto fora da lei, e por isto, seus atos delitivos esperam uma resposta do Outro para constituir-se como sujeito de uma lei. Quando não há resposta, a situação se agrava e se intensificam as atuações, incluindo-se o risco da própria vida.
 Não obstante, verifica-se na clínica psicanalítica que a certeza de ter “um lugar no desejo do Outro”, nestes casos, produz uma inclusão afetiva e social, cujo efeito é a recuperação da referência à norma. Por isso, tais atuações, que constituem uma série repetitiva de acting out, não configuram uma patologia, mas uma “zona de relação” vinculada ao desejo do Outro (Lacan). A angústia transformada em acting out, constitui uma etiologia delitiva sutil, cuja fenomenologia é ir à deriva, sem recursos simbólicos, porém em direção a entrar no cenário do mundo regrado e convencional.
 Precisamente, no início de 1900, averiguando o campo teórico clínico da criança e do adolescente, os primeiros psicanalistas já se opunham às teorias etiológicas constitucionalistas que influenciavam a criminologia da época, e rechaçavam a homologia do delinquente com as categorias psiquiátricas de psicopatas, inferiores ou perversos. Para os psicanalistas pioneiros na matéria, um ato delitivo ou uma conduta antissocial não constituía um diagnóstico, não valia por si mesma (Eissler), mas se distinguia da mera impulsividade (Blos) e respondia ao abandono (Aicchorn).
 Também, teorizavam que os conflitos que operavam na origem da tendência antissocial sobrevinham das separações prematuras e prolongadas (Bowlby), ou da carência da criança em relação a sua mãe (Winnicott). Em suma, as investigações psicanalíticas em torno da delinquência, as quais se desenvolveram no desamparo social das guerras mundiais, mantêm, hoje, toda sua vigência ante a situação de milhões de crianças e jovens que são forçados a sobreviver na rua. Os filhos da marginalização social da América Latina são os mesmos órfãos do pós-guerra europeu: jovens deixados cair fora (abandonados), que depois desencadeiam séries intermináveis de delitos e distúrbios, mostrando o objeto de descarte que são para o Outro.
 Assim, a delinquência juvenil é a materialização da angústia. As ações da criança ou jovem de rua, logicamente, terão que resultar inadequadas ou delitivas, pois sua direção inconsciente é convocar ao Outro. E precisamente, verifica-se clinicamente que os atos delitivos cedem quando a criança ou adolescente angustiado é alojado genuinamente no desejo do Outro. A delinquência juvenil é transitória e depende de uma resposta do Outro. Por exemplo, o caso de um jovem irmão que está na rua, não vai à escola, rouba, usa droga etc., e quando um tio distante, de maneira autêntica, o convidou a trabalhar numa quitanda e se encarregou dele, de pronto, o jovem respondeu plenamente, mudando rapidamente seu modo de vida anterior. O jovem retomou o colégio e deixou de roubar e se drogar, isto é, recuperou a legalidade a partir de ter a certeza de “ser” alguém para Outro.
 Mesmo expressado com extrema simplicidade, o exemplo deixa vislumbrar uma “cura” para o delinquente juvenil. Com efeito, se vindo do desamparo e do abandono primário, as transgressões à lei são tentativas angustiosas de buscar um Outro para ter onde se alojar, para além de todas as razões; então, se se oferece uma resposta adequada, uma terapêutica é possível para o ordenamento do delinquente juvenil. Sempre será uma resposta que permita a inclusão, ainda que não possa ser padronizada nem institucionalizada, pois necessita do desejo do Outro em singular; ou seja, requer do desejo singular de encarregar-se ou não, de quem, neste caso está à deriva.
 Alojar alguém no desejo do Outro não é uma operação conceitual, mas um efeito enigmático que compromete profundamente duas pessoas em nível de seus desejos. Tampouco é o significado de uma frase ou o valor das palavras, senão um efeito análogo ao súbito enamoramento. Por isso, em sentido estrito, a resposta “terapêutica” não é calculável, senão que está definida pelos efeitos concretos e reais de um “encontro” afetivo, que diminuiu a urgência e a patologia da conduta.
 Outras vezes, a marca do abandono original retorna e o jovem volta à rua e para uma tendência antissocial cada vez mais marcada. A situação de angústia se agrava com o passar do tempo e, às vezes, ao desamparado de anos, só lhe resta um lugar miserável no cárcere ou no hospital psiquiátrico, ou então suicidar-se. Tais são os extremos a que chegam as séries repetitivas de acting out, quando não há alguém que responda ao chamado.
 Indubitavelmente, nem todos os delinquentes são desamparados que atuam sem referências simbólicas. No entanto, a grande maioria dos delinquentes incluídos na subcultura criminal antes foi um jovem à deriva. Portanto, existe uma passagem do desamparo e angústia para a fixação da identidade delitiva ou criminosa. Desta forma, se a angústia se oculta atrás dos atos delitivos e sua dosificação pode produzir repentinamente uma mudança de posicionamento em relação às normas, então, a subcultura delitiva também é uma solução para a angústia.
 A passagem do desamparo ao clube criminoso constitui uma via de socialização com um aprendizado técnico e discursivo, cuja “graduação” realiza-se no cárcere, que define hierarquias. A tendência antissocial do jovem origina-se numa exclusão causal de sua família, por ter sido deixado cair fora do desejo do Outro (abandonado pelo Outro). E a subcultura subterrânea, própria da prisão, lhe oferece uma bússola para sua deriva angustiosa.
 Na subcultura criminosa são os ideais delitivos os que ordenam as ações delitivas que, neste caso, não chamam ao Outro, nem se produzem por uma transformação da angústia. O ideal delitivo é o rumo e a referência simbólica necessária para “ser” um delinquente e superar a angústia e a culpabilidade.
 Em outras palavras, o jovem que age a partir da angústia não pode se situar a partir de um ideal de referência; e inversamente, ao oferecer uma identidade, um horizonte e uma tradição, os códigos delitivos são formas simbólicas de ordenamento da delinquência. E a afiliação à subcultura e o início em uma carreira delitiva ou criminosa frequentemente se faz de duas formas, que conduzem à mesma fixação de uma identidade: o sistema penal e a criminalidade organizada. O cárcere e a máfia criminosa são dois dispositivos de transformação do abandono em identidade delitiva, que oferecem um “ser” no mundo, ali onde se “era” um resto abandonado para o desejo do Outro.
 Apesar de suas funções aparentes, o sistema penal é um eficaz aparato de reprodução da tradição criminosa. Logicamente, o acting out delitivo cessa quando o sujeito volta às normas e às identificações, para além de seu significado moral.
 Não obstante, a afiliação ao ideal delitivo não é repentina, mas sim um processo subjetivo ordenado por um grupo a que pertence. A identificação vai se assumindo paulatinamente até que se impõe, com valor de “ser” reconhecido pela comunidade delitiva ou criminosa. A busca de prestígio e a paixão pelo reconhecimento constituem uma referência ao Outro da subcultura criminosa; e, neste caso, o jovem à deriva deixa de agir por angústia e começa a atuar numa carreira criminosa que lhe traça um destino. Assim, o sistema penal soluciona a angústia do jovem abandonado, oferecendo-lhe a cultura da ilegalidade e do crime [é desta forma que nossa sociedade psicanaliticamente falando fabrica os menores delinquentes; Nietzsche quando fala da mais perigosa desaprendizagem sublinha: “Começa-se por desaprender a amar os outros e termina-se por não encontrar nada mais digno de amor em si mesmo” (Aurora)].

http://atualidadesdodireito.com.br/lfg/2013/06/06/de-como-fabricamos-psicanaliticamente-os-menores-delinquentes/

É sustentável a tese do desenvolvimento sustentável? (Eduardo Luiz Santos Cabette)


 1 – INTRODUÇÃO
 
O título proposto para este trabalho é formulado como uma indagação. E não poderia ser diferente, pois o que se pretende é suscitar o debate, possibilitando uma revisão crítica de certos conceitos que se tornaram praticamente indiscutíveis, sendo repetidos sem maiores meditações acerca de seu real alcance e conteúdo.
Responder à questão sob o prisma técnico seria realmente missão hercúlea, implicando a necessidade do conhecimento das mais diversas áreas da cultura e da ciência. Para esse objetivo nem o estreito espaço reservado a este breve artigo, nem muito menos o rol de conhecimentos (bastante limitado) do autor seriam suficientes.
Ainda que se pretendesse apresentar uma resposta mais geral, versando somente sobre a viabilidade da apresentação de um projeto amplo de desenvolvimento baseado no conceito de sustentabilidade, parece que tal empreitada não seria tão simples e, mais importante que isso, precisaria passar por uma prévia avaliação da validade ou legitimidade, sob o ponto de vista ecológico, da idéia de “desenvolvimento sustentável”. Antes de pensar em como aplicar a idéia em discussão nas diversas áreas da atividade humana, empreendendo os necessários estudos técnicos especializados, é imprescindível questionar se a concepção de um chamado “desenvolvimento sustentável”, expressão tão corrente nestes dias, corresponde realmente a uma nova alternativa, a uma verdadeira e profunda mudança paradigmática, que vá reverter o quadro de crise ecológica; ou se é apenas mais uma expressão vazia que só maquia, troca nomes, mas corresponde à continuidade de um modelo antiecológico.
Pretende-se, portanto, simplesmente lançar a questão, propondo o debate mediante a necessária revisão crítica do tema, a fim de que não prolifere a repetição automática de um jargão, sem a imprescindível reflexão de seu significado e implicações. Afinal, embora seja ecologicamente correta a luta em defesa das aves em extinção, nem por isso devem os ecologistas se permitir transformarem-se em papagaios que repetem e não refletem.

 2 – MUDANÇA OU CONTINUÍSMO?
 
É um lugar comum nos discursos sobre o enfrentamento da crise ecológica a alusão à emergência da adoção de um modelo inovador de “desenvolvimento sustentável”.
O uso dessa terminologia teve sua raiz na Conferência Mundial de Meio Ambiente de 1972, em Estocolmo. Daí em diante o termo tem sido repetido continuamente, sendo fato que na ECO – 92 foi empregado em “onze de seus vinte e sete princípios”.[1]
Em resumo, a idéia do “desenvolvimento sustentável” consiste no reconhecimento de que os “recursos naturais” não são inesgotáveis, de modo que as atividades econômicas e industriais não podem se desenvolver ignorando ou desprezando esse importante dado. Segundo Fiorillo, “o princípio do desenvolvimento sustentável tem por conteúdo a manutenção das bases vitais da produção e reprodução do homem e de suas atividades, garantindo igualmente uma relação satisfatória entre os homens e destes com o seu ambiente, para que as futuras gerações também tenham oportunidade de desfrutar os mesmos recursos que temos hoje à nossa disposição”.[2]
Não deixa de ser um progresso a tomada de consciência, embora tardia, quanto à necessidade de preservação ambiental. É positiva a iniciativa de pôr freios ao desenvolvimento depredador da natureza, destacando o fato concreto de que o destino da própria humanidade encontra-se ameaçado em virtude dessa prática irresponsável.
Inobstante verifica-se sem muita dificuldade, que o conceito e o sentido dado ao chamado “desenvolvimento sustentável” não altera o paradigma antropocêntrico e utilitário que tem marcado tradicionalmente a relação entre a humanidade e a natureza. Esta continua sendo enfocada sob um ponto de vista meramente instrumental, servindo sempre e somente para a satisfação das necessidades e dos interesses humanos.
Sem pretender levar a reflexão somente para o campo dos significado das palavras, mas considerando também relevante esse aspecto, é interessante notar que a própria insistência no termo “desenvolvimento” já indica uma tendência à perpetuação do modelo antiecológico dualista que promove uma ruptura entre o homem e o restante da natureza.
Como alerta Gonçalves, pagamos um preço “por não analisar o significado do que seja desenvolvimento que, antes de qualquer outra coisa, é des (+) envolver, isto é, quebrar o envolvimento dos homens e mulheres entre si e com a terra, com a água, com as plantas, com os animais, com o sol, com a lua (…). Assim, des (+) envolver é separar aqueles homens e aquelas mulheres da natureza; é torná-los livres dela. A natureza, assim, também separada desses homens e mulheres, deve estar livre para ser transacionada e apropriada por alguém que, como é da lógica desse processo, não é mais aquele que dela antes já dispunha sem precisar comprá-la”.[3]
A solução para a crise ecológica não pode ser satisfeita com essa espécie de concepção. Ao contrário do dualismo, da separação ou ruptura, está a exigir uma nova visão moldada sob uma ótica integradora do homem junto à natureza.
Portanto, há que ter em mente que “a expressão ‘sustentabilidade do desenvolvimento’, não significa um ajustamento complementar à racionalidade do desenvolvimento moderno (…). A sustentabilidade do desenvolvimento é um problema complexo, porque a sua essência está imbricada em um tecido de problemas inseparáveis, exigindo uma reforma epistemológica da própria noção de desenvolvimento”.[4]
Quando se fala em “desenvolvimento sustentável” deve-se ter clara essa noção de que uma verdadeira mudança de paradigma se impõe, inclusive superando o próprio significado literal e usual das palavras. Sem essa guinada radical, a expressão enfocada passa a fazer parte de um palavrório estéril que nada de revolucionário comporta e não pode contribuir efetivamente para a conformação de um novo modelo sócio – econômico voltado para princípios ecológicos de respeito à natureza.
No máximo, o que pode representar o chamado “desenvolvimento sustentável”, desprovido dessa ótica inovadora, é um retardamento dos processos de exploração e deterioração ambientais, mas não uma efetiva mudança de rumos.
Michel Serres exemplifica esse fenômeno com a metáfora de um navio que avança em alta velocidade na direção de uma rocha com a qual se chocará. Devido a isso, o Capitão determina que simplesmente se reduza a velocidade, esquecendo o essencial, que seria a alteração da rota. [5]
Sem perscrutar um sentido mais profundo de caráter revolucionário e inovador, “a expressão ‘desenvolvimento sustentável’ confunde e não simboliza uma nova forma de se pensar o mundo”. O desenvolvimento atrelado ao velho modelo espoliador e dominador “apresenta-se apenas como material e unidimensional, portanto, como mero crescimento” e “a sustentabilidade é apenas retórica e ilusória”.[6]
Como bem expõe Gudynas, “as atuais posturas de desenvolvimento sustentável exigem um enfoque crítico cauteloso. Nelas não se renuncia ao velho paradigma do desenvolvimento pelo crescimento econômico; pelo contrário, ele é ajustado a uma dimensão ecológica. Assim, a disseminação de uma nova política neoliberal, que enfatiza o mercado como cenário privilegiado das relações sociais, também está gerando sua própria política ambiental”.[7]
 
3 – CONCLUSÃO
 
No decorrer deste trabalho levou-se a efeito uma revisão crítica do conceito disseminado de “desenvolvimento sustentável”, apontando-se para seu uso indiscriminado e acrítico, num contexto de reprodução e continuidade de um modelo antropocêntrico e antiecológico de domínio e exploração do mundo natural.
Repensar os conceitos de desenvolvimento e sustentabilidade é um projeto emergencial que impõe uma mudança muito mais profunda do que simples paliativos ou processos de retardamento de um inevitável esgotamento das fontes de “recursos naturais”[8], sob pena de, ao invés de promover verdadeiras mudanças do modelo sócio – econômico no aspecto ecológico, simplesmente travestir o velho paradigma com uma nova roupagem, o que em nada contribui para a solução da crise ecológica, mas somente conduz à sua ocultação ou  dissimulação, fato este que tem o potencial de torná-la ainda mais perigosa, pois quando descoberto o equívoco, talvez já seja tarde demais.
A própria pretensão de manter uma coexistência equilibrada entre a preservação ambiental e o desenvolvimento econômico, “de modo que aquela não acarrete a anulação deste”[9], tendo como objetivo o crescimento ilimitado dentro do modelo econômico consumista do capitalismo, é algo que merece uma restrição severa quando de uma análise crítica séria de sua viabilidade. Em muitas situações ditos objetivos são mutuamente excludentes, de modo que a mudança paradigmática deve ser bem mais radical do que uma pretensa postura eclética, que pretende teoricamente conciliar o inconciliável.
Como esclarecido inicialmente, o objetivo deste trabalho não foi a apresentação de soluções para o problema ecológico em face do desenvolvimento, mas sim o levantamento  de um questionamento imprescindível como prévio requisito para qualquer abordagem séria do tema. Ficam, portanto, ao final, as perguntas: É sustentável a tese do desenvolvimento sustentável? Quais são as verdadeiras alternativas para a crise ecológica contemporânea? Qual seria um novo modelo sócio – econômico que superasse o antropocentrismo e respeitasse os princípios ecológicos? Qual o papel de cada um e das instituições (em especial da universidade) na construção de um novo paradigma ecologicamente correto?

http://atualidadesdodireito.com.br/eduardocabette/2013/06/06/desenvolvimento-sustentavel/

STJ: Ensino Superior e o Direito a Alimentos

No mês de fevereiro do presente ano, o STJ analisou uma situação revestida de instigante curiosidade: uma filha, de 25 anos de idade, com curso superior completo, ajuizou ação de alimentos contra seus genitores com base no poder familiar e a consequente obrigação de sustento e educação dos pais em relação aos filhos[1].

Prima facie, tem-se que, com a vigência do atual Código Civil (CC), em 2003, foi suprimida uma figura que carregava fortes laços com um passado mais rigoroso e patriarcal: o pátrio poder. Com efeito, nos tempos de vigência do Código Civill de 1916, inspirado no Código Civil francês de Napoleão Bonaparte, o pai era o responsável por manter e formar a família, entendendo-se englobado o dever de educar e sustentar os filhos. Era a definição de paterfamilias do Direito Romano, a quem era atribuída a função de provedor da família, dentre outras.

“Nesses primórdios, salienta Coulanges, o pai não era apenas o homem forte que protegia os seus e que tinha também a autoridade de fazer-se obedecer: o pai era, além disso, o sacerdote, o herdeiro do lar, o continuador dos ancestrais, o tronco dos descendentes, o depositário dos ritos misteriosos do culto e das fórmulas secretas da oração. Toda a religião residia no pai”.[2]

A esposa apenas contribuía com as atividades domésticas, mas não poderia, juridicamente, exercer qualquer figura de comando na família. “Não tendo um lar que lhe pertença, arremata Coulanges, nada possui que lhe dê autoridade na casa. Nunca dá ordens, nem mesmo é livre, nem senhora de si própria, sui juris”.[3]

Com o nítido avanço social e, sobretudo, com o reconhecimento mundial da extensão de direitos às mulheres (isonomia material), civilistas passaram a defender, de maneira acertada, que o comando familiar deveria ser exercido por ambos os pais e, somente na falta de um deles, o outro teria exclusividade nesse exercício.

Assim, desenvolveu-se a figura do poder familiar, hoje previsto no artigo 1631, do CC (que tem por base o artigo 226, §7º, CF/88) e entendido como um conjunto de direitos e deveres dos pais em relação aos filhos, conforme se extrai do artigo 1634, do referido CC.

Sendo assim, tomando-se por base a combinação dos artigos 1630 e 1635, inciso III, ambos do CC, verifica-se que os filhos menores estão sujeitos ao poder familiar até completarem a maioridade civil (artigo 5º, CC), oportunidade em que se verifica a extinção do poder familiar e, em princípio, a igual extinção da obrigação de sustento e educação por parte dos pais em relação aos filhos.

Portanto, levando em conta os dispositivos acima mencionados, o STJ fixou entendimento nos autos citados de que durante a menoridade, ou seja, até os dezoitos anos de idade, não é necessário que o alimentando (filho menor de idade) faça prova efetiva da inexistência de meios próprios de subsistência, o que se presume pela incapacidade civil, estando o dever de alimentos fundamentado no poder familiar.

Entretanto, uma vez maiores de idade, podem ainda os filhos pleitear e, mais que isso, fazer jus a alimentos por parte dos genitores. Porém, trata-se de medida excepcional e que demanda prova concreta em juízo da inexistência de meios próprios de subsistência, haja vista que, em relação ao maior de idade, não existe mais a presunção decorrente da incapacidade civil e do poder familiar.

Neste ponto, então, torna-se imperiosa uma diferenciação:

a) Se o filho maior de idade conseguir provar satisfatoriamente que não consegue, por conta própria, se manter e se sustentar, fará jus a alimentos;

b) Se estiver cursando(frequência regular) ensino superior ou curso técnico, após completar a maioridade civil, terá a seu favor presunção de dependência dos pais, pois os alimentos basear-se-ão na relação de parentesco e não mais no poder familiar, que se viu extinto pela maioridade civil;

c) Por outro lado, ao completar o ensino superior ou curso técnico, não terá mais em seu favor a presunção de dependência. Deste modo, para fazer jus aos alimentos, precisa demonstrar efetivamente a necessidade deles.

Resumindo, na letra “a”, tem que provar necessidade; na letra “b”, tem a seu favor presunção, não sendo necessário demonstrar a necessidade; na letra “c”, por distanciar-se da presunção, precisa demonstrar efetivamente a necessidade de alimentos.

Portanto, nosso Tribunal da Cidadania agiu de forma correta e, sobretudo, justa. Os filhos que precisam de alimentos devem, até por mandamento do artigo 1º, inciso III, CF/88, ter sua pretensão atendida. Nada obstante, existem parâmetros para que a justiça dessa concessão seja atingida, até porque, nos dizeres do Ministro Relator dos autos supra citados, há de se considerar que os filhos civilmente capazes e graduados podem e devem gerir suas próprias vidas, inclusive buscando meios de assegurar sua própria subsistência.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, doutorado e pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, reitor da Unorp;
 Antonelli Antonio Moreira Secanho, advogado, Bacharel em Direito pela PUC/Campinas e Pós Graduação “Lato Sensu” em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/São Paulo

http://atualidadesdodireito.com.br/eudesquintino/2013/06/06/stj-ensino-superior-e-o-direito-a-alimentos/