sábado, 14 de setembro de 2013

Paternidade intrauterina

O feto surge como agente de tutela estatal em várias oportunidades. A Declaração dos Direitos da Criança, promulgada pela Assembléia Geral da ONU, preconiza que a criança, em razão de sua imaturidade física e mental, necessita de proteção legal apropriada, tanto antes como depois do nascimento. O Estatuto da Criança e do Adolescente acrescenta ainda o direito de proteção à vida e à saúde, proporcionando um nascimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. Já não se pode limitar o direito do nascituro apenas ao de nascer. E sim ampliá-lo e agregar a ele o nascer com dignidade, com saúde, com a proteção Estatal necessária, extensiva à sua mãe, de quem é dependente na vida pré-natal. A assertiva é de fácil constatação e a esse respeito foi proposto um projeto de lei para considerar o embrião como dependente para fins de dedução na base de cálculo do imposto de renda, mas não vingou em razão do aborto provocado pelo legislador.
Pode o feto, desta forma, pela projeção alcançada, figurar como autor em ação de alimentos, investigação de paternidade e outros direitos compatíveis com sua condição de concebido, mas não nascido.
Pois bem. A lei nº 11.804, de 06/11/2008, conhecida como “alimentos gravídicos”, melhor seria se fosse “alimentos do nascituro” em apertado resumo, confere direito à mulher gestante, não casada e que também não viva em união estável, de receber alimentos, desde a concepção até o parto. Para tanto, deverá ingressar com o pedido judicial em desfavor do futuro pai. O juiz decidirá, no âmbito de uma cognição sumária, com base nos indícios de paternidade, a obrigação alimentar do suposto pai, que poderá contestar, mas em restrito núcleo cognitivo também. Os alimentos fixados permanecerão até o nascimento com vida, quando serão convertidos em pensão alimentícia e, a partir deste marco, poderão ser revistos pelas partes.
Trata-se, como se percebe, de uma de uma decretação provisória de paternidade, calcada somente em indícios. Eventual contestação pugnando pela realização de exame excludente da alegada paternidade será analisada após o nascimento da criança. É uma situação de incerteza que obrigará o suposto pai a arcar com a verba alimentar, não se afastando da finalidade da medida que é atingir uma procriação responsável, com o comprometimento integrado e solidário dos genitores, numa verdadeira guarda compartilhada intrauterina.
Feitas tais considerações, é de se concluir pela dificuldade da determinação da paternidade, que trabalha somente com indícios, elementos circunstanciais que gravitam em torno do fato principal sem, contudo, apresentar uma prova inconcussa. A não ser a colheita do líquido amniótico da gestante a partir de 14 semanas, que carrega risco de provocar o abortamento, por se tratar de procedimento invasivo.
Agora, no entanto, em razão evolução da engenharia genética, já é possível a realização no Brasil de exame não invasivo consistente na procura do DNA fetal circulante na mãe e compará-lo com o material fornecido pelo pretenso pai. O avanço científico é tamanho que, além do objetivo da paternidade, carrega precisão quase que incontestável no sentido de demonstrar que o feto seja portador de síndromes de Down, Edwards, Patau, Turner, Klinefelter e Triplo X.
Permanece sim a proibição de selecionar sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, mas não se questiona a realização do exame para diagnóstico pré-implantatório e testes genéticos visando verificar se o embrião é portador de alterações cromossômicas ou genéticas. Se a constatação for positiva, admite-se o procedimento corretivo.
A regra da paternitas incerta est cai por terra diante da precisão de referido exame e pode se dizer que a até então imutável afirmativa de que maternitas semper
certa est também não resiste quando se tratar de inseminação artificial heteróloga, prevista no artigo 1597, inciso III do Código Civil.
Se Machado de Assis vivesse nestes novos tempos quando escreveu Dom Casmurro, não deixaria o leitor tão ansioso a respeito da paternidade de Ezequiel, filho de Capitu. Apontaria a paternidade com toda segurança a Bentinho ou Escobar.
Mas também o romance perderia a riqueza do relato psicológico de cada personagem e a crucial pergunta se a “cigana oblíqua e dissimulada” traiu Bentinho.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado, mestre em direito público, doutorado e pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, reitor da Unorp.
Pedro Bellentani Quintino de Oliveira, bacharel em Direito pela Universidade Mackenzie, advogado.

Fonte: http://atualidadesdodireito.com.br/eudesquintino/2013/09/13/paternidade-intrauterina/