segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Desafios jurídicos frente à publicidade parasitária

A publicidade é fundamental para que o novo concorrente fixe sua marca no mercado nacional e estimule os consumidores a adquirirem seu produto/serviço em lugar daquele a que estão habituados. No entanto, como a conquista de mercado é árdua e seu ritmo não costuma atender às expectativas do investidor, estratégias pouco leais são, por vezes, utilizadas para acelerar o acolhimento pelo público do produto/serviço anunciado. Porém, nessa "corrida", alguns expedientes utilizados têm gerado controvérsia e causado debate nos segmentos publicitário e jurídico. Um deles é o da publicidade parasitária.
A tática comercial consiste em promover determinado produto/serviço à custa de desprestigiar os concorrentes. Na prática, como atalho para alcançar a divulgação esperada em curto espaço de tempo, o anunciante, a pretexto de fazer humor, confere aos competidores atributos negativos. Assim, a empresa se vale da confiabilidade e prestígio alheios para galgar reconhecimento e converter a audiência em potencial consumidor.
Por exemplo, o anúncio de que o automóvel do rival é mais caro e possui acessórios de qualidade inferior - independentemente de embasamento técnico - chega aos ouvidos do consumidor como convite a, no mínimo, um test drive, alcançando-se plenamente o objetivo do anúncio, que é a abertura do canal de comunicação empresa-consumidor.
Essa engenhosidade publicitária não se atém a atacar despropositadamente à concorrência. Para dar ar de credibilidade ao anúncio, são pinçados comentários de canais especializados para emprestar suposta superioridade aos produtos/serviços oferecidos. Por exemplo, se uma revista automotiva faz uma série de testes para avaliar determinado quesito, em determinada categoria, e, ao final, elege o veículo do anunciante como a melhor opção de compra, nada mais justo que a empresa divulgue esses resultados como certificado de qualidade. O problema, no entanto, é que a simples menção à conquista, não parece satisfazer algumas companhias que estão principiando na captação de clientes em mercado tomado por outras fortemente estabelecidas. Para ressaltar a qualidade de seu produto, preferem omitir o quesito em que se sagraram vencedores e tripudiar sobre os competidores - com tom pretensamente jocoso, mas, em muito, ofensivo e deselegante - bradando aos quatro ventos que os venceram. Assim, inoculam no consumidor a ideia de que seu produto, além de bom, é superior ao do famoso competidor, fazendo com que respeito e respaldo alheios sirvam para alavancar o sucesso de empresas jovens e/ou menores.
Ressalva-se que a propaganda comparativa é permitida, mas a forma pela qual é feita, sem a propagação de dados objetivos, pode desvirtuá-la e torná-la ilícita. Quando o espirituoso se torna ultrajante, cumpre ao Conar e ao Poder Judiciário vetá-la. A intervenção que parece simples, muitas vezes, entretanto, não tem surtido a eficácia desejada.
A seriedade do Conar é inquestionável, mas por se tratar de instituição privada, carece-lhe poder coercitivo, não podendo impor suas recomendações. Com isso, aquele que de má-fé iniciou campanha parasitária, não se verá impelido a cessá-la.
Já para dificultar a reação da empresa prejudicada perante o Judiciário, a publicidade parasitária costuma ser iniciada aos finais de semana. Veja: se a mobilização de advogado, coleta de provas e elaboração de peça processual demandam razoável tempo, imagine o apuro da companhia vitimada ao ter de adotar essas providências fora do horário comercial!
Ainda que consiga, terá que contar com a disponibilidade do Poder Judiciário, que funciona em regime de plantão e, em razão do menor número de funcionários, elenca determinadas prioridades. Como pleitear urgência ao juiz para destacar um oficial de Justiça para intimar a empresa a retirar a publicidade do ar quando na mesma fila pode haver, por exemplo, pedidos referentes à guarda de menores e urgências médicas? Sem falar no avassalador volume de processos que atola o Judiciário diariamente, culminando em sua conhecida morosidade. A empresa é vitimada pelo próprio sistema.
Pior. Mesmo quando todas as diligências para retirar o anúncio são frutíferas, o Judiciário tem decepcionado na quantificação da indenização devida pelos danos ocasionados pela veiculação da publicidade parasitária. Com o receio de gerar enriquecimento sem causa, aplica condenações que deixam de inibir a prática desleal, condenando empresas ao pagamento de valores que desconsideram seu porte e a amplitude de sua campanha. Para aquelas que usam desse expediente, a decisão que as condena a pagar alguns milhares de reais à vitimada é inócua, pois o retorno imediato excede a sanção e o investimento - o qual costuma ser muito superior (vide valor de anúncio em horário nobre) à própria condenação, a ser paga somente após longos anos de processo.
Cientes dessa deficiência, as infratoras passam a contingenciar o ilícito, aferindo as vantagens econômicas da infração ao direito das concorrentes. Infelizmente, a falta de sanção adequada para coibir a prática, por vezes, incentiva empresas pouco ciosas da ética a enveredar pelos abusos publicitários.

Victor Moraes de Paula é advogado da área de Contencioso Cível do escritório Trench, Rossi e Watanabe Advogados.
Vinicius de Freitas Giron é advogado da área de Contencioso Cível do escritório Trench, Rossi e Watanabe Advogados.

 http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI191454,41046-Desafios+juridicos+frente+a+publicidade+parasitaria

Alienação parental: Direito à convivência ampla sobrepõe-se à vontade do guardião

A síndrome da alienação parental, também denominada de síndrome de implantação de falsas memórias, inicialmente foi tratada apenas pela psiquiatria, sendo pioneiro o estudo feito por Richard A. Gardner (1931-2003), professor da Universidade de Columbia e membro da Academia norte-americana de Psiquiatria da criança e do adolescente.[iii]
Nas hipóteses de ruptura da vida conjugal ou de união estável, em que sobrevieram filhos, aquele que detém sua guarda, não conseguindo superar a separação, passa a induzir os filhos a afastarem-se do pai, convencendo-os da ocorrência de fatos inverídicos, desabonadores da conduta do não guardião, incorrendo na prática da síndrome da alienação parental. Neste caso, todo o sentimento de angustia, raiva e frustração pelo fim do relacionamento amoroso é transferido ao filho, para que este passe a repudiar o pai, esvaziando sua relação afetiva e vingando, ainda que inconscientemente, o abandono sofrido pela mãe.
Esse alienador passa, assim, a incutir nos filhos sentimentos de raiva, vingança e, gradativamente, convence-os de que o ideal é o afastamento total do outro genitor.
O filho sentindo-se responsável pela injustiça cometida ao genitor alienado sofre ainda mais, reforçando todo o desamparo que já sentia pela falta de convivência, agravado agora pela tristeza de saber que genitor guardião teve coragem de usa-lo como instrumento do mal sofrido.
Em razão de toda essa desmoralização, as crianças e/ou os adolescentes repelem as visitas e, com a saúde emocional abalada, apresentam os primeiros sintomas da referida síndrome, quais sejam, demonstrações de rejeição e ódio infundados pelo genitor não guardião.
A jurisprudência encontrava dificuldades para reconhecer a síndrome da alienação parental, especialmente quando o genitor guardião alegava prática de abuso sexual dos menores, uma vez que, em algumas ações, as perícias feitas por psicólogos, médicos e assistentes sociais não eram conclusivas sobre a veracidade ou não do alegado.
A despeito disso, adotava interpretação da síndrome da alienação parental antes mesmo da promulgação da lei específica, como demonstram os julgados abaixo indicados. [iv]
A promulgação da Lei 12.328/2010 trouxe um instrumento a mais para sanar essa complexa questão, estabelecendo conceitos e atos caracterizadores da síndrome. Ainda, prevê parâmetros mínimos e exemplificativos da sua ocorrência, formas coibitivas da sua prática e de minoração das consequências da alienação.
Observa-se, portanto, que o legislador ampliou o rol de alienadores, incluindo qualquer detentor de poder, tutela ou guarda, incluindo nesse caso as madrastas e padrastos, que diante das novas formações familiares, recebe um papel de destaque.
O alienador, aquele que pratica um dos atos descritos pela lei de alienação, retira da criança ou adolescente, o direito de conviver, amar, conhecer o genitor não guardião, bem como criar uma relação de afeto. Muitas vezes a campanha de desqualificação do alienado não é praticada pelo outro genitor, mas por pessoas de seu convívio, como avós, tios, padrastos e madrastas.
É certo que a criança ou adolescente muitas vezes não tem condições de discernir para saber se o que está sendo dito pelo alienador é verdade, mas ainda que ele consiga o discernimento necessário para saber que se trata de informação inverídica, nada poderá fazer, já que está sob a autoridade do alienador.
No artigo 2º, incisos I a VII, apresenta formas exemplificativas de atos de alienação parental:
“I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade;
II - dificultar o exercício da autoridade parental;
III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor;
IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar;
V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço;
VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente;
VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós.”
Na prática, tem sido comum, situações em que a guardiã muda de cidade, até mesmo de estado, sem qualquer estrutura, emprego ou família que a ampare, simplesmente para que o pai, o responsável pelo fim da relação amorosa, sofra com o distanciamento criado. É claro que com a mudança de estado as visitas semanais não poderão mais acontecer, o encontro entre pai e filhos ocorrerá, quando muito, duas vezes ao ano. Fica evidente que o objetivo da guardiã não é a tentativa de construção de uma nova vida em outro local, mas compelir o genitor não guardião a retomar o casamento ou a união estável. Lamentavelmente os filhos sendo usados como moeda de troca. O alienador não consegue reconhecer que seu filho é uma pessoa dotada de direitos da personalidade, direitos distintos dos seus e que possui, dentre esses direitos, o de conviver ampla e irrestritamente com o seu genitor.
Insta consignar que nem sempre é salutar para o menor, diante de uma alteração abrupta de domicilio, cujo objetivo do guardião seja o afastamento deliberado entre o filho e seu genitor, a modificação da guarda.
Na prática, constatamos um grande número de denuncias de abuso sexual, os quais em muitos casos não são comprovados, mas denuncias que na pratica surtiram o efeito desejado, qual seja, o rompimento do convívio familiar, já que diante da apresentação de uma denuncia tão grave o juiz não tem outra alternativa senão suspender a visitação até que o fato seja esclarecido. Nas palavras de Maria Berenice Dias:
“Diante da gravidade da situação, acaba o juiz não encontrando outra saída senão a de suspender a visitação e determinar a realização de estudos sociais e psicológicos para aferir a veracidade do que lhe foi noticiado. Como esses procedimentos são demorados- aliás, fruto da responsabilidade dos profissionais envolvidos-, durante todo este período cessa a convivência do pai com o filho. Nem é preciso declinar as sequelas que a abrupta cessação das visitas pode trazer, bem como constrangimentos que as inúmeras entrevistas e testes a que é submetida a vitima na busca da identificação da verdade”.[v]
Além do prejuízo psicológico, a prática de atos de alienação caracteriza abuso moral. Assim, por ser um direito fundamental da criança e do adolescente a convivência familiar saudável, seu reconhecimento poderá ser pleiteado via ação autônoma ou nos autos de qualquer espécie de ação.
Dispõe o artigo 3º, da Lei 12.310 de 2010, que a pratica da alienação parental fere o direito fundamental que o menor tem de convivência familiar saudável e constitui abuso moral contra a criança.[vi]
A partir do requerimento da aplicação da lei de alienação parental, realizado por quaisquer das partes, de ofício e em qualquer momento processual, o feito terá tramitação prioritária e, após oitiva do membro do Ministério Público, o juiz determinará sejam praticadas medidas provisórias necessárias para preservação da integridade psicológica da criança ou do adolescente, assegurando sua convivência com genitor ou viabilizando a efetiva reaproximação entre ambos, se for o caso.
Muitas vezes diante da apresentação do fato do cometimento de algum dos atos de alienação ao Poder Judiciário, o magistrado decide por suspender a visita até que o estudo psicossocial seja realizado. Ocorre que como a Justiça é morosa esses estudos demoram, e durante todo esse período a convivência restará prejudicada[vii]. O grande problema que surge é que se for constado que os fatos apresentados não são verdadeiros, a convivência já foi interrompida e já foi criado no filho um sentimento de abandono, uma vez que ele não vai ter a percepção verdadeira dos fatos, vai acreditar que o genitor não guardião não o ama mais, por isso não vem efetuando a visitação.
Garante-se, também, a visitação assistida, ressalvados os casos em que há iminente risco de prejuízo à integridade física ou psicológica da criança ou do adolescente, atestado por profissional eventualmente designado pelo juiz para acompanhamento dessas visitas.
Haverá, no curso do processo, realização de perícia psicológica ou biopsicossocial, feita por perito ou equipe multidisciplinar designada para verificar a ocorrência de alienação parental, no prazo de 90 dias, prorrogável exclusivamente por autorização judicial baseada em justificativa circunstanciada.
Constatados atos típicos de alienação parental ou qualquer conduta que dificulte a convivência da criança ou do adolescente com um dos genitores, o juiz poderá, nos termos do artigo 6º, sem prejuízo da responsabilização civil ou criminal, cumulativamente ou não:
“I - declarar a ocorrência de alienação parental e advertir o alienador;
II - ampliar o regime de convivência familiar em favor do genitor alienado;
III - estipular multa ao alienador;
IV - determinar acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial;
V - determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada ou sua inversão;
VI - determinar a fixação cautelar do domicílio da criança ou adolescente;
VII - declarar a suspensão da autoridade parental.”
O parágrafo único deste mesmo artigo prevê que, caracterizada mudança abusiva de endereço, inviabilização ou obstrução à convivência familiar, o juiz também poderá inverter a obrigação de levar ou retirar a criança ou adolescente da residência do genitor, por ocasião das alternâncias dos períodos de convivência familiar.
As sanções são apresentadas pela lei de forma gradativa, de tal forma que o magistrado, diante da ocorrência de algum dos atos de alienação, inicialmente, advirta o alienador para que a alienação reste cessada. Insta destacar que o mais importante é que o ato de alienação cesse e que se consiga restabelecer a convivência familiar, já que toda criança e adolescente tem o direito de ter no seu desenvolvimento e formação impressões da família materna e paterna.
A nova lei determina que a atribuição ou alteração da guarda será deferida preferencialmente ao genitor que viabiliza a efetiva convivência da criança ou adolescente com o outro genitor nas hipóteses em que seja inviável a guarda compartilhada. Tem-se, assim, parâmetro legal que deverá ser utilizado pelo julgador quando da análise do pedido de guarda ou sua alteração, preservando-se sempre o interesse do menor.
Houve veto ao artigo 9º que estabelecia adoção do procedimento de mediação, haja vista que o direito da criança e do adolescente à convivência familiar é indisponível, nos termos do artigo 227 da Constituição Federal, não cabendo sua apreciação por mecanismos extrajudiciais de solução de conflitos.
Verifica-se, assim, que a legislação referente a síndrome da alienação parental, ao lado da Lei da Guarda Compartilhada (Lei 11.698/08), a “Lei Clodovil” (Lei 11.924/09 — que permite ao enteado adotar o sobrenome do padastro, valorizando dessa forma a posse do estado de filho) e Emenda Constitucional do Divórcio ( EC 66/10) concretizam a constitucionalização do Direito de Família, preservando-se e privilegiando-se o princípio da dignidade da pessoa humana.
Especificamente, em relação a síndrome da alienação parental, tem-se que o direito do filho a uma convivência ampla, possibilitando a construção de laços de afetividade com ambos os genitores, deve sobrepor-se às vontades do seu guardião.
[iii] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, pág. 108
[iv] Evidenciada o elevadíssimo grau de beligerância existente entre os pais que não conseguem superar suas dificuldades sem envolver os filhos, bem como a existência de graves acusações perpetradas contra o genitor que se encontra afastado da prole há bastante tempo, revela-se mais adequada a realização das visitas em ambiente terapêutico. Tal forma de visitação também se recomenda por haver a possibilidade de se estar diante de quadro de síndrome da alienação parental. Apelo provido em parte. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70016276735, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 18/10/2006)
[v] Síndrome da alienação parental, o que é isso?. Disponível em www.mbdias.com.br. Acesso em 18/02/13.
[vi] BRASIL. Lei nº 12.318, de 26 ago. 2010.
[vii] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. P. 452
Referências
DIAS, Maria Berenice. Op. cit., p 48. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
______, Síndrome da alienação parental, o que é isso?. Disponível em www.mbdias.com.br. Acesso em 18/02/13.
OLIVEIRA, Carlos Nazareno Pereira de. Alienação parental: ilícito civil hábil a ensejar um dano de ordem moral e uma consequente reparação pecuniária. Disponível em:
MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 3ª. edição. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

Renata Rivelli Martins dos Santos é professora de Direito Civil e Empresarial na Universidade Metodista de Piracicaba
Fabiane Parente Teixeira Martins é advogada, mestre em Direito Ambiental pela Universidade Metodista de Piracicaba. professora de Direito Civil e Ambiental da Universidade Metodista de Piracicaba, coordenadora do curso de Especialização em Direito Ambiental da Unimep, professora Responsável pelo setor de Conciliação Pré-Processual das Varas de Família da Comarca de Piracicaba e diretora do Instituto de Estudos de Direito e Cidadania.
Revista Consultor Jurídico, 1º de dezembro de 2013
http://www.conjur.com.br/2013-dez-01/direito-convivencia-genitores-sobrepoe-vontades-guardiao

Testemunho de julgador sobre criação de norma é decisivo

Em sua última participação nesta coluna, Carlos Bastide Horbach pergunta: “é preciso mais deliberação no Supremo Tribunal Federal?” A seguir, dentre outras considerações, destaca a importância de membros do Supremo Tribunal Federal experimentados na seara política. A propósito, vale aprofundar algumas reflexões sobre o ponto, mormente para projetar emprego consistente de um dos mais elementares métodos de interpretação constitucional, o histórico.
Há alguns anos, em palestra na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, José Manuel Cardoso da Costa, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que presidiu durante quase quinze anos o Tribunal Constitucional português, destacava a importância de compor uma Corte Constitucional com pessoas de “diferentes sensibilidades”.
Com efeito, órgão da espécie, no melhor sentido da expressão, é um órgão político, uma vez que protege um documento eminentemente político, a Constituição. Não pode ser um órgão partidário, mas é natural que seja político. Para tanto, é essencial que tenha em seus quadros pessoas de diferentes sensibilidades, ou seja, egressos da magistratura de carreira, do Ministério Público, da advocacia (pública e privada), da academia e da própria “seara política”, representativos de variadas maneiras de compreender o mundo, aí incluídos positivistas, jus-naturalistas, etc.
Historicamente, a composição do Supremo Tribunal Federal é bastante plural, como decorrência direta do mecanismo de escolha, que demanda concurso de vontades entre a Presidência da República e o Senado Federal (indicação presidencial submetida à aprovação da maioria absoluta dos senadores, aprovação essa que é antecedida de sabatina do indicado). Claro, essa avaliação positiva, talvez otimista, não é impeditiva de eventuais ajustes, quiçá aperfeiçoamentos, como a adoção de mandatos para os membros da corte (mas isso escapa ao objeto desta exposição).
Nessa pluralidade há espaço para parlamentares experimentados que se tornam membros do Supremo Tribunal Federal, a maioria vocacionada a alcançar grande reconhecimento. A propósito, vale mencionar o ministro Epitácio Pessoa (que ocupou cargos de destaque em todos os poderes constituídos, inclusive o de presidente da República), os ministros Adauto Lúcio Cardoso, Bilac Pinto, Aliomar Baleeiro e Prado Kelly (membros proeminentes da chamada “banda de música” da UDN, parlamentares de reconhecida qualidade e exímios oradores) e, em tempos mais recentes, os ministros Paulo Brossard, Maurício Corrêa e Nelson Jobim.
É de importância estratégica a ocorrência, em cada composição do Supremo Tribunal Federal, de ao menos um egresso da seara política, sobretudo da parlamentar. Isso porque são habilitados a trazer aporte de sensibilidade política acerca das questões constitucionais, bem como realizar, por meio de testemunho direto, interpretações constitucionais históricas, em especial no que se refere aos trabalhos parlamentares.
Claro, membros com outras origens, inclusive magistrados de carreira, também podem realizar — e o fazem — a contento interpretações constitucionais históricas, inclusive relativamente aos trabalhos parlamentares. No recente caso da Ação Pena 470/MG, relator o Ministro Joaquim Barbosa, julgada em 17 de dezembro de 2012, os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, não obstante tenham chegado a conclusões diferentes, recorreram, com grande destreza, aos trabalhos constituintes para exata compreensão dos dispositivos constitucionais implicados. O mesmo se diga do ministro Celso de Mello, cujo voto de relator na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.010/DF, julgada em 30 de setembro de 1999, recorreu, com precisão cirúrgica, aos trabalhos parlamentares para concluir que a rejeição a determinado dispositivo — quando da apreciação de proposta de emenda constitucional — implicou vedação (a partir de 15 de dezembro de 1998, data de promulgação da Emenda Constitucional 20) à possibilidade de cobrança de tributo (contribuição de inativos) até então praticado por estados brasileiros.
Por outro lado, não há como desconhecer a importância de um testemunho direto na matéria. Por exemplo, diversos são os votos do ministro Aliomar Baleeiro com rigorosa atenção ao contexto político em que a norma foi concebida. Praticava, com clareza e autoridade, interpretações que não desconheciam a mens legislatoris: “Não é demais recordar, neste assunto, a reserva dos hermeneutas aos trabalhos legislativos. Não sou dos que participam dessas restrições, pois, não raro, a ratio iuris brota vigorosamente da ‘exposição de motivos’ da ‘justificação’ do projeto, sobretudo quando provêm do líder representativo de considerável grupo parlamentar.” (voto do ministro Aliomar Baleeiro no RE 58.356/GB, relator o ministro Hermes Lima, julgado em 28 de setembro de 1966).
Nesse sentido, relativizava o valor da letra da lei, não para decidir de modo contrário à lei, mas, sim, para decidir em harmonia com a vontade parlamentar: “Tenho que a letra vale menos do que o espírito, a ratio juris, enfim a política legislativa.” (voto do ministro Aliomar Baleeiro no RE 68.015/GB, relator o ministro Luiz Gallotti, julgado em 5 de novembro de 1969).
Claro, o sentido da letra da lei, a mens legis, é limite para a mens legislatoris. Aquela primeira, uma vez ultimado o processo legislativo, ganha autonomia e primazia relativamente a essa segunda, tanto que o próprio ministro Aliomar Baleeiro afirmava: “Não me cabe, sr. presidente, psicanalisar os eminentes representantes da Nação.” (Recurso Extraordinário n. 62.731/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 23 de agosto de 1967). No entanto, claro, isso não exclui tomar em consideração – máxime quando bem documentado – o trabalho parlamentar como elemento importante de uma interpretação histórica a ser feita com máxima solidez e segurança.
Em tempo mais recente, e para citar exemplo da maior importância, vale mencionar o testemunho dado pelo ministro Nelson Jobim na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.600/UF, relator o ministro Sydney Sanches, julgada em 26 de novembro de 2001, acerca de trabalhos parlamentares — inclusive no que se refere a “inconsistências” do seu resultado — para avaliar a constitucionalidade ou não da exigência do ICMS na prestação de serviço de transporte aéreo de passageiros. Foi justamente o seu voto que prevaleceu.
O dever de fidelidade partidária, firmado pelo Supremo Tribunal Federal, também revela o papel estratégico de uma interpretação histórica abrangente dos trabalhos parlamentares pertinentes, com testemunho direto dado por um dos protagonistas da própria história, primeiro como parlamentar, depois como ministro do STF e, por fim, como advogado de causa subsequente, em que veio a prevalecer a sua compreensão das coisas. Com efeito, o dever de fidelidade partidária foi excluído no Mandado de Segurança 20.927-5/DF, relator o ministro Moreira Alves, julgado em 11 de outubro de 1989. Nele ficou vencido o ministro Paulo Brossard. Transcorridos quase vinte anos de intenso transfuguismo partidário, o Supremo — logo após eloquente sustentação oral do agora ministro aposentado Paulo Brossard — estabeleceu, nos autos dos Mandados de Segurança 26.602/DF, relator o ministro Eros Grau, 26.603/DF, relator o ministro Celso de Mello, e 26.604/DF, relatora a ministra Cármen Lúcia, todos julgados em 4 de outubro de 2007, o dever de fidelidade partidária.
Enfim, a análise de jurisprudência constitucional revela a importância da interpretação histórica, bem como a essencialidade de tomar em consideração os trabalhos parlamentares levados a efeito quando da interpretação da norma constitucional (ou legal) em questão. Para isso, contribui de modo decisivo o testemunho direto que possa ser dado por julgador que eventualmente tenha vivenciado de modo direto os fatos da política plasmados na Constituição.

José Levi Mello do Amaral Júnior é professor de Direito Constitucional e doutor em Direito do Estado pela USP, e procurador da Fazenda Nacional.
Revista Consultor Jurídico, 1º de dezembro de 2013
 http://www.conjur.com.br/2013-dez-01/analise-constitucional-testemunho-juiz-criacao-norma-decisivo

Reconhecimento voluntário: Dúvida não autoriza anulação de registro de filho

É impossível declarar a nulidade do registro de nascimento, após o reconhecimento voluntário da paternidade, sob a simples alegação de dúvidas com relação ao vínculo biológico com o registrado, sem que existam provas robustas de erro ou falsidade do ato jurídico. O entendimento unânime foi da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que considerou improcedente o pedido de um pai que, após relacionamento afetivo efêmero e casual, decidiu registrar o filho sem fazer exame de DNA.
Após quatro anos de vida do menor, o pai requereu a nulidade do registro, pedindo a produção de perícia sanguínea para apurar a paternidade biológica, pois suspeitou que a mãe da criança tivesse mantido outros relacionamentos à época da concepção. Além disso, alegou não perceber semelhanças físicas entre ele e o menor.
No curso da ação, o pai morreu. Em razão do óbito, a primeira instância deferiu a habilitação dos pais do falecido no caso e reconheceu, baseado na interpretação em sentido contrário da Súmula 301 do STJ, a presunção de que o menor não era filho do autor, pois não havia comparecido ao exame em duas ocasiões.
A súmula diz que, em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção relativa de paternidade. Inconformado com a decisão, o filho apelou para o Tribunal de Justiça de São Paulo, que manteve a aplicação inversa da súmula e confirmou a possibilidade da sucessão processual.
Ao apresentar recurso especial, o filho sustentou que esse tipo de ação é de cunho personalíssimo, de modo que seus avós não poderiam suceder o pai falecido no polo ativo da demanda. Assegurou que as hipóteses de afastamento da presunção de paternidade são restritas. Insurgiu-se também contra o indeferimento da prova genética no cadáver e contra a aplicação da súmula.
No STJ, o entendimento do tribunal de origem com relação à interpretação da súmula foi reformado, porém, mantida a tese da sucessão processual. De acordo com a ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso, ainda que se trate de direito personalíssimo, “tendo o pai registral concretizado sua intenção de contestar a paternidade ainda em vida, impõe-se admitir a sucessão processual de seus ascendentes, a fim de dar prosseguimento à ação proposta”.
Ao se referir ao registro de nascimento, a ministra explicou que o ato possui valor absoluto, independentemente de a filiação ter-se verificado no âmbito do casamento ou fora dele, “não se permitindo negar a paternidade, salvo se consistentes as provas do erro ou falsidade, não se admitindo para tal fim que o erro decorra de simples negligência de quem registrou”.

Mero arrependimento
A relatora ressaltou que o Poder Judiciário não poderia prejudicar a criança por “mero capricho” de um adulto, que decidiu livremente registrá-la, mesmo com todas as consequências jurídicas e afetivas decorrentes desse ato, e que, após tantos anos, pretende “livrar-se do peso da paternidade” por “mero arrependimento”.
“Por essa razão, a presunção de veracidade e autenticidade do registro de nascimento não pode ceder diante da falta de provas evidentes do vício de consentimento, para a desconstituição do reconhecimento voluntário da paternidade”, acrescentou.
A ministra refletiu que, diante de relacionamentos efêmeros, em que o envolvimento das partes restringe-se à conotação sexual, “a ação negatória de paternidade não pode se fundar em mera dúvida, desconfiança que já havia ou deveria haver quando do reconhecimento voluntário”.
Nancy Andrighi reconheceu o exame de DNA como um “instrumento valioso” na apuração da verdade biológica, que se aproxima da certeza absoluta. Porém, afirmou que a prova genética não pode ser considerada o único meio de prova da paternidade. Para ela, o entendimento do tribunal de origem, que concluiu pela presunção de que o autor não era pai, em prejuízo do menor, mostra-se “equivocado” e é contrário à proteção que o ordenamento jurídico brasileiro confere à criança e ao adolescente, pelo princípio do melhor interesse do menor.
Segundo a ministra, em virtude desse princípio, não se pode interpretar a súmula do STJ em desfavor dos interesses da criança, “desconstituindo a paternidade reconhecida e maculando seu direito à identidade e ao desenvolvimento de sua personalidade”.
Por essas razões, a Turma considerou insuficiente para a exclusão da paternidade o não comparecimento do menor ao exame de DNA, desacompanhado de quaisquer outros elementos probatórios. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

Revista Consultor Jurídico, 1º de dezembro de 2013
http://www.conjur.com.br/2013-dez-01/duvida-nao-autoriza-anulacao-registro-nascimento-filho