Inicio minha participação nesta importante coluna
, mantida
pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, agradecendo ao
honroso convite formulado pelo professor Otávio Luiz Rodrigues Jr..
Escrever para a
ConJur e para a coluna
Direito Civil Atual é motivo de muito orgulho.
Tratarei
do direito de preferência do condômino na compra de fração de imóvel
indiviso à luz do artigo 504 do CC/2002, tendo por base a recente
decisão proferida pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no REsp
1.207.129/MG, relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão, julgado no dia
16 de junho de 2015.
O artigo 504 do CC/2002 dispõe que “não pode um condômino em
coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro consorte a quiser, tanto por tanto [...]” (grifou-se).
Com
base em tal premissa, a Justiça de Minas Gerais negou o direito de
preferência a um casal que pretendia adquirir parte de uma fazenda da
qual já era coproprietário. Segundo o Tribunal de Justiça mineiro, o
imóvel era passível de cômoda divisão, razão pela qual a regra do artigo
504 do CC/2002 seria inaplicável.
O litígio chegou ao STJ e
relembrou a discussão que era travada em torno do tema por suas turmas
de Direito Privado. Ambas, sob a égide do CC/1916, sustentavam posições
diametralmente opostas.
A 3ª Turma, influenciada por Pontes de
Miranda, Silvio Rodrigues e Carvalho Santos, adotava interpretação
restritiva. Entendiam seus membros que admitir a preferência aos
proprietários de imóveis meramente indivisos aumentaria
extraordinariamente a restrição estabelecida na norma. Fosse essa a
vontade do legislador — ressaltou o ministro Eduardo Ribeiro no
julgamento do REsp 60.656-0/SP, ocorrido em 1996 —, teria consignado que
ao condômino não era dado vender sua parte a estranhos. Na
oportunidade, acrescentou que a inconveniência de se introduzir um
estranho na comunhão não se verifica quando o bem pode ser dividido. E
lembrou que no projeto do CC/1916 não havia alusão à coisa indivisível,
cuja modificação resultou de emenda introduzida no Senado por Rui
Barbosa.
De fato, uma análise literal dos artigos 504 do CC/2002 e
1.139 do CC/1916, aliada à ideia de divisão cômoda, faz supor que o
direito de preferência ali previsto seja restrito aos imóveis
indivisíveis. Aliás, Carvalho Santos, com apoio em Melquíades Picanço,
sustentava que a possibilidade de divisão era razão suficiente para
afastar os dissabores da entrada de um estranho na comunhão
[1].
Contudo,
para Clóvis Beviláqua, os inconvenientes decorrentes da entrada de um
estranho no condomínio são os mesmos, seja o bem divisível ou
indivisível. Segundo deixou assente em sua obra, a distinção não se
justifica, porque no estado de comunhão as coisas estão indivisas. E
acrescentou que a emenda de Rui Barbosa não foi feliz
[2].
Pontes
de Miranda, a despeito de defender a interpretação restritiva, teceu
críticas ainda mais severas à emenda. Destacou que Rui Barbosa, sem
refletir suficientemente sobre o tema e com superficialidade de
argumentos, fez constar a expressão “coisa indivisível” para afeiçoar o
texto ao artigo 1.566 do CC português de 1867. Este, todavia, era
defeituoso e, por obra da doutrina, foi complementado, passando a
constar “coisa indivisível ou indivisa
[3].
Imperativo
consignar que após a publicação da obra de Pontes de Miranda, o
legislador português promulgou seu atual CC (Decreto-lei 47.344, de
25/11/1966
[4]), o qual foi além. A norma deixou de fazer referência a imóvel indivisível ou indiviso
[5], estendendo, com isso, a preferência ao comunheiro de condomínio
pro diviso. E em outro dispositivo, ainda concedeu o direito de preferência aos proprietários de terrenos confinantes
[6].
Nesse
contexto, a 4ª Turma do STJ, influenciada por Clóvis Beviláqua, Caio
Mário da Silva Pereira, Carvalho de Mendonça, e, mais recentemente, por
Otávio Luiz Rodrigues Junior, José Osório de Azevedo Júnior
[7] e Nelson Rosenvald, consagra a interpretação mais abrangente.
Um
dos fundamentos constantes de seus julgados está em que a finalidade da
norma é impedir que estranhos ingressem no condomínio. Para o
ministro Luis Felipe Salomão, ao conceder o direito de preferência aos
demais condôminos, pretendeu o legislador conciliar os objetivos do
vendedor com o intuito dos demais proprietários, evitando
desentendimentos decorrentes da entrada de um estranho no grupo.
Aliado
a isso, deve-se manter a coerência do sistema, sobretudo com o disposto
no artigo 1.314, parágrafo único, do CC/2002, segundo o qual “nenhum
dos condôminos pode alterar a destinação da coisa comum, nem dar posse,
uso ou gozo dela a estranhos, sem o consenso dos outros”. A leitura
desse dispositivo, conjugada com a do artigo 504 do CC/2002, induz à
conclusão de que a venda de parte ideal do bem a estranhos depende do
consenso dos demais comunheiros, haja vista que a posse, o uso e o gozo,
nas palavras do ministro Luis Felipe Salomão, são “um
minus em relação à transferência de propriedade”.
Essa
tese já havia prevalecido quando do julgamento do REsp 489.860/SP pela
2ª Seção. No seu voto, a relatora, ministra Nancy Andrighi, também
defendeu que a leitura do artigo 1.139 do CC/1916 (atual artigo 504 do
CC/2002) deveria ocorrer de acordo com o artigo 633 do CC/1916
(artigo 1.314, parágrafo único, do CC/2002). Referido recurso havia sido
distribuído à 3ª Turma, mas foi afetado à 2ª Seção justamente em razão
do desacordo existente entre as turmas de Direito Privado. O julgamento
ocorreu em 2004, mas o litígio era regido pelo CC/1916.
Um outro aspecto corrobora a conclusão supra. O artigo 623, inciso III, do CC/1916
[8]
havia sido modificado pelo Decreto Legislativo 3.725/19, que fez
inserir no primeiro, próximo da expressão “indivisa”, uma menção ao
artigo 1.139 do mesmo diploma (atual artigo 504 do CC/2002). Tal mudança
sugere a intenção de corrigir a impropriedade da restrição prevista no
último, ampliando o conceito de indivisibilidade para incluir as coisas
indivisas.
Malgrado a expressão “parte indivisa” tenha sido substituída por “parte ideal” na versão atual do dispositivo (artigo 1.314,
caput, do CC/2002), não se tem notícias de maiores debates em torno da alteração
[9],
muito menos que esta tenha ocorrido com o objetivo de restringir o
alcance do artigo 504 do CC/2002. Tal rigidez, aliás, não se verificou
no legislador de 2002, que, inclusive, estendeu o direito de preferência
ao coerdeiro (artigos 1.794 e 1.795 do CC/2002).
Além das
interpretações teleológica e sistemática, a atual 4ª Turma recordou de
outro fundamento, de ordem pragmática. No julgamento do REsp 9.934/SP,
ocorrido em 1993, o ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira sustentou
que provar a indivisibilidade, muitas vezes, é tarefa dificílima, pois
nem sempre há consenso entre os coproprietários sobre a espécie de
condomínio, se divisível ou indivisível.
De fato, a comprovação da
divisibilidade econômico-jurídica — que não era prevista no CC/1916,
mas já era assimilada pela jurisprudência
[10]
— não é tarefa fácil. Há casos em que a demonstração da divisibilidade
demanda intensa atividade probatória, com avaliações, pesquisas de
preço e contraprova de ambas as partes, dificultando sobremaneira a
solução do litígio.
Com base em tais fundamentos, a 4ª Turma do
STJ, por meio do REsp 1.207.129/MG, relatado pelo ministro Luis Felipe
Salomão, cassou as decisões proferidas pela Justiça Mineira e determinou
a remessa dos autos ao primeiro grau para exame dos demais requisitos
da ação de preferência. Com isso, manteve a coesão de seus precedentes,
em consonância com a posição da Segunda Seção, agora sob a égide do
CC/2002.
Acredita-se que tal decisão influenciará a jurisprudência
dos demais tribunais pátrios, pois é o primeiro precedente do STJ a
tratar especificamente do tema após a entrada em vigor do CC/2002.
É
bem verdade que a divergência em torno do tema impede que se arrisque
uma previsão para o futuro. A prudência impõe que se aguarde a posição
da 3ª Turma, cujos membros atuais não participaram dos julgamentos
anteriores, nem atuaram na Segunda Seção quando da uniformização do
entendimento em 2004.
De todo modo, o precedente representa uma
excelente razão para que se reflita sobre o tema. Quiçá os legisladores
venham a propor a exclusão da expressão “em coisa indivisível” do artigo
504 do Código Civil, a exemplo do que fez o Parlamento Português, cuja
norma influenciou a redação do dispositivo correspondente no Código
Civil brasileiro de 1916.
* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).
1] CARVALHO SANTOS, João Manuel de. Código Civil brasileiro interpretado (principalmente do ponto de vista prático). 9. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1972. v. 16: arts. 1.122-1.187. p. 169.
[2] BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil. ed. histórica. 7. tiragem. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1984. v. 2: IV-VI. p. 249.
[3] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado.
Atualizado por Cláudia Lima Marques. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2012. t. 39: direito das obrigações: compra-e-venda, troca, contrato
estimatório. p. 308.
[4] Disponível em: <http://www.stj.pt/ficheiros/fpstjptlp/portugal_codigocivil.pdf>.
[5] Art. 1409º, item 1, do CC português de 1966.
[6] Art. 1380º, item 1, do CC português de 1966.
[7]
Referido autor, a propósito, formulou proposta de enunciado sobre o
tema na IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal.
Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/CEJ-Coedi/jornadas-cej/volume_I.pdf/view>.
[8]
“Art. 623. Na propriedade em comum, compropriedade, ou condomínio, cada
condômino ou consorte pode: [...] III – alhear a respectiva parte
indivisa, ou gravá-la (art. 1.139)”.
[9]
Segundo Carlos Alberto Dabus Maluf, o art. 1.314 do CC 2002 “não foi
alvo de alteração, seja por parte do Senado Federal, seja por parte da
Câmara de Deputados, no período final de tramitação do projeto. A
redação atual é a mesma do projeto” (Código civil comentado. SILVA, Regina Beatriz Tavares da Silva (coord.). 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 1246).
[10] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Código civil comentado.
AZEVEDO, Álvaro Villaça (coord.). São Paulo: Atlas, 2008. v. 6, t. 1:
compra e venda, troca, contrato estimatório: artigos 481 a 537. p. 290.
Fernando Speck de Souza é membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo e Juiz de Direito em Santa Catarina.
Revista
Consultor Jurídico, 14 de dezembro de 2015, 10h57