terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Digressões Jurídicas: quando a liberdade de expressão invade o espaço no mundo reservado à fé.

Manifestações em redes sociais que ferem valores religiosos também sinalizam extremismo e falta de consciência. As ideias que propagam quaisquer formas de intolerância, desrespeito, violência, escárnio ou racismo devem ser repudiadas, a fim de que a harmonia entre os direitos à liberdade de expressão e à crença seja mantida. 

A reflexão que eu gostaria de propor aos colegas desta comunidade jurídica diz respeito à imagem abaixo:


Esta não é a primeira e nem será a última postagem que debocha escancaradamente de líderes ou personagens religiosos a circular pelas redes sociais. Aliás, é perceptível que imagens como esta ganharam ainda mais notoriedade após o atentado à sede do Charlie Hebdo, no início do mês de janeiro. Geralmente, essas manifestações são encontradas em grupos ou páginas de pessoas com orientação ateísta, mas, de modo viral e inconsciente, acabam sendo compartilhadas por diferentes perfis de usuários e grupos nas redes sociais.
Quem não é ateu e aprecia tais imagens, enxergando nelas “apenas humor”, talvez não consiga perceber a ofensa sofrida pelas milhões de pessoas que sustentam sua fé segundo os ensinamentos de uma religião. O exercício de se colocar no lugar do ofendido é um método eficiente para que o inconveniente zombador perceba que está agindo erroneamente. Entretanto, exigir do ateu que ele se coloque no lugar de um teísta é algo complexo e, por isso mesmo, faz com que muitas manifestações ofensivas ganhem vida. Nesse mar de motivações surgem brechas para intolerâncias de ambas as partes, que muitas vezes culminam em conflitos e ataques, alimentando a lei de ação e reação.
Alexandre Moraes utiliza a seguinte citação de Pinto Ferreira para esmiuçar o tratamento que o Estado Democrático confere ao direito à liberdade:
“o Estado democrático defende o conteúdo essencial da manifestação da liberdade [de expressão], que é assegurado tanto sob o aspecto positivo, ou seja, proteção da exteriorização da opinião, como sob o aspecto negativo, referente à proibição da censura”. (FERREIRA, Pinto. Comentários... V.1, p.68 apud MORAES, grifo nosso).
A nossa Constituição Federal de 1988 assegura a liberdade de expressão independente de censura (art. 5º, IX) e a livre manifestação de pensamento (art. 5º, IV); todavia, não se esquece de proteger a liberdade de consciência e de crença, dando-lhes o escudo da inviolabilidade. Para compreender a ofensa e a ilegalidade dessas manifestações basta refletir acerca deste caráter inviolável que a nossa Lei Maior conferiu ao direito de liberdade religiosa (de crença), previsto no art. 5º, VI. Aprofundando-se um pouco mais na interpretação teleológica do dispositivo mencionado e na doutrina de Alexandre Moraes, percebemos a necessidade de que o aspecto negativo proíba, além da censura, as manifestações de liberdade de expressão que violem e ofendam o direito à liberdade religiosa. A inviolabilidade visa proteger um direito fundamental que participa ativamente na construção da pessoa humana. Concluímos ainda que, a partir do momento em que um direito passa a ser exercido sem o equilíbrio necessário, ele acaba por interferir no exercício do outro, causando conflitos e desequilíbrios no mundo jurídico. A proibição não deveria partir de um ato do Estado, mas da própria consciência de cada pessoa que resolve manifestar suas ideias em público.
O Professor e Desembargador Roy Reis Fiede, na relatoria de agravo de instrumento interposto pelo MPF contra a Google para que fossem retirados vídeos com conteúdos de intolerância e discriminação religiosa, assim fundamentou sua decisão:
“...a liberdade de exteriorização do pensamento, em particular – a exemplo de outros direitos fundamentais -, não pode ser, de nenhum modo, interpretada de forma absoluta, posto que, em certas situações, poderá haver efetivo prejuízo social no que tange, entre outros, ao sinérgico desrespeito aos valores éticos da pessoa e da família”.
Sem o respeito às diversidades e a ponderação naquilo que se expressa não há como consolidar a democracia no Brasil e nem lutar pela paz mundial. Ativar o “filtro” da consciência não é um ato de autocensura, mas sim uma demonstração de sabedoria, equilíbrio e maturidade.
Fica por aqui esta proposta de reflexão acerca de um tema capaz de ensinar muito àqueles que apreciam o exercício do pensar.

Murilo Wya Almeida - Estudante de Direito
 http://ministromarley.jusbrasil.com.br/artigos/164522076/digressoes-juridicas-quando-a-liberdade-de-expressao-invade-o-espaco-no-mundo-reservado-a-fe?utm_campaign=newsletter-daily_20150203_676&utm_medium=email&utm_source=newsletter

 

Considerações acerca do pacto antenupcial I

1.1 Introdução
Em primeiro lugar desejamos a todos um feliz 2015, salientando o privilégio de discutirmos questões notariais e registrais nesse rotativo tão prestigiado.
Abordaremos hoje o pacto antenupcial, instituto ímpar do ordenamento jurídico, não só diante da multiplicidade em questões suscitadas, mas também pela complexidade de sua natureza e estrutura dentro da sistemática atual.
Apesar da figura do pacto antenupcial integrar o ordenamento brasileiro desde o domínio português, no âmbito das Ordenações, mantém-se a sua atualidade tanto nas discussões teóricas, quanto nas práticas. É importante a discussão acerca de sua natureza jurídica, dos limites à autonomia privada em sua celebração, além de questões formais decorrentes do processo de habilitação.
A importância de se determinar a natureza jurídica do pacto é, mais que meramente uma questão teórica, operacional, pois é por meio dela que se determinará até que ponto os conceitos próprios da Parte Geral do Código Civil – relativos à validade e capacidade, por exemplo – podem ser a ele aplicados. Urge também delinear com maior clareza os limites ao objeto do pacto, tendo em vista a autonomia privada estar limitada pela função social e pelo próprio dirigismo contratual. Nesse aspecto, entra em relevo a questão relativa à possibilidade de regramentos não patrimoniais serem objeto de pacto antenupcial, o que torna ainda mais complexa a sua limitação. Seria possível, por exemplo, uma cláusula de "relacionamento aberto" no pacto, mitigando o dever de fidelidade conjugal? Ou, ainda, estabelecer uma cláusula penal confirmatória da obrigação de fidelidade, punindo monetariamente uma eventual traição? Qual o limite da liberdade dos nubentes no estabelecimento das "regras do jogo" relativas ao próprio casamento? Numa sociedade complexa como a nossa, cada vez mais o destinatário da norma quer fazer valer "seus direitos" e exige do tabelião uma verdadeira ginástica para moldar um regramento deficitário à situação pessoal extremamente complexa.
O pacto antenupcial surgiu com a finalidade precípua de facultar aos nubentes a escolha do regime nupcial de bens, isto é, a norma do patrimônio dos nubentes que irá valer no casamento1. Assim, apesar da lei brasileira prever um regime supletivo2, que incide na ausência de convenção diversa, aos nubentes é via de regra facultado pactuar eles próprios o regime de bens que em seu matrimônio incidirá. Vigora, portanto, no ordenamento, o princípio da liberdade dos pactos antenupciais3.
Na prática, os contraentes adotam regime subsidiário da comunhão parcial de bens, não realizam pacto e habilitam casamento da maneira mais singela possível, desconhecendo a riqueza de situações que poderiam previamente acordar no pacto. O registrador civil que tem obrigação de informar o regime de bens acaba tendo dificuldade até diante da questão econômica de orientar as partes na confecção do pacto.
No Direito luso-brasileiro sempre foi usual a liberdade de convenção antenupcial. A gênese do costume é histórica, dado o sincretismo jurídico cultural presente no regime português, que refletia além do velho direito português fundado em seus costumes locais, o romanismo, o germanismo, bem como infiltrações feudais e canônicas, sem prejuízo do regime de comunhão universal também presente nas ordenações como o regime "segundo o costume do reino"4.
De fato, o pacto antenupcial encontra precedentes já nas Ordenações Afonsinas, promulgadas em 1446 em Portugal. Nestas, porém, o regime de bens entre os conjugues era tratado de forma superficial e sem menção expressa ao pacto antenupcial. Em 1521, nas Ordenações Manuelinas, foi prevista a possibilidade de pactuação do regime de bens pelos nubentes, ao dispor que "todos os casamentos que forem feitos em Nossos Reynos, e Senhorios, se entendem ser feitos por carta de metade, salvo quando antre as partes outra cousa for acordado e contractado, porque entonce se guardará o que antre eles for concertado", apesar de não prever a forma e o objeto do pacto5.
Às Ordenações Manuelinas sucederam-se as Filipinas, que por sua vez trouxeram previsão semelhante quanto à possibilidade de escolha do regime de bens pelos nubentes através do pacto antenupcial. Nas Ordenações Filipinas vigia a liberdade de estipulação das convenções antenupciais quanto à administração dos bens dos conjugues6. Havia, não obstante, restrições a cláusulas ilícitas, ou seja, que ofendessem a lei, os bons costumes ou os fins naturais e sociais do casamento. Tais cláusulas, assim como as delas dependentes, seriam eivadas de nulidade, o que, porém, não acarretava a anulação do restante do pacto7.
No esboço de Código Civil publicado em 1861, Teixeira de Freitas tratou com acuidade da figura do pacto, abordando questões materiais, como o objeto do pacto, e questões formais concernentes a capacidade, nulidades, forma, etc. Restou portanto evidenciar a importância da figura do pacto antenupcial, como é possível se verificar com a leitura do art. 88: "os esposos podem excluir a comunhão de bens, no todo ou em parte, e estipular quaisquer pactos e condições, devendo-se guardar o que entre eles for contratado"8.
Três décadas mais tarde, foi previsto no decreto 181 de 24 de janeiro de 1890 (regulamentação do casamento civil), que a eficácia do pacto se condicionava à celebração do casamento. Apesar de manter a liberdade de regulamentação do regime de bens pelos nubentes, o decreto incluiu novas restrições, impondo, em determinados casos, o regime dotal e o de separação dos bens9.
Nos projetos seguintes, Felício dos Santos e de Antônio Coelho Rodrigues, trouxeram novidades, como a adoção de regimes mistos, deixando, porém, de tratar do tema de forma tão abrangente quanto o projeto de Teixeira Freitas. Por fim, o último dos projetos do código de 1916 foi o de Clóvis Bevilaqua, sem mudanças materiais significativas quanto à regulação do pacto, apesar de ter consolidado questões formais, como a necessidade do registro público do pacto nupcial, lavrado por meio de escritura notarial.
O art. 256 do Código de 1916, versava que "é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver", disposição esta reproduzida no Código atual, no art. 1639.
Muitos autores classificam o instituto como contrato sob condição suspensiva, logo, com eficácia condicionada à celebração do casamento, evento futuro e incerto. Ora, não é possível confundir a vontade de casar com a celebração do casamento em si, esta última não pode ser considerada um condição convencionada pelas partes, pois é antes um fato necessário imposto pela própria lei, independendo portanto da vontade particular, uma verdadeira "conditio iuris"10.
Ademais, sequer é consensual a qualificação do pacto antenupcial como contrato. É certo que a função primária do pacto antenupcial é o estabelecimento do regime de bens, o que o torna um negócio jurídico de intuito substancialmente patrimonial, o que o aproxima dos contratos. Contudo, a própria natureza patrimonial do pacto fica enfraquecida se consideramos a possibilidade de inclusão de cláusulas não patrimoniais, como se verá mais adiante. É bom lembrar aqui que a dignidade da pessoa humana (art. 13) no direito de família, implica em despatrimonialização e o que prestigia a aposição de cláusulas não patrimoniais.
Além disso, é possível apontar algumas características que afastam o pacto antenupcial – assim como pactos em geral – da categoria dos contratos. O contrato pode ser definido como um negócio jurídico fundado num acordo de vontades, cujo fim é criar, modificar ou extinguir direitos, ensejando assim a circulação de riquezas. O "acordo", em sentido amplo, integra o contrato, mas, em seu sentido técnico é estrito – como sinônimo de pacto – não se confunde com ele. De fato, se no contrato há uma composição de interesses contrapostos, no acordo há a fusão de interesses convergentes, paralelos entre si. Para os romanos, ainda, a distinção fundava-se nos efeitos: do pacto não decorreria a geração de direitos e obrigações mútuas para as partes, como ocorreria nos contratos11. Assim, apenas os contratos originavam direito de ação. No caso do pacto, o direito de defesa restringir-se-ia à via da exceptio, ou seja, na oposição de um fato impeditivo à outra parte12.
Nesse diapasão, seria impreciso classificar o pacto antenupcial como contrato, já que pactos e contratos constituem categorias jurídicas distintas. Para Pontes de Miranda, nesse sentido, o pacto antenupcial seria uma figura sui generis "que entre o contrato de direito das obrigações, isto é, o contrato de sociedade e o casamento mesmo, como irradiador de efeitos. Não se assimila, porém, a qual quer deles: não é simplesmente de comunhão, de administração, ou do que quer que se convencione; nem ato constitutivo de sociedade, nem pré-casamento, ou, sequer parte do casamento"13.
Logo, o que temos, na verdade, é uma figura que pode ser classificada como um negócio jurídico de direito de família. Segundo D. Gozzo, o pacto nupcial pode assim ser classificado como negócio jurídico sui generis do Direito de Família, tem seu locus próprio no ordenamento jurídico. Possui as características próprias desse tipo de negócio, a saber, o pessoalismo, o formalismo, o ser nominado e o ser legítimo14. É um negócio pessoal uma vez que só os nubentes podem dele fazer parte. Aqui é bom mencionar, é exceção quanto à possibilidade de doação antenupcial feita por terceiro aos contraentes, no pacto. É, ademais, formal, já que deve ser realizado mediante escritura pública, e nominado, pois possui previsão legal.
Essa concepção, que afasta o pacto antenupcial da categoria dos contratos, justifica certas peculiaridades do mesmo. Por exemplo, embora o Código Civil permita nas aquisições de direitos a figura da representação, o mesmo não ocorre nos pactos antenupciais. Isso, pois, se trata de disciplina de direito de família, em que incide bloqueio de legitimação e, que prescinde ainda, da análise dos efeitos que resultam do próprio negócio jurídico15.
Em arremate a todo o arrazoado, o pacto antenupcial é figura própria, sem qual quer identidade com os demais institutos no sistema jurídico, ocupando locus próprio, intrinsecamente ligado ao matrimônio. Nessa mesma linha de raciocínio, o pacto antenupcial tem peculiaridades que refogem aos demais institutos do direito civil.
No próximo Registralhas, abordaremos as implicações práticas dessa figura sui generis tão necessária para regular relações econômica e não econômicas da sociedade conjugal nos casamentos do século XXI. Até lá, alegria! 

Bibliografia.
Betti, Emilio, Teoria generale delle obbligazioni, v. III, Milano, Giuffre, 1954.
Bevilaqua, Clóvis, Direito da Família, 5ª ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1933, p. 185.
Bevilaqua, Clóvis, Direito da Família, 5ª ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1933.
Cretella Jr., José, Curso de Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 1998.
Gomes, Orlando, Direito de Família, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999.
Pontes de Miranda, Francisco C., Tratado de Direito Privado – Parte Especial, Dissolução da Sociedade Conjugal e Eficácia Jurídica do Casamento, t. VIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012.
Tese (Mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988.
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Por Vitor Frederico Kümpel

 *O artigo foi escrito em coautoria com Giselle Viana, graduanda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.
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1F. C. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado – Parte Especial, Dissolução da Sociedade Conjugal e Eficácia Jurídica do Casamento, t. VIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, p. 314.
2De acordo com o art. 1.640 do Código Civil, no silêncio das partes, ou diante da nulidade ou ineficácia do pacto, "vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial".
3O. Gomes, Direito de Família, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999, p. 173.
4F. C. Pontes de Miranda, Tratado cit. (nota 1 supra), p. 306.
5D. Gozzo, Pacto Antenupcial, Tese (Mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988, p. 6.
6Ordenações Filipinas, 4, XLVI, pr 7: "Todos os casamentos feitos em nossos Reinos e senhorios se entendem serem feitos por Carta de ametade; salvo quando entra as partes outra cousa for acordada e contractada, porque então se guardará o que entre elles foir contractado."
7C. Bevilaqua, Direito da Família, 5a ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1933, p. 184.
8Apud D. Gozzo, Pacto cit (nota 5 supra), p. 9.
9O art. 59 do aludido diploma, por exemplo, estabelecia a obrigatoriedade do regime dotal nas hipóteses elencadas no artigo antecedente, que abarcava, por exemplo, a hipótese da nubente menor de 14 anos ou maior de 60 (art. 58, parágrafo 1º), ou dos conjuges parentes em 3º grau (art. 58, parágrafo 3º).
10D. Gozzo, Pacto cit. (nota 5 supra), p 47.
11J. Cretella Jr., Curso de Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 247.
12E. Betti, Teoria generale delle obbligazioni, v. III, Milano, Giuffre, 1954, p. 7.
13F. C. Pontes de Miranda, Tratado cit. (nota 1 supra), p. 313.
14D. Gozzo, Pacto cit. (nota 5 supra), p 42.
15F. C. Pontes de Miranda, Tratado cit. (nota 1 supra), p. 310

http://www.migalhas.com.br/Registralhas/98,MI215003,91041-Consideracoes+acerca+do+pacto+antenupcial+I