quinta-feira, 26 de março de 2015

"O Banco levou meu carro" - Busca e Apreensão de Veículos em Financiamentos

Muita gente deseja ter um veículo e acaba por recorrer a financiamentos para tal. Ocorre que a inadimplência em Contratos de Financiamento é enorme, e é igualmente comum vermos pessoas perdendo seus veículos para o Banco, em razão do não pagamento.
Obviamente não se defende aqui a inadimplência, mas de fato observa-se a ocorrência de casos bastante contrários à boa fé, haja vista que muitas pessoas deixam de pagar 3, 4 parcelas, geralmente em razão de um eventual desemprego ou uma turbulência financeira, e isso já enseja uma busca e apreensão do veículo.
Vi dia desses dois casos de busca e apreensão de veículos financiados. Em um deles, a pessoa havia pago 51 das 60 parcelas do financiamento. Atrasou 4 parcelas, e já foi deferida a busca e apreensão. No outro, a pessoa pagou 36 das 60 parcelas, e deixou de pagar 2 meses, e o Banco já estava "ameaçando" pedir a busca e apreensão.
Não bastasse, em ambos os casos os clientes buscaram o Banco incessantemente a fim de tentar solucionar amigavelmente o problema, requerendo o parcelamento da dívida, sem obterem êxito.
É claro que a inadimplência no país é um problema, quase sistêmico, e precisamos tentar combatê-la de alguma forma. Todavia, não me parece que o radicalismo em rescisões contratuais dessa seara, incluindo a perda do bem financiado, seja a solução. Muito pelo contrário, decisões nesse sentido apenas distorcem o princípio da equidade, pelas razões que se passa a aduzir:

1. Teoria Geral dos Contratos

O nascimento de relações jurídicas obrigacionais pode ou não depender da vontade dos sujeitos envolvidos. Quando o nascimento de uma obrigação independe da vontade dos sujeitos ativo e passivo, diz-se uma obrigação legal. Por exemplo, quando uma lei entra em vigor, somos obrigados a obedecer seu inteiro teor, independente da nossa vontade. Ou seja, trata-se de uma declaração unilateral de vontade.
Quando o nascimento de uma obrigação jurídica depende da vontade dos sujeitos, diz-se uma obrigação voluntária. A celebração de um contrato enseja o nascimento de uma obrigação voluntária, isto é, a relação jurídica obrigacional gerada no momento em que as partes firmam um Instrumento Contratual depende da vontade dos sujeitos. Trata-se, pois, de uma declaração bilateral de vontade.
"A partir de uma perspectiva genérica, pode-se conceituar o contrato como sendo qualquer ato jurídico em sentido amplo em que a coordenação de vontades dos contraentes é apta a produzir efeitos jurídicos. Por meio do contrato, as partes declaram suas vontades que se integram de tal maneira que possibilitam aos contratantes a aquisição, a conservação, a transferência, a modificação ou a extinção de direitos e obrigações." (SEIXAS, Renato. Direito Civil: Teoria Geral dos Contratos. Vol 1, 1997. Disponível em: Fonte) (grifo nosso).
Supostamente, de acordo com a Teoria Geral do Contrato, a celebração de um Contrato é um ajuste de vontades entre as partes, gerando, pois, uma obrigação voluntária.
Todavia, essa concepção de ajuste de vontades, como declaração bilateral, passa longe dos Contratos de Financiamento. E veremos por que.
2. Contrato de Adesão
Em verdade, a pessoa que firma um contrato de financiamento junto a uma Instituição Financeira é, em geral, destituída de conhecimentos específicos na área jurídica.
De tal forma, a uma das partes é simplesmente apresentado um contrato de adesão, padrão, com cláusulas prontas, sem que a parte possa discutir qualquer cláusula com a qual não concorde, o que, obviamente, descaracteriza a declaração bilateral de vontades.
Pode-se até considerar que, ainda que as cláusulas tenham sido redigidas unilateralmente, a parte aceitou todas estas ao celebrar o contrato. Todavia, sabemos que infelizmente muitas pessoas precisam de um veículo para trabalhar, ou para se locomover por qualquer motivo, sobretudo em virtude das péssimas condições do transporte público, e acabam se sujeitando às cláusulas contratuais das Instituições Financeiras por falta de opção. Continua não sendo uma declaração bilateral de vontade.
Leciona Orlando Gomes que:
“[...] no campo dos negócios bilaterais, a autonomia da vontade consubstancia-se na liberdade de contratar. A lei não estabelecia maiores restrições à celebração e ao conteúdo dos contratos. As partes eram livres para contrair as obrigações que entendessem, exigindo-se apenas o consentimento isento de vícios. Contraída a obrigação, por declaração de vontade, havia que ser cumprida a todo preço (pacta sunt servanda). Em conseqüência da própria evolução econômica e por influência de novas doutrinas, o campo da autonomia da vontade reduziu-se consideravelmente. Limitações enérgicas antepuseram-se ao poder de suscitar efeitos jurídicos mediante declaração negocial. Em diversos contratos, a liberdade de estipulação das cláusulas foi extremamente sufocada. O princípio da intangibilidade dos efeitos das convenções sofre numerosas exceções. A própria relatividade da sua eficácia cede diante de novas necessidades. Proclama-se, à vista dessas transformações, a decadência do princípio da autonomia da vontade” (GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1969, p. 259.)
Na ocasião de um inadimplemento, quando a parte busca o Banco para quitar a dívida de forma amigável, parcelando os valores devidos, recebe respostas como "o contrato foi assim firmado e deve ser cumprido".
Ora, sob os auspícios do principio da Pacta Sunt Servanda as Instituições Financeiras pretendem desconsiderar a norma constitucional e a legislação infraconstitucional, impelindo o consumidor à busca de seus direitos perante o Poder Judiciário.
O Código de Defesa do Consumidor regula extensivamente a questão do Contrato de Adesão, conforme se denota:
ART. 54. CONTRATO DE ADESÃO É AQUELE CUJAS CLÁUSULAS TENHAM SIDO APROVADAS PELA AUTORIDADE COMPETENTE OU ESTABELECIDAS UNILATERALMENTE PELO FORNECEDOR DE PRODUTOS OU SERVIÇOS, SEM QUE O CONSUMIDOR POSSA DISCUTIR OU MODIFICAR SUBSTANCIALMENTE SEU CONTEÚDO.
Não obstante, cumpre salientar que aplica-se o CDC à questão em tela, pelos motivos que aduz a seguir.

3. Relação de Consumo

O Código de Defesa do Consumidor promoveu mudanças radicais de enfoque para as relações contratuais nas quais uma Empresa fornece serviços e um particular os aufere como destinatário final. Tamanha foi a transformação no direito dos contratos e no direito das obrigações em geral que novos paradigmas de "relação jurídica" foram criados, chamando para si outras garantias conferidas pelo Estado, que não aquelas vazadas no Código de Beviláqua. (Cláudia Regina C. Ribeiro, advogada).
O que tem-se na discussão em tela, conforme os elementos internos da relação travada entre devedor e Banco, é uma Relação clara e cristalina de Consumo. Isto porque, analisando o papel social juridicamente relevante da parte devedora, percebemos que este é consumidor final do objeto de prestação de serviços do Banco: a prestação de crédito. E, por outro lado, analisando-se o papel social juridicamente relevante do Banco, chegamos à conclusão de que este fornece diversos serviços de crédito e gestão patrimonial. Doutrina e Jurisprudência se alinham nesse sentido:
A CARACTERIZAÇÃO DO BANCO OU INSTITUIÇÃO FINANCEIRA COMO FORNECEDOR ESTÁ POSITIVADA NO ART. 3o, CAPUT, DO CDC E ESPECIALMENTE DO § 2º DO REFERIDO ARTIGO, O QUAL MENCIONA EXPRESSAMENTE COMO SERVIÇOS AS ATIVIDADES DE NATUREZA BANCÁRIA, FINANCEIRA, DE CRÉDITO. (MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 3a edição, São Paulo: Saraiva, 1999, p. 198).
E ainda:
TRIBUNAL DE ALÇADA DO PARANÁ. APELAÇÃO CÍVEL 0121715-8. CURITIBA - 10A VARA CÍVEL- Ac. 10017. JUIZ CONV. ALBINO JACOMEL GUERIOS - QUARTA CÂMARA CÍVEL - Revisor: JUIZ CONV. JURANDYR SOUZA JUNIOR. Unânime - Julg: 09/09/98 - DJ: 25/09/98. O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR APLICA-SE À ATIVIDADE BANCÁRIA, RELATIVIZANDO A PACTA SUNT SERVANDA E POSSIBILITANDO AO JUIZ O REEXAME DO CONTEÚDO DO CONTRATO PARA REEQUILIBRÁ-LO E EVITAR QUE O CONTRATANTE ECONOMICAMENTE MAIS FORTE ESTABELEÇA CONDIÇÕES INÍQUAS E ABUSIVAS.

4. Boa fé contratual

"Manifestada a vontade das partes em pactuar um negócio jurídico (contrato), entrando em consenso sobre o que se deseja firmar, este terá força obrigatória, ou seja, terá que ser cumprido de acordo com o que se acordou (pacta sunt servanda). Este entendimento é real e deve ser seguido, porém com algumas restrições que o novo Código Civil trouxe em seu bojo.
"Sendo assim, a nova Codificação civil expressou que afora os princípios liberais norteadores dos contratos [...] deve, o negócio jurídico, estar baseado em alguns princípios sociais, enumerados pelo código, que são: Função Social; Equivalência Material e a Boa-Fé.
"Entende-se pelo princípio da Função Social que o contrato deve-se adequar ao interesse social, quando este se apresentar, de modo que não pode contrariar a coletividade. Por esse princípio já dá para se ter uma noção da preocupação que teve o novo Código Civil com o lado social dos contratos. Mas, ainda vai além a nova codificação.
"Pelo princípio da equivalência material, expõe o código civil que as partes devem ser igualadas com a execução contratual. Em outras palavras, uma parte não pode lucrar muito, enquanto a outra vá ter prejuízos demasiados. Veja que, apesar da força obrigatória que possui os contratos firmados com autonomia da vontade, há restrições a sua execução em nome do social que agora rege o negócio jurídico.
[...]
"A boa-fé frente a nova codificação civil: São inúmeras as passagens em que se demonstra a necessidade da boa-fé nos contratos [...]. Porém, algumas destas passagens ocorrem de forma implícita, contudo tem-se algumas textualmente demonstradas, senão vejamos:
"Art. 422 - Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Ainda no âmbito do código civil, pode-se encontrar:
"Art. 187 - Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Mais uma vez a boa-fé aparece:
" Art. 113 - Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. "(A boa fé contratual diante da nossa codificação civil, William Almeida, 2004). (grifo nosso)

5. Teoria do Adimplemento Substancial

" O adimplemento substancial é um cumprimento muito próximo do resultado final e que resulta no afastamento das consequências rígidas da mora ". (Fonte)
Isto é, trata-se de adimplemento substancial aqueles casos, como um dos mencionados no início deste artigo, no qual a pessoa pagou já uma boa parte da obrigação contratual, estando muito próxima do fim do cumprimento desta. É o caso do cidadão que pagou 51 parcelas de um financiamento de 60 parcelas.
Essa Teoria possui respaldo também na boa fé contratual, mas, mais que isso, no princípio da confiança entre as partes. Ou seja, se uma das partes cumpriu com a obrigação contratual quase por inteira, a outra parte não se resguardaria no direito de buscar reaver a dívida de forma radicalista, mas sim na tentativa de solucionar o problema de forma que fosse benéfico a ambas as partes.
"A nova ordem conceitual introduziu a teoria da confiança (Treu und Glauben), segundo a qual as partes não mais ocupam posições antagônicas, mas devem proceder no sentido de cooperar com a outra para o fim de adimplemento. No Brasil, a teoria da confiança encontra grande ênfase com o Código de Defesa do Consumidor e com o Código Civil vigente. É uma teoria ética, estando em perfeita consonância com um dos princípios norteadores do Código Civil (o princípio da eticidade), contexto no qual a doutrina do adimplemento substancial se insere."(A Teoria do Adimplemento Substancial, Ângelo Aurélio Gonçalves Pariz) (grifo nosso).
E ainda:
"De acordo com o princípio do favor debitoris, a parte mais débil da relação obrigacional deve ser tutelada, de modo que o cumprimento do contrato seja o menos oneroso possível para o devedor hipossuficiente. Registre-se que tal disparidade de tratamento não viola a isonomia contratual, pois a igualdade deve ser vista não no plano das liberdades formais, mas sim no campo das liberdades materiais. Assim, consiste em tratar desigualmente os desiguais, refletindo a evolução da doutrina contratual. Inicialmente presa aos ditames liberais da força obrigatória dos contratos, a relação jurídica obrigacional sofre radical transformação com a intervenção estatal para proteção da parte mais débil. Frise-se, ainda, que os negócios jurídicos celebrados no mundo moderno caracterizam-se como contratos de adesão, devendo ser interpretados contra a parte que o redigiu, orientação já conhecida desde os romanos, como o instituto do favor debitoris."(Fonte) (grifo nosso).
O direito português, por exemplo, tem acompanhado a tendência de tutela do devedor:
I – Nos termos do artigo 2º da Convenção Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, de 27 de Setembro de 1968 (Convenção de Bruxelas), o réu que tenha domicílio no território de um dos Estados contratantes deve ser demandado nos tribunais desse país. II – A Convenção de Bruxelas optou, assim, pelo princípio do favor «debitoris», embora, em matéria contratual, tenha facultado ainda ao credor accionar o réu em tribunal do Estado em que, segundo o contrato, a prestação deva ser cumprida. III – Foi, pois, correcta a propositura em tribunal português, da comarca da sede da sociedade devedora, de acção em que uma sociedade francesa pretendeu obter a condenação daquela no pagamento do preço de fornecimento que lhe prestara.
(Bol. Do Ministério da Justiça, 471, 339 – Supremo Tribunal de Justiça)
A Teoria do Adimplemento Substancial não zela pelo inadimplemento. Muito pelo contrário, mostra-se uma exceção ao entendimento de que o pagamento deve ser completo (integralidade ou não-divisibilidade), predominando o princípio da conservação do negócio jurídico. Além de prezar pela boa fé contratual do devedor, parte em desvantagem na relação jurídica, merecedora, pois, de tendência de tutela.
Muito embora não possua força de lei e pouco seja abordada pela doutrina pátria, existem vários precedentes jurisprudenciais aplicando a Teoria do Adimplemento Substancial, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, como se vê:
“Alienação fiduciária. Busca e apreensão. Falta da última prestação. Adimplemento substancial. O cumprimento do contrato de financiamento, com a falta apenas da última prestação, não autoriza o credor a lançar mão da ação de busca e apreensão, em lugar da cobrança da parcela faltante. O adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a propositura de ação para a extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda do interesse na continuidade da execução, que não é o caso. Na espécie, ainda houve a consignação judicial do valor da última parcela. Não atende à exigência da boa-fé objetiva a atitude do credor que desconhece esses fatos e promove a busca e apreensão, com pedido liminar de reintegração de posse. Recurso não conhecido” (REsp 272.739-MG; 4ª Turma/STJ; Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar; j. 01.03.2001; DJU, 02.04.2001).
Ou ainda:
“Seguro. Inadimplemento da segurada. Falta de pagamento da última prestação. Adimplemento substancial. Resolução. A companhia seguradora não pode dar por extinto o contrato de seguro, por falta de pagamento da última prestação do prêmio, por três razões: a) sempre recebeu as prestações com atraso, o que estava, aliás, previsto no contrato, sendo inadmissível que apenas rejeite a prestação quando ocorra o sinistro; b) a segurada cumpriu substancialmente com a sua obrigação, não sendo a sua falta suficiente para extinguir o contrato; c) a resolução do contrato deve ser requerida em juízo, quando será possível avaliar a importância do inadimplemento, suficiente para a extinção do negócio. Recurso conhecido e provido” (REsp 76.362-MT; 4ª Turma/STJ; Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar; j. 11.12.95; DJU, 01.04.96).
No mesmo sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: REsp 469.577 (pequeno valor da dívida do contrato de alienação fiduciária frente ao valor do bem essencial à atividade da devedora); REsp 343.698-SP (abusividade de cláusula contratual que suspende os efeitos do contrato de seguro-saúde pelo atraso de só uma prestação); REsp nº 439.625 (comprador perde ou não carro da marca Fiat, adquirido em 36 parcelas, tendo pago apenas 23).
" Numa noção simples, o adimplemento substancial nada mais é do que uma transgressão contratual insignificante e, portanto, incapaz de gerar as conseqüências normais e rígidas da inadimplência ". (Fonte)
Transformar o juiz não mais num mero aplicador da lei, mas num concretizador da justiça será uma das conseqüências da aplicação da teoria, cujo alcance está cada vez mais sendo ampliado na ordem jurídica civil-constitucional. (Fonte)

6. O que fazer em caso de busca e apreensão de veículo?

Existe a opção de se ajuizar uma Ação Revisional contra o Banco, pedindo-se liminar na Manutenção de Posse, e até mesmo a Consignação em Pagamento a fim de se recolher as parcelas vincendas, evitando os efeitos da mora sobre estas, ou algumas das parcelas vencidas, buscando evitar, assim, a consumação da busca e apreensão.
Em alguns casos, pode-se também pleitear pela indenização por danos morais, sobretudo em havendo-se cobranças vexatórias.
A todo momento processual cabível, peça a designação de audiências de conciliação, pois, diante do que vimos neste artigo, buscar um acordo com o Banco é sempre a melhor opção.
7. Conclusão
Diante do exposto, resta clara a conclusão de que a busca e apreensão de veículos em financiamento em razão de inadimplemento não se mostra uma solução viável.
Por óbvio, cada caso deve ser analisado de forma individual, e a busca e apreensão se justifica em algumas conjunturas. Todavia, o que se observa é o radicalismo e a"mão pesada"de alguns juízes em decisões onde resta clara a boa fé do devedor/consumidor (porque, sim, é uma relação de consumo).
Não obstante, nota-se, também, certa tendência de tutela às Instituições Financeiras, o que absolutamente não se justifica em um Estado Democrática de Direito, onde é papel do Poder Judiciário buscar a promoção da justiça, e não o favoritismo de uma ou outra parte.
O Poder Judiciário deve, entretanto, prover maior guarida à parte mais fragilizada da relação jurídica, promovendo a isonomia; e notoriamente a parte em desvantagem não é a Instituição Financeira. E, em verdade, as decisões que atualmente se encontram sobre o assunto em tela pouco trazem justiça à sociedade, e muito favorecem a quem figura como parte mais avantajada e"endinheirada"da história.
[Gostou do texto? Leia mais no blog Diário da Vida Jurídica (DVJ)].

AVISO IMPORTANTE
Este texto foi originalmente publicado no blog Diário da Vida Jurídica, postado por Dra Camila Sardinha. A reprodução parcial ou integral deste é autorizada somente mediante a atribuição dos créditos de sua fonte original.

http://camilasardinha.jusbrasil.com.br/artigos/176695551/o-banco-levou-meu-carro?utm_campaign=newsletter-daily_20150326_927&utm_medium=email&utm_source=newsletter

Cinco lições sobre a vida e o Direito, por ministro Barroso

Patrono da turma de 2014 da faculdade de Direito da UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o ministro Roberto Barroso, do STF, proferiu emocionante discurso com reflexões essenciais relacionadas à vida e ao Direito.

Confira a íntegra do texto.



A vida e o Direito : breve manual de instruções

I. Introdução 
Eu poderia gastar um longo tempo descrevendo todos os sentimentos bons que vieram ao meu espírito ao ser escolhido patrono de uma turma extraordinária como a de vocês. Mas nós somos – vocês e eu – militantes da revolução da brevidade. Acreditamos na utopia de que em algum lugar do futuro juristas falarão menos, escreverão menos e não serão tão apaixonados pela própria voz.Por isso, em lugar de muitas palavras, basta que vejam o brilho dos meus olhos e sintam a emoção genuína da minha voz. E ninguém terá dúvida da felicidade imensa que me proporcionaram. Celebramos esta noite, nessa despedida provisória, o pacto que unirá nossas vidas para sempre, selado pelos valores que compartilhamos.É lugar comum dizer-se que a vida vem sem manual de instruções. Porém, não resisti à tentação – mais que isso, à ilimitada pretensão – de sanar essa omissão. Relevem a insensatez. Ela é fruto do meu afeto. Por certo, ninguém vive a vida dos outros. Cada um descobre, ao longo do caminho, as suas próprias verdades. Vai aqui, ainda assim, no curto espaço de tempo que me impus, um guia breve com ideias essenciais ligadas à vida e ao Direito.

 II. A regra nº 1 
No nosso primeiro dia de aula eu lhes narrei o multicitado "caso do arremesso de anão". Como se lembrarão, em uma localidade próxima a Paris, uma casa noturna realizava um evento, um torneio no qual os participantes procuravam atirar um anão, um deficiente físico de baixa altura, à maior distância possível. O vencedor levava o grande prêmio da noite. Compreensivelmente horrorizado com a prática, o Prefeito Municipal interditou a atividade.
Após recursos, idas e vindas, o Conselho de Estado francês confirmou a proibição. Na ocasião, dizia-lhes eu, o Conselho afirmou que se aquele pobre homem abria mão de sua dignidade humana, deixando-se arremessar como se fora um objeto e não um sujeito de direitos, cabia ao Estado intervir para restabelecer a sua dignidade perdida. Em meio ao assentimento geral, eu observava que a história não havia terminado ainda.
E em sequida, contava que o anão recorrera em todas as instâncias possíveis, chegando até mesmo à Comissão de Direitos Humanos da ONU, procurando reverter a proibição. Sustentava ele que não se sentia – o trocadilho é inevitável – diminuído com aquela prática. Pelo contrário.Pela primeira vez em toda a sua vida ele se sentia realizado. Tinha um emprego, amigos, ganhava salário e gorjetas, e nunca fora tão feliz. A decisão do Conselho o obrigava a voltar para o mundo onde vivia esquecido e invisível.Após eu narrar a segunda parte da história, todos nos sentíamos divididos em relação a qual seria a solução correta. E ali, naquele primeiro encontro, nós estabelecemos que para quem escolhia viver no mundo do Direito esta era a regra nº 1: nunca forme uma opinião sem antes ouvir os dois lados. 


III. A regra nº 2
 Nós vivemos em um mundo complexo e plural. Como bem ilustra o nosso exemplo anterior, cada um é feliz à sua maneira. A vida pode ser vista de múltiplos pontos de observação. Narro-lhes uma história que li recentemente e que considero uma boa alegoria. Dois amigos estão sentados em um bar no Alaska, tomando uma cerveja. Começam, como previsível, conversando sobre mulheres. Depois falam de esportes diversos. E na medida em que a cerveja acumulava, passam a falar sobre religião. Um deles é ateu. O outro é um homem religioso. Passam a discutir sobre a existência de Deus. O ateu fala: "Não é que eu nunca tenha tentado acreditar, não. Eu tentei. Ainda recentemente. Eu havia me perdido em uma tempestade de neve em um lugar ermo, comecei a congelar, percebi que ia morrer ali. Aí, me ajoelhei no chão e disse, bem alto: Deus, se você existe, me tire dessa situação, salve a minha vida". Diante de tal depoimento, o religioso disse: “Bom, mas você foi salvo, você está aqui, deveria ter passado a acreditar". E o ateu responde: "Nada disso! Deus não deu nem sinal. A sorte que eu tive é que vinha passando um casal de esquimós. Eles me resgataram, me aqueceram e me mostraram o caminho de volta. É a eles que eu devo a minha vida". Note-se que não há aqui qualquer dúvida quanto aos fatos, apenas sobre como interpretá-los.Quem está certo? Onde está a verdade? Na frase feliz da escritora Anais Nin, “nós não vemos as coisas como elas são, nós as vemos como nós somos”. Para viver uma vida boa, uma vida completa, cada um deve procurar o bem, o correto e o justo. Mas sem presunção ou arrogância. Sem desconsiderar o outro.
Aqui a nossa regra nº 2: a verdade não tem dono


IV. A regra nº 3
 Uma vez, um sultão poderoso sonhou que havia perdido todos os dentes. Intrigado, mandou chamar um sábio que o ajudasse a interpretar o sonho. O sábio fez um ar sombrio e exclamou: "ma desgraça, Majestade. Os dentes perdidos significam que Vossa Alteza irá assistir a morte de todos os seus parentes". Extremamente contrariado, o Sultão mandou aplicar cem chibatadas no sábio agourento. Em seguida, mandou chamar outro sábio. Este, ao ouvir o sonho, falou com voz excitada: "Vejo uma grande felicidade, Majestade. Vossa Alteza irá viver mais do que todos os seus parentes". Exultante com a revelação, o Sultão mandou pagar ao sábio cem moedas de ouro. Um cortesão que assistira a ambas as cenas vira-se para o segundo sábio e lhe diz: "Não consigo entender. Sua resposta foi exatamente igual à do primeiro sábio. O outro foi castigado e você foi premiado". Ao que o segundo sábio respondeu: "a diferença não está no que eu falei, mas em como falei".Pois assim é. Na vida, não basta ter razão: é preciso saber levar. É possível embrulhar os nossos pontos de vista em papel áspero e com espinhos, revelando indiferença aos sentimentos alheios. Mas, sem qualquer sacrifício do seu conteúdo, é possível, também, embalá-los em papel suave, que revele consideração pelo outro.
Esta a nossa regra nº 3: o modo como se fala faz toda a diferença.

 

V. A regra nº 4 
Nós vivemos tempos difíceis. É impossível esconder a sensação de que há espaços na vida brasileira em que o mal venceu. Domínios em que não parecem fazer sentido noções como patriotismo, idealismo ou respeito ao próximo. Mas a história da humanidade demonstra o contrário. O processo civilizatório segue o seu curso como um rio subterrâneo, impulsionado pela energia positiva que vem desde o início dos tempos. Uma história que nos trouxe de um mundo primitivo de aspereza e brutalidade à era dos direitos humanos. É o bem que vence no final. Se não acabou bem, é porque não chegou ao fim . O fato de acontecerem tantas coisas tristes e erradas não nos dispensa de procurarmos agir com integridade e correção. Estes não são valores instrumentais, mas fins em si mesmos. São requisitos para uma vida boa. Portanto, independentemente do que estiver acontecendo à sua volta, faça o melhor papel que puder. A virtude não precisa de plateia, de aplauso ou de reconhecimento. A virtude é a sua própria recompensa. Eis a nossa regra nº 4: seja bom e correto mesmo quando ninguém estiver olhando. 

VI. A regra nº 5Em uma de suas fábulas, Esopo conta a história de um galo que após intensa disputa derrotou o oponente, tornando-se o rei do galinheiro. O galo vencido, dignamente, preparou-se para deixar o terreiro. O vencedor, vaidoso, subiu ao ponto mais alto do telhado e pôs-se a cantar aos ventos a sua vitória. Chamou a atenção de uma águia, que arrebatou-o em vôo rasante, pondo fim ao seu triunfo e à sua vida. E, assim, o galo aparentemente vencido reinou discretamente, por muito tempo. A moral dessa história, como próprio das fábulas, é bem simples: devemos ser altivos na derrota e humildes na vitória. Humildade não significa pedir licença para viver a própria vida, mas tão-somente abster-se de se exibir e de ostentar. Ao lado da humildade, há outra virtude que eleva o espírito e traz felicidade: é a gratidão. Mas atenção, a gratidão é presa fácil do tempo: tem memória curta (Benjamin Constant) e envelhece depressa (Aristóteles). Portanto, nessa matéria, sejam rápidos no gatilho. Agradecer, de coração, enriquece quem oferece e quem recebe.Em quase todos os meus discursos de formatura, desde que a vida começou a me oferecer este presente, eu incluo a passagem que se segue, e que é pertinente aqui. "As coisas não caem do céu. É preciso ir buscá-las. Correr atrás, mergulhar fundo, voar alto. Muitas vezes, será necessário voltar ao ponto de partida e começar tudo de novo. As coisas, eu repito, não caem do céu. Mas quando, após haverem empenhado cérebro, nervos e coração, chegarem à vitória final, saboreiem o sucesso gota a gota. Sem medo, sem culpa e em paz. É uma delícia. Sem esquecer, no entanto, que ninguém é bom demais. Que ninguém é bom sozinho. E que, no fundo no fundo, por paradoxal que pareça, as coisas caem mesmo é do céu, e é preciso agradecer".Esta a nossa regra nº 5: ninguém é bom demais, ninguém é bom sozinho e é preciso agradecer. 

VII. Conclusão
 Eis então as cláusulas do nosso pacto, nosso pequeno manual de instruções: 1. Nunca forme uma opinião sem ouvir os dois lados; 2. A verdade não tem dono; 3. O modo como se fala faz toda a diferença; 4. Seja bom e correto mesmo quando ninguém estiver olhando; 5. Ninguém é bom demais, ninguém é bom sozinho e é preciso agradecer.Aqui nos despedimos. Quando meu filho caçula tinha 15 anos e foi passar um semestre em um colégio interno fora, como parte do seu aprendizado de vida, eu dei a ele alguns conselhos. Pai gosta de dar conselho. E como vocês são meus filhos espirituais, peço licença aos pais de vocês para repassá-los textualmente, a cada um, com toda a energia positiva do meu afeto: (i) Fique vivo; (ii) Fique inteiro; (iii) Seja bom-caráter; (iv) Seja educado; e (v) Aproveite a vida, com alegria e leveza.Vão em paz. Sejam abençoados. Façam o mundo melhor. E lembrem-se da advertência inspirada de Disraeli: "A vida é muito curta para ser pequena".



http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI217918,61044-Cinco+licoes+sobre+a+vida+e+o+Direito+por+ministro+Barroso