terça-feira, 2 de agosto de 2016

Quem bate carro que foi emprestado não é obrigado a indenizar o dono

Uma pessoa que usa o bem de outra, com consentimento, não pode ser responsabilizada caso aconteça algum dano por acidente. Com esse entendimento, a 2ª Turma Recursal Mista Temporária de Goiânia negou recurso de um homem que buscava reparação material do ex-companheiro devido a uma batida de carro.  O namorado do proprietário emprestou o veículo para uma amiga, que bateu. 
Juiz afirmou que relacionamento gera perdão tácito por eventuais prejuízos que um causa ao outro
A advogada Chyntia Barcellos, em defesa do ex-companheiro do autor ação, destacou que o fato não configura culpa e, por isso, não é passível de reparação. Ela ressaltou que a perda do veículo havia sido perdoada, já que, depois disso, o relacionamento perdurou por aproximadamente dois anos. O proprietário do carro resolveu recorrer às vias judiciais após descobrir uma traição, o que foi apontado por ela como vingança. 
Na decisão de primeiro grau, o juiz Aldo Guilherme Saad Sabino de Freitas, do 2º Juizado Especial Cível de Goiânia, ressaltou que “o amor entre duas pessoas gera uma série de reflexos jurídicos, inclusive o perdão tácito por eventuais prejuízos que um causa ao outro. Não fosse assim, não haveria saneamento das relações. Esta é uma constatação natural e qualquer um que tenha sabedoria a conhece”.
Na instância superior, o relator da 2ª Turma Recursal, juiz Altair Guerra da Costa, confirmou o posicionamento e ainda sublinhou em sua decisão: “No contrato de comodato [empréstimo], de natureza personalíssima ou intuitu personae, a relação jurídica existente vincula exclusivamente o comodante e o comodatário, de modo que se o último entrega a terceiro o bem recebido em comodato e a coisa sofre qualquer dano o único responsável é o comodatário, o qual possui ação regressiva contra o terceiro causador do dano”.   
Processo 5604511.07.2014.8.09.0060
Revista Consultor Jurídico, 23 de julho de 2016, 7h19
http://www.conjur.com.br/2016-jul-23/quem-bate-carro-emprestado-nao-obrigado-indenizar-dono

STJ: Obrigação de pagar pensão não passa automaticamente de pais para avós

O Superior Tribunal de Justiça entende que a obrigação dos avós de pagar pensão alimentícia é subsidiária, já que a responsabilidade dos pais é preponderante. Dessa forma, os avós não assumem automaticamente o encargo em caso de morte ou insuficiência financeira dos pais, conforme 28 decisões divulgadas na ferramenta Pesquisa Pronta, disponível no site do tribunal.
As decisões demonstram a interpretação dos ministros em relação ao Código Civil, que prevê o pagamento da pensão por parte dos avós (conhecidos como alimentos avoengos ou pensão avoenga) em diversas situações. Em todos os casos, é preciso comprovar dois requisitos básicos: a necessidade da pensão alimentícia e a impossibilidade de pagamento por parte dos pais, que são os responsáveis imediatos.
Diversas decisões de tribunais estaduais foram contestadas junto ao STJ, tanto nos casos de transferir automaticamente a obrigação para os avós, quanto em casos em que a decisão negou o pedido para que os avós pagassem integralmente ou uma parte da pensão alimentícia.
Em uma das decisões, o ministro Luís Felipe Salomão destacou que a responsabilidade dos avós é sucessiva e complementar quando demonstrada a insuficiência de recursos dos pais. Na prática, isso significa que os avós, e até mesmo os bisavós, caso vivos, podem ser réus em ação de pensão alimentar, dependendo das circunstâncias.
Sem reexame
Como o STJ não pode reexaminar as provas do processo, a comprovação ou não de necessidade dos alimentos, em regra, não é discutida no âmbito do tribunal. Dessa forma, as decisões destacadas demonstram a tentativa de reverter decisões com o argumento da desnecessidade de alimentos ou de complementação da pensão. É o caso de um recurso analisado pelo ministro aposentado Sidnei Beneti.
No exemplo, os avós buscavam a revisão de uma pensão alimentícia por entender que não seriam mais responsáveis pela obrigação. O julgamento do tribunal de origem foi no sentido de manter a obrigação, devido à necessidade dos beneficiários.
O ministro destacou a impossibilidade do STJ de rever esse tipo de entendimento, com base nas provas do processo. “A corte estadual entendeu pela manutenção da obrigação alimentar, com esteio nos elementos de prova constantes dos autos, enfatizando a observância do binômio necessidade/possibilidade. Nesse contexto, a alteração desse entendimento, tal como pretendida, demandaria, necessariamente, novo exame do acervo fático-probatório, o que é vedado pela Súmula 7 do STJ.”
Pensão direta
Outro questionamento frequente nesse tipo de demanda é sobre as ações que buscam a pensão diretamente dos avós, seja por motivos financeiros, seja por aspectos pessoais. O entendimento do STJ é que este tipo de “atalho processual” não é válido, tendo em vista o caráter da responsabilidade dos avós.
Em uma das ações em que o requerente não conseguiu comprovar a impossibilidade de o pai arcar com a despesa, o ministro João Otávio de Noronha resumiu o assunto: “A responsabilidade dos avós de prestar alimentos é subsidiária e complementar à responsabilidade dos pais, só sendo exigível em caso de impossibilidade de cumprimento da prestação - ou de cumprimento insuficiente - pelos genitores”.
Ou seja, não é possível demandar diretamente os avós antes de buscar o cumprimento da obrigação por parte dos pais, bem como não é possível transferir automaticamente de pai para avô a obrigação do pagamento (casos de morte ou desaparecimento).
Além de comprovar a impossibilidade de pagamento por parte dos pais, o requerente precisa comprovar a sua insuficiência, algo que nem sempre é observado.
A complementaridade não é aplicada em casos de simples inadimplência do responsável direto (pai ou mãe). No caso, não é possível ajuizar ação solicitando o pagamento por parte dos avós. Antes disso, segundo os ministros, é preciso o esgotamento dos meios processuais disponíveis para obrigar o alimentante primário a cumprir sua obrigação.
Efeitos jurídicos
A obrigação dos avós, apesar de ser de caráter subsidiário e complementar, tem efeitos jurídicos plenos quando exercida. Em caso de inadimplência da pensão, por exemplo, os avós também podem sofrer a pena de prisão civil.
Em um caso analisado pelo STJ, a avó inadimplente tinha 77 anos, e a prisão civil foi considerada legítima. Na decisão, os ministros possibilitaram o cumprimento da prisão civil em regime domiciliar, devido às condições de saúde e a idade da ré. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
Revista Consultor Jurídico, 25 de julho de 2016, 15h44
http://www.conjur.com.br/2016-jul-25/pensao-nao-passa-automaticamente-pais-avos-stj

O regime de contratos no projeto do novo Código Comercial (parte 2)

Por Gerson Luiz Carlos Branco

Este artigo é continuação de uma reflexão cuja primeira parte já foi publicada na primeira passada na ConJur, na coluna dedicada a divulgação dos resultados das pesquisas desenvolvidas pela Rede de Pesquisa em Direito Civil Contemporâneo, a respeito da proposta de um projeto de Código Comercial.
 A conclusão da primeira parte desse estudo enfrentava o problema de contratos, como os de locação e a compra e venda que, embora regulados sob uma única veste legal, comportam a sua caracterização tanto como contratos civis tanto como contratos empresariais, conforme a natureza da relação cuja veste estão servindo.
Formulou-se, então a pergunta: quais são as regras e princípios que disciplinam tais contratos, e, especialmente, é possível regular tais contratos independentemente de terem sido celebrados em uma relação civil, entre empresários ou em uma relação de consumo?
A proposta deste artigo é de que a resposta é negativa, e, consequentemente, é preciso refletir sobre quais as consequências de um Código Comercial que regule de modo distinto tais contratos.
Por isso, volta-se à disciplina anterior ao Código vigente cujo conteúdo era diferente da atual: o regime da compra e venda civil era disciplinado no artigo 1.122 e parágrafos do Código Civil, era voltado, substancialmente, para compra e venda de imóveis, sendo estruturalmente diferente da compra e venda mercantil, no artigo 191 e parágrafos do Código Comercial.
O artigo 205 do Código Comercial exigia a interpelação do vendedor ou comprador para que esse fosse constituído em mora, algo dispensado pelo Direito Civil.[1]
Ainda havia diferenças, como por exemplo, a disposição do artigo 209, inciso II, do Código Comercial a qual exigia que o objeto do contrato fosse coisas fungíveis, sempre admitindo execução da obrigação como coisa genérica, não obstante pudesse ter sido determinada pelas partes.  O artigo 211 do Código Comercial estabelecia que o prazo para reconhecimento dos vícios redibitórios era de 10 dias. Todavia, tal prazo era para reclamar pelos defeitos da mercadoria e não para propor ação redibitória ou actio quanti minoris, como no Código Civil, cujos prazos eram de 15 dias para bens móveis e seis meses para bens imóveis.
O artigo 212 do Código Comercial presumia que a devolução da coisa com o recebimento pelo vendedor, sem que esse depositasse a mesma judicialmente, representava aceitação da resolução. [2]
Essas diferenças foram eliminadas com o Código Civil vigente.
Então, formula-se nova pergunta: como é possível considerar distintamente compra e venda mercantil da compra civil?
A resposta é dupla.
Primeiro, o atual Código Civil teve como base o diploma de 1916, tendo inserido algumas disposições que somente incidem nas relações empresariais, para permitir a disciplina dessa modalidade de contrato.[3]
O melhor exemplo é a regra do art. 488, cujo conteúdo aparentemente é contraditório com a disposição o art. 482 do mesmo código.
Enquanto no artigo 482 a lei exige como elementos essenciais do contrato o preço, a coisa e o respectivo consenso, o artigo 488 estabelece solução para a venda “sem fixação de preço ou de critérios para sua determinação”, caso em que deve ser obedecido o “tabelamento oficial”, ou, então, “o preço corrente nas vendas habituais do vendedor”.
A contradição é apenas aparente, pois o próprio artigo 488 é elucidativo a propósito de sua incidência ao usar a expressão “vendas habituais do vendedor”.
Quem vende habitualmente é o empresário, nos termos do que determina o artigo 966 do Código Civil, pois a atividade profissional e habitual é o critério essencial adotado pelo Código Civil sobre quem é empresário.
Por isso, o artigo 488 somente incide naqueles casos em que o vendedor atua na condição de empresário com vendas habituais de determinado objeto, que justifique a existência de um preço “regularmente praticado”, nos termos do que costumeiramente se realiza nas práticas de mercado.
Se a compra e venda for “civil”, como é o caso da venda de algum bem que não se constitua em exercício de uma atividade habitual, incide o artigo 482 em sua extensão e, faltando preço ou critérios para sua determinação, o caso será de inexistência da compra e venda pela falta de elementos mínimos, constitutivos do negócio jurídico.
Dada a natureza impessoal da compra e venda empresarial, não há como invocar erro quanto às qualidades essenciais da pessoa, bem como afasta-se as regras subjetivas de interpretação na fase da execução do contrato, tendo em vista “a sua estandardização e um particular rigor quanto à execução”.[4]
Além disso, são raras as hipóteses de aplicação das regras dos artigos 423 e 424 do Código Civil, que tratam sobre os contratos de adesão nos contratos civis, o que é comum nos contratos do Direito Empresarial.[5]
Essa diferença de tratamento é sustentada pela natureza diversa da relação, tendo em vista que a compra e venda mercantil é realizada por profissionais que atuam de forma organizada, inserindo o contrato no contexto de sua organização e no exercício de suas atividades, cujos fins são econômicos. A compra e venda civil é uma relação juridicamente paritária em que, apesar de sua causa ser econômica, o ato praticado não faz parte de uma atividade econômica, circunstância que pode alterar substancialmente o modo de resolução dos conflitos.
A título de exemplo, o inadimplemento do preço de um contrato de compra e venda para o empresário representa dificuldades em seu capital de giro, possibilidade de que uma duplicata tenha sido emitida e descontada perante uma instituição financeira, possibilidade da falência do devedor no caso de protesto do título, etc. Numa relação civil, o inadimplemento terá as consequências legais e os motivos do vendedor poderão ser relevantes para determinação da possibilidade de execução ou resolução do contrato, situação que não pode ser considerada nas relações empresariais.[6]
A natureza fática, o modelo proveniente da “vida de relação”, guarda peculiaridades que não permitem a adoção de um standart normativo único para resolução dos conflitos.
A análise das disposições do contrato de compra e venda inseridos no Projeto de Código Comercial trazem algumas perplexidades.
A primeira delas é o afastamento de norma equivalente ao art. 488 do Código Civil, o que torna essentialia negotti o acordo sobre o preço, contrariando os usos e costumes e a prática do mercado.  Segundo a disposição do Art. 331 do Projeto de Código Comercial, caberá ao autor da demanda provar o acordo a respeito do preço do produto.
Em não havendo tal prova, será o caso de incidir o Art. 488 do Código Civil, tendo em vista a norma de aplicação supletiva desse diploma legal (artigo 298, caput, do projeto)?
Parece que uma resposta negativa resultaria em severa e prejudicial alteração ao bom andamento dos negócios e uma resposta positiva torna inútil a nova regulamentação.
O mesmo diga-se relativamente à venda sobre documentos, compra e venda com reserva de domínio, etc., que apesar de serem operações típicas do Direito Comercial continuarão a ser reguladas pelo Código Civil.
Em síntese, as falhas sistemáticas na disciplina dos contratos em espécie precisam ser pensadas, sob pena de ser aprofundada a crise de insegurança jurídica que o meio empresarial vive hoje.
Passado mais de uma década da vigência do Código Civil algumas de suas deficiências começam a ser tratadas de modo uniforme pela jurisprudência, não sendo plausível que neste momento haja um aprofundamento das incertezas por problemas de técnica legislativa e de má compreensão da extensão e da complexidade do relacionamento entre o sistema do Direito das Obrigações com o Direito Empresarial.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).

[1] Entre inúmeras decisões a respeito da matéria, veja-se a seguinte, proferida durante a vacatio legis do Código Civil vigente: Superior Tribunal de Justiça. RESp. n. 49011/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, j. 12.03.2002, DJ. 06.05.2002, www.stj.gov.br
[2] Exemplo interessante está em decisão no âmbito do Direito Falimentar, em que se aplicam as regras sobre evicção: Superior Tribunal de Justiça, REsp. n. 117716/SP, 4ª Turma, Min. Barros Monteiro, j. 02.09.1999, DJ. 13.12.1999, www.stj.gov.br. Superior Tribunal de Justiça, REsp n. 162163/SP, 4ª turma, Rel. Min. Ruy Rosado do Aguiar Júnior, j. 16.04.1998, dj. 29.06.98,www.stj.gov.br.TJRS, 9ª Câmara Cível, Rel. Des. Mara Larsen Chechi, j. 30.10.2002, www.tj.rs.gov.br, em 28.07.2007.
[3] Tratamos da unificação legislativa e o regime obrigacional sobre a compra e venda no artigo BRANCO, G. L. C. . O regime obrigacional unificado do Código Civil brasileiro e seus efeitos sobre a liberdade contratual. A compra e venda como modelo jurídico multifuncional. Revista dos Tribunais (São Paulo), v. 872, p. 11-42, 2008.
[4] ASCARELLI, Tullio. Panorama do Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1947, p. 52.
[5] Porém, não se pode confundir a eficácia de um contrato de adesão nas relações de consumo com os contratos empresariais. Exemplo disso é a decisão proferida no STJ, REsp nº 1.055.185/PR, Quarta Turma, Relator: Min. Marco Buzzi, 1/04/2014, na qual  o STJ reconhece a natureza de adesão do contrato, mas mantém os efeitos da cláusula contratual de eleição de foro.
[6] BRANCO, G. L. C.  Autonomia privada e vontade: considerações históricas sobre a formação dos motivos no código civil brasileiro.. In: BRANCO, Gerson Luiz Carlos; BAEZ, Narciso Leandro Xavier; PORCIUNCULA, Marcelo (Org). (Org.). A Problemática dos Direitos Humanos Fundamentais na América Latina e na Europa: Desafios Materiais e Eficaciais. Joaçaba: Unoesc, 2012.
Revista Consultor Jurídico, 1 de agosto de 2016, 8h00

Aprovação crítica do regime de contratos no projeto de Código Comercial (parte 1)

Por 
Dada a notícia de que aprofundam-se as discussões no Congresso Nacional a respeito da votação do projeto de Código Comercial apresentada pelo deputado Vicente Cândido, torna-se necessário que se aprofundem as reflexões sobre os efeitos de uma possível aprovação de tal projeto de lei.
Nesse sentido, este breve artigo contém reflexão sobre o grau de unificação do Direito das Obrigações que atualmente existe no Direito brasileiro, considerando-se o regime legal unificado do Código Civil vigente e eventuais efeitos de um possível e futuro Código Comercial, especialmente sobre o Direito Contratual, fruto das investigações feitas no grupo de pesquisas em Direito Empresarial na UFRGS, participante da Rede de Direito Civil Contemporâneo.
Trata-se de um de vários estudos que serão publicados nesta coluna e que tem como objetivo discutir os efeitos práticos e as dificuldades decorrentes de uma possível aprovação do Projeto de Código Comercial.
Nesse sentido, deve-se observar que as reflexões não servem como crítica favorável ou contrária à aplicação dos seus dispositivos, mas apenas como uma contribuição a fim de que tais problemas sejam pensados, seja para aprimoramento do projeto ou mesmo para revisão de propósitos.
Como já afirmei em outras oportunidades, embora o  Código Civil tenha unificado legislativamente a matéria, essa unificação é aparente em alguns casos e parcial em outros.
Iniciando-se pelos contratos em espécie, pode-se observar que muitos dos contratos típicos previstos no Código Civil são unicamente mercantis. Embora a estrutura legal não discrimine, a possibilidade jurídica de sua realização está associada à prática reiterada de uma atividade considerada como objeto da empresa, segundo a determinação do artigo 966 do Código Civil.
Veja-se, por exemplo, o contrato de seguro. Somente pode-se desempenhar a função de seguradora no Brasil uma sociedade empresária organizada sob a forma de S.A., nos termos do que determina o Decreto-lei 73/1966. Embora as disposições do Código Civil nada digam a esse respeito, o código não compreende a totalidade do Direito ou disciplina integral da atividade.
atividade econômica e social, conhecida como seguro, é disciplinada por leis eminentemente empresariais, reservando-se no Código Civil, por força da tradição, as disposições do contrato de seguro.
O seguro nasceu pelas mãos dos comerciantes e é tipicamente um contrato comercial[1].
A disposição do artigo 425 do Código Civil[2] permite que se possa celebrar contratos atípicos e, com isso, nada impede que os particulares, que não façam a atividade de seguro uma atividade profissional, possam celebrar um contrato de seguro mútuo, nos moldes do que previa os artigos 1.466 e subsequentes do Código Civil de 1916, atraindo a regulação atual sobre a matéria[3].
Porém, isso é uma situação absolutamente excepcional que não altera a condição de o seguro de ser um contrato tipicamente empresarial, podendo ser, também, regulado concomitamente pelo Direito do Consumidor, quando for o caso.
Nesse aspecto, o projeto de Código Comercial, ao afirmar, no parágrafo único do artigo 298, que “o Código de Defesa do Consumidor não é aplicável aos contratos empresariais”, incorre em uma grave falha sistemática.
Embora o contrato seja empresarial, não é possível deixar de aplicar o Código de Defesa do Consumidor quando a relação for de consumo. Nesse sentido, a tentativa de qualificar como “empresarial” os contratos celebrados entre empresários, analisada em conjunto com a disposição do artigo 9º, de que “empresário é quem, sendo pessoa física ou sociedade, está inscrito como tal no Registro Público de Empresas”, representa verdadeiro retrocesso histórico, aos tempos do album mercatorum, ignorando-se as razões históricas e sociais do surgimento da teoria dos atos de comércio.
Não se pode ignorar a interação normativa entre Direito Civil e Comercial, circunstância que Tullio Ascarelli já havia chamado a atenção de que o Código Civil de 1916 havia tratado sobre diversas matérias que eram típicas do Direito Comercial. O autor italiano chama a atenção para a representação, o seguro, os títulos de crédito e as próprias sociedades por ações, como institutos do Direito Comercial que acabaram sendo absorvidos pelo Direito comum, com uma aplicação geral[4].
Porém, surpreendentemente, o contrato de seguro não está regulado no projeto de código.
Isso significa que, na hipótese de aprovação do atual projeto de Código Comercial, será necessário regular a matéria segundo as disposições do Código Civil.
Evidentemente não será novidade termos um Código Comercial e um Código Civil com regulamentação de contratos mercantis. A esse propósito, Ascarelli chamava a atenção da regulamentação da venda por amostras, venda a contento e sujeita a prova no Código Civil de 1916, contratos que desde sempre foram atinentes às atividades empresariais e estavam regulados no Código Civil de 1916[5].
Esses são outros exemplos: venda por amostras, venda sobre documentos, venda a contento, contratos tipicamente empresariais, que raramente podem surgir em uma relação civil, pois a sua prática social está vinculada ao exercício de atividade para a circulação de produtos, nos moldes do artigo 966 do Código Civil. Se aprovado o projeto de Código Comercial, tais contratos continuarão sendo regulados pelo Código Civil.
Contratos de corretagem, distribuição, comissão, assim como um grande número de contratos socialmente típicos, tais como factoringfranchising, shopping center etc., são, em regra, invariavelmente praticados por empresários no exercício de sua atividade, e, por consequência, se submetem aos princípios, regras e métodos do Direito Empresarial.
Considerando que o Código Comercial foi editado 66 anos antes do Código Civil de 1916, pode-se claramente compreender as razões legislativas para disciplinar matérias mercantis no Código Civil. Entretanto será difícil entender ou explicar as razões de se editar um Código Comercial para “resgatar princípios” e deixar um contrato como o de seguro disciplinado unicamente no Código Civil.
É claro que alguns contratos dificilmente podem ser concebidos como contratos empresariais. Assim, todos os contratos gratuitos são previstos no Código Civil, pois a gratuidade não é compatível com a atividade empresarial.
Nesse sentido, contratos que eram presumidamente gratuitos foram regulados pelo Código Civil como presumidamente onerosos se possuírem “fins econômicos”. Embora os “fins econômicos” não sejam um privilégio do Direito Empresarial, é certo que todas as relações empresariais possuem, direta ou indiretamente, fins econômicos[6].
Assim, os contratos de depósito, mútuo e mandato, quando feitos por empresários no exercício de sua atividade, serão sempre onerosos e submetidos aos princípios e regras do Direito Empresarial.
Os contratos de comodato e doação, que por sua natureza são sempre gratuitos, também, podem ser usados nas relações empresariais, mas, em tal hipótese, a regulamentação não é propriamente a prevista no Código Civil, mas está acrescida dos princípios e regras que disciplinam a relação empresarial que lhes tem como objeto.
Esses contratos, quando feitos no âmbito das relações empresariais, dificilmente são celebrados de forma isolada, pois, geralmente, estão conectados a outros contratos (típicos ou socialmente típicos), formando um sistema contratual ou um conjunto de contratos conexos, cuja causa atrai a incidência de regras distintas[7].
Diante disso, tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm disciplinado, relativamente aos contratos de comodato de tanques de combustíveis, doação de amostras gratuitas etc.[8], a partir da ótica do Direito Empresarial, e não do Direito Civil.
Essa elaboração ou ressignificação tem conteúdo dogmático importante tanto para o reconhecimento da unidade de regime do Direito das Obrigações, quanto da autonomia do Direito Comercial como disciplina jurídica, com princípios e métodos próprios[9].
Além disso, a doutrina, cumprindo o seu papel integrador e estabilizador, também acabou cunhando uma nova classificação para considerar oscontratos interessados. Esses que são aqueles em que, apesar de haver gratuidade, a causa contratual está associada a fins econômicos e, portanto, aplicam-se a esses contratos as regras e princípios dos contratos onerosos.
A esse propósito e por causa da própria unificação legislativa, os elaboradores do código estabelecem como critério de fixação de riscos, atribuição de responsabilidade, a terminologia “contratos benéficos”, como sendo aqueles que além de gratuitos não são interessados.
Sobre essa questão, o projeto de Código Comercial contém a disposição do artigo 320, segundo o qual “as obrigações constantes de contrato empresarial presumem-se onerosas”. Tal disposição não é expressa como regra geral no Código Civil vigente, mas está inserida como disposição dos contratos que além de gratuitos, também podem ser objeto de relações empresariais, tais como o mútuo, depósito etc.
Ou seja, a solução do projeto de Código Comercial, nesse aspecto, será a de continuar aplicando o Código Civil, o que dispensa qualquer outro comentário.
Há outros contratos, como os de locação e a compra e venda, que, embora regulados sob uma única veste legal, comportam contratos civis e empresariais.
E nesses casos, as regras e princípios são os mesmos, independentemente da matéria?
A resposta a esse questionamento será apresentada na segunda parte deste artigo, na próxima semana.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).


[1] Espínola, EDUARDO. Contratos Nominados no Direito Civil Brasileiro. Campinas, Bookseller, 2002, p. 642 e ss. PASQUALOTTO, Adalberto. Garantias no Direito das Obrigações: um ensaio de sistematização, Porto Alegre, 2005, p. 187.
[2] Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.
[3] Art. 1.466. Pode ajustar-se o seguro, pondo certo número de segurados em comum entre si o prejuízo, que a qualquer deles advenha, do risco por todos corrido.
[4] ASCARELLI, Tullio. Panorama do Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1947, p. 27 e ss. 
[5] Idem, ibidem, p. 40.
[6] Nesse sentido, veja-se no Código Civil os artigos 591, 628, 658.
[7] BESSONE, Darcy. Do Contrato. 4 ed. SP: Saraiva, 1997, p. 99. GOMES, Orlando. Contratos. 18 ed. RJ: Forense, 1998, p. 54.
[8] A propósito, ver pesquisa de PIVA, Luciano Zordan. Os efeitos da unificação do regime das obrigações pelo Código Civil de 2002: estudo do contrato de comodato na relação de distribuição de derivados de petróleo.Cadernos do Programa de Pós-graduação em Direito, 2013. VIII, p. 1, 2013.
[9] A propósito, veja-se MARTINS-COSTA, Judith. Modelos de Direito Privado, p. 09 e ss.
Gerson Luiz Carlos Branco é advogado e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro da Rede de Pesquisa Direito Civil Contemporâneo.
Revista Consultor Jurídico, 25 de julho de 2016, 15h12
http://www.conjur.com.br/2016-jul-25/falhas-sistematicas-disciplina-contratos-especie-parte