sábado, 18 de março de 2017

Afeto transforma direito de família e inova filiação

As mudanças nas relações humanas ao longo dos anos vêm gerando novas demandas jurídicas para atender às necessidades da população. Com isso, o direito de família passou por significativas transformações diante da ampliação do conceito familiar e a valorização jurídica do afeto, proveniente de diversos arranjos familiares.
A Constituição Federal de 1988 reconheceu e colocou em condição de igualdade os filhos originados dentro e fora do casamento, além de preservar os mesmos direitos, deveres e qualificações para todos. Esta, sem dúvida nenhuma, foi uma grande inovação, já que a Constituição passou a considerar família e casamento como realidades distintas, abrindo novas possibilidades no julgamento dos processos e beneficiando, consequentemente, um maior número de pessoas.
Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Civil de 2002 introduziram novas formas de constituição familiar,  efetivadas através de seus dispositivos legais, abolindo igualmente a distinção entre filhos.
Não há mais filiação legítima, ilegítima, natural, adotiva ou adulterina. Está proibida qualquer discriminação entre filhos, segundo determina o artigo 227, parágrafo 6º, da Carta Magna. Hoje, por exemplo, a filiação não é determinada apenas pelo vínculo genético que liga os pais aos filhos. Pelo contrário, a afetividade passou a ter um peso importante, já que é responsável por fortalecer o vínculo e manter a unidade familiar.
Família é a base da sociedade e por muito tempo a filiação só foi reconhecida dentro desse núcleo. Nos últimos anos, no entanto, essa concepção mudou bastante e evoluiu dentro do direito. A Constituição inseriu o afeto no âmbito jurídico ao nomear a paternidade afetiva de entidade familiar, conferindo a proteção do Estado.
A legislação e a jurisprudência evoluíram no sentido de proteger o núcleo não matrimonial, introduzindo um novo conceito de família formada por laços afetivos de carinho e de amor. Também o avanço da ciência acrescentou novos desafios nessa área, incluindo outros métodos reprodutivos, onde a filiação passou a ser identificada também pelo vínculo afetivo.
Enfim, a organização familiar está passando por profundas modificações, mas mesmo assim nada abala sua estrutura essencial. No entanto, o reconhecimento de novos formatos advindos da afetividade romperam o padrão tradicional. O casamento não é mais o único modelo familiar e a filiação afetiva representa mais uma forma de família reconhecida pela Constituição Federal, pelo Código Civil, entre outras leis.
A Constituição priorizou o princípio da dignidade humana e proibiu qualquer distinção discriminatória. Nesse sentido, a filiação pode ser avaliada basicamente por três fatores: a biológica com parentesco; a adotiva sem  parentesco e nível afetivo com outro pai; e a socioafetiva que estabelece a paternidade baseada em outros fatores como a convivência e a afetividade existente entre pai e filho.
Hoje o reconhecimento da filiação biológica não está vinculado apenas ao exercício efetivo da paternidade. O que se observa é que o direito de filiação está ligado ao Princípio da Dignidade Humana e da Igualdade que regem o direito moderno de família e onde não se admite qualquer discriminação pejorativa entre a filiação biológica, adotiva ou afetiva.
Por muito tempo, a paternidade biológica foi aceita como prova única e verdadeira, especialmente após o surgimento do exame de DNA, documento científico de credibilidade indiscutível nesses processos. No entanto, hoje já se avalia a relevância dessa origem genética em relação à paternidade socioafetiva que não pode ser constatada por um exame, mas é construída e fortalecida diariamente.
A Constituição priorizou a convivência familiar, fazendo prevalecer o interesse da criança. E o Código Civil garante tratamento privilegiado à filiação socioafetiva. Entende-se por paternidade afetiva aquela em que o pai cumpre seu papel na totalidade, amando, educando e se interessando pela criança. A afetividade passou a ser um elemento identificador da família, ou seja, um elo entre pai e filho, onde os laços surgem da convivência e não do sangue. Assim, reconhecida a existência da paternidade afetiva, estabelece-se um vínculo jurídico, visando, principalmente, a proteção do filho. Não há nada mais autêntico do que reconhecer como pai quem dá afeto, assegura a proteção e garante a sobrevivência.
A paternidade afetiva está cada vez mais presente e fortalecida na sociedade e no meio jurídico. Ela se fundamenta nos laços afetivos cotidianos e no relacionamento de carinho, companheirismo, proteção e doação entre pais e filhos, diferenciando o pai do genitor, independente da origem do filho.
Esta é uma nova visão do modelo de família contemporâneo, onde o afeto causa impacto e traz à tona a discussão do que deve prevalecer se a verdade biológica ou a afetividade. Isso demonstra a importância da unificação paternal e evita que a dignidade humana seja afetada em virtude dos conflitos existentes. O filho tem o direito ao reconhecimento genético, a paternidade biológica não está descartada, porém a socioafetiva ganhou destaque com a valorização desses novos elementos na filiação.
Baseado na legislação vigente, o escritório Barcellos Advogados Associados obteve, recentemente, uma importante vitória na 2ª Vara da cidade de São Pedro (SP), que deu, por liminar, a guarda de um garoto de quatro anos para o pai socioafetivo, até que seja julgado o mérito da ação. Essa liminar encerra temporariamente o conflito entre o pai socioafetivo e o biológico, iniciado com a morte da mãe da criança em setembro de 2015, onde o pai socioafetivo solicita a guarda definitiva e a regulamentação de visitas por parte do pai biológico.
Ocorre que o pai socioafetivo namorava a mãe da criança quando ela engravidou de outro rapaz. Eles ficaram separados por alguns meses e depois reataram o relacionamento. Desde então, ele cuidou da criança como se fosse seu filho. Acompanhou seu nascimento e foi o primeiro a segurar o bebê no colo. Durante quase quatro anos, dispensou ao menor os cuidados decorrentes do poder familiar, participando de várias atividades inclusive escolares.
Quinzenalmente, a criança passava o fim de semana com o pai biológico e depois retornava para São Pedro. Mas, após a morte da mãe em setembro de 2015, o pai biológico decidiu levar a criança para outra escola, separando-a do pai socioafetivo e de sua irmã materna mais nova.
Essa iniciativa motivou a ação e o pedido de guarda definitiva pelo pai socioafetivo ao alegar que o menino já estava ambientado em sua escola e que o afastamento de sua irmã causaria mais prejuízos a ele. Relatórios psicológicos e do Conselho Tutelar apontaram que a angústia da separação da mãe pode gerar sentimentos como medo e ansiedade. E isso só pode ser amenizado pelos vínculos já estabelecidos com a família e o sentimento de autoproteção, segurança e conforto.
O Ministério Público deu parecer desfavorável ao pedido por entender que não ficou comprovado que o menor está em situação de risco. Mas o juiz da 2ª Vara de São Pedro decidiu favoravelmente ao pai socioafetivo, pelos laços familiares criados com a convivência diária, e concluiu que "a verossimilhança decorre do fato de se tratar de regularização da situação de fato, enquanto o risco de dano irreparável da tenra idade da criança à vista do conflito amoroso noticiado, podendo prejudicar seu regular desenvolvimento educacional, caso não lhe seja assegurado domicílio certo enquanto pendente a solução da demanda". A guarda temporária vale até novo estudo psicossocial.
Cid Pavão Barcellos é advogado, sócio do escritório Barcellos Advogados Associados, pós-graduado em Processo Civil pela PUC-SP e em Direito Ambiental pelo Senai, ex-delegado de Polícia e doutorando pela universidade UMSA.
Revista Consultor Jurídico, 7 de janeiro de 2017, 11h20
http://www.conjur.com.br/2017-jan-07/cid-barcellos-afeto-transforma-direito-familia-inova-filiacao

Execução contra um dos cônjuges alcança bens do casal, diz TRT-3


Caso um dos cônjuges esteja sob execução judicial, os bens do casal podem ser usados para pagar a dívida. Isso porque, mesmo em comunhão parcial de bens, e com cada um tendo seu próprio salário, os ganhos são usados na subsistência conjunta, inclusive se houver filhos.
Assim entendeu a 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG) ao negar, por maioria de votos, embargos apresentados pela mulher de um devedor para retirar do processo sua metade de um imóvel.
Ela argumentou que a dívida que resultou na penhora também de sua parte no bem não foi usada em benefício do casal e pediu que fosse excluída da execução. Disse ainda que trabalhava, garantindo sua própria sobrevivência, além de contribuir para o aumento do patrimônio do casal.
Porém, para o relator, desembargador Luiz Otávio Linhares Renault, a atividade econômica ou o trabalho exercido pelos cônjuges beneficia ambos indistintamente, ainda mais quando o regime de bens é o da comunhão parcial. Segundo o magistrado, as dívidas que não revertem em prol da família são as incapazes de incrementar o patrimônio do casal ou cujos recursos não são vertidos para a manutenção da família.
Como exemplo, citou as dívidas obtidas com fiança, o aval a terceiros, indenizatórias para indenizar ato praticado por apenas um dos membros da sociedade conjugal. Mesmo quando o regime de bens é o da separação total, continuou, os cônjuges atuam conjuntamente para sustentar o lar.
"A família consubstancia união para a satisfação de interesses que suplantam as necessidades materiais, estando seus membros ligados por laços afetivos que geram atos de solidariedade, de modo que seus membros beneficiam-se mutuamente dos trabalhos e dos bens uns dos outros", detalhou.
Ainda que cada um tenha renda própria, destacou o desembargador, esse pagamento conjunto é configurado pelo sustento dado aos filhos ou pagando as despesas alimentares diárias da convivência.  "A compra de um imóvel para a residência do casal ou de um automóvel, por apenas um dos cônjuges, beneficia o outro, indistintamente, pois decorre da natureza do vínculo que tais bens sejam utilizados de forma conjunta", complementou. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRT-3.
Processo 0010707-62.2015.5.03.0173
Revista Consultor Jurídico, 8 de janeiro de 2017, 13h47
http://www.conjur.com.br/2017-jan-08/execucao-conjuges-alcanca-bens-casal-trt

Não compreender o alcance jurídico de uma cláusula penal invalida contrato

A falta de compreensão do alcance jurídico de uma cláusula penal num contrato de compra e venda pode tornar inválido o ajuste, principalmente se o consumidor, a parte mais fraca da relação, tem pouca instrução. O fundamento levou a 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a acolher pedido de rescisão de contrato de compra e venda entre um consumidor e um fabricante de casas de madeira de Bagé. Com a decisão, a empresa foi condenada a devolver ao autor o valor integral do contrato rescindido, liberando-o da multa, mais o pagamento de R$ 5 mil, a título de reparação pelos danos morais.

Conforme o processo, o autor desistiu da compra porque, além de receber a casa com atraso, se sentiu enganado pelo fabricante. É que no contrato foram inseridas cláusulas que não refletiram sua “real expectativa”. Em contestação, a ré negou atraso ou descumprimento de contrato. Alegou que o autor desistiu do negócio depois saber que seu filho não iria mais morar na casa que seria construída no seu terreno, já que estaria de mudança para outra cidade. Neste caso, concordou em devolver o valor pago, descontados os 15%, como estipulado no contrato. Afinal, foi o comprador quem deu causa à ruptura contratual.
Na origem, o juiz Max Akira Senda de Brito, da 3ª Vara Cível daquela comarca, julgou a ação rescisória improcedente, pois não encontrou nenhuma prova de que o autor tenha sido induzido a erro, sofrido coação ou mesmo havido atraso na entrega do material. “Além do mais, o autor em seu depoimento pessoal reconheceu a sua assinatura no contrato e os termos ali explicitados, alegando que somente depois viu que os mesmo não estavam conforme haviam sido supostamente pactuados. Ainda, registre-se que sua condição de analfabeto não foi comprovada nos autos, já que tal indicação não há sequer em seu registro geral”, escreveu na sentença.
Falta de consciência
A relatora da Apelação na corte, desembargadora Ana Lúcia Rebout, afirmou no acórdão que o fato de o autor ter pouca instrução (mal sabe ler e escrever) e ser idoso, gerando presunção de hipossuficiência frente ao vendedor, inverte o ônus da prova. A possibilidade está prevista no artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990). Para a magistrada, um “homem de instrução limitada”, diante da complexidade e alcance da cláusula penal (multa de 15%  sobre o valor total do contrato em caso de desistência), pode incorrer em erro, viciando o contrato.
“Trata-se do erro (seria o error in ipso corpore rei), justificado, na situação em liça, pelo fato de que o autor, ao firmar e pagar à vista pela avença [sendo pouco relevante que estivesse acompanhado pelo seu filho na assinatura do pacto, ou não, pois, da mesma forma, adotando-se como paradigma o homem médio, àquele também faleceria, muito provavelmente, a compreensão plena do que significava a desistência em termos de reflexos jurídicos (cláusula penal)], não tinha a compreensão plena, estreme de dúvidas, da consequência pecuniária do arrependimento previsto no contrato”, anotou no voto.
A desembargadora-relatora observou, também, que o contrato foi assinado em 9 de maio de 2014, sexta-feira, e o autor desistiu do negócio no dia 12 de maio, segunda-feira — ou seja, entre aceitação e desistência não decorreu nenhum dia útil. Para ela, ficou claro que o autor ponderou sobre o negócio no fim de semana. Assim, a cláusula penal — aplicada após a assinatura do contrato — favorece em demasia a empresa. Apenas como exemplo, afirmou que, na França, o comprador de imóvel tem o prazo de até 14 dias para desistir do negócio, sem penalidade.
“Quanto aos danos morais, no caso concreto, decorrem in re ipsa [presunção de dano à dignidade], pois não se cuida de simples desacerto contratual de valores, mas de situação em que a parte oposta tentou, de todas as formas, subjugar e impor ao autor, pessoa indubitavelmente de poucas luzes, cláusula de todo abusiva e leonina, ainda que prevista contratualmente; destarte, a hipótese é deflagradora do dano extrapatrimonial indenizável”, finalizou. O acórdão foi lavrado na sessão do dia 13 de dezembro.
Clique aqui para ler a sentença.
Clique aqui para ler o acórdão.
Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.
Revista Consultor Jurídico, 7 de janeiro de 2017, 6h42
http://www.conjur.com.br/2017-jan-07/nao-compreender-alcance-clausula-penal-invalida-contrato

"Magistrado não deve seguir jurisprudência como se fosse um soldadinho de chumbo"

Responsável por comandar a Seção de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, o desembargador Ricardo Henry Marques Dip fica incomodado com a tendência de desembargadores a apresentar votos longos e recheados de citações, mas defende com veemência o respeito à independência da magistratura. Segundo ele, a jurisprudência não deve engessar a atividade de juízes, como se todos fossem “soldadinhos de chumbo”.
“Hoje a doutrina perdeu muito espaço factual como fonte do Direito; o costume, nem se diga; só se atende aos julgados de turno”, afirma. O importante, segundo ele, deve ser sempre a substância da decisão, ou substância do justo.
Para o desembargador, um exemplo nesse sentido são os precedentes que permitem a mudança de informações pessoais em registros civis. No próprio TJ-SP há decisões que autorizam a troca de gênero mesmo quando a pessoa não passou por cirurgia de mudança de sexo. Ele tem entendimento contrário. Negando qualquer preconceito, Dip afirma que as sensações individuais não podem mudar a função dos registros públicos como “repositórios da verdade”. “Com o direito à volúvel felicidade hiperindividualista, cria-se um problema grave, porque se abandona um legado de segurança.”
Dip acumula experiência na área: atuou na 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, foi assessor da Corregedoria-Geral da Justiça nesse mesmo tema (1986-1987 e 1991-1992) e já lecionou sobre o assunto na Escola Paulista da Magistratura. Convidado a auxiliar a ministra Nancy Andrighi na Corregedoria Nacional de Justiça, a partir de 2014, também a representou em eventos que tentam uniformizar critérios de registros e notas no país. Em dezembro de 2016, lançou o livro Seguridad jurídica y crisis del mundo posmoderno (Segurança jurídica e crise do mundo pós-moderno), em Madri, na Espanha.
Há um ano, ocupa a cadeira da Seção que reúne 20 câmaras ordinárias (incluindo duas especializadas em meio ambiente); 90 desembargadores, 23 juízes substitutos em segundo grau, 4 juízes convocados e 29.945 processos em andamento, até novembro de 2016. “A tarefa é muito trabalhosa, sabe? Eu estava acostumado com um trabalho mais tranquilo. De meia em meia hora, aqui, há gente querendo falar comigo, marcando audiência, versando dezenas e dezenas de assuntos.”
Foi em meio a esse trabalho que o desembargador recebeu a equipe do Anuário da Justiça. Também formado em Jornalismo e de perfil reservado, aceitou avaliar o andamento do Direito Público em São Paulo, tratou da judicialização da saúde e apontou mudança no julgamento de ações de improbidade administrativa — que deixou de funcionar como um “juizado de pequenas causas”. Declarou ainda que as regras do novo Código de Processo Civil não devem gerar a celeridade almejada.
Leia a entrevista:
ConJur — Como o senhor avalia o funcionamento atual da Seção de Direito Público do TJ-SP?
Ricardo Dip —
 Preciso reconhecer que as administrações anteriores foram muito boas; então, meu trabalho tem sido favorecido. Além disso, a Seção é muito boa tanto no plano da qualidade dos magistrados que a integram, quanto no da quantidade da repartição de justiça. É claro que não podemos desconsiderar o ritmo pessoal das ponderações de cada julgador diante dos processos. A celeridade, por si só, porém, não é virtude nem vício; é só um acidente da distribuição do justo, e nem sempre a rapidez se compatibiliza com a meditação exigível em dados processos. A decisão jurisdicional é ato de prudência e não de fabricação de coisas.
O principal gargalo na tramitação dos processos não é culpa de nossa corte: é o problema do cadastro desses processos na ascensão dos recursos especiais. Delegou-se para nós o trabalho físico, burocrático, do cadastramento dos processos. Então, quando se trata de processar o recurso especial, é preciso parar tudo, extrair todas as folhas dos autos, escaneá-las, depois despachá-lo... Isto leva um tempo muito grande. Estamos falando em uma entrada média de 25 mil recursos por mês.
E, hoje em dia, há quem entenda que todo acórdão precisa ter muitas laudas para ser considerado bom. Lembro-me que o ministro [José Geraldo Rodrigues de] Alckmin, um grande ministro do Supremo Tribunal Federal, escrevia votos curtos, muito claros. Agora, pensam alguns que escrever longamente é o único jeito de evitar as nulidades. Parece-me excessiva essa tendência de largos textos.
ConJur — Enquanto presidente da Seção, o senhor pode orientar que os desembargadores atuem nesse sentido?
Ricardo Dip —
 Não. Esse é um ponto de honra para mim: não deixar que a administração intervenha na orientação jurisdicional. Tem-se crescentemente falado em independência do Poder Judiciário, e cada vez menos na independência do juiz. A independência verdadeira na função jurisdicional é a de cada juiz, do magistrado lá de Mirante de Paranapanema, de Itapecerica da Serra, da minha antiga Comarca de Sertãozinho, do juiz substituto que está proferindo sua primeira sentença. Essa independência é que interessa para nós enquanto partícipes do bem comum.
ConJur — Essa ampla autonomia não pode afetar negativamente a jurisprudência?
Ricardo Dip —
 Nos casos jurídicos, por sua mesma natureza, sempre haverá diferenças, distinções e contradistinções. Além disto, o volume de questões apresentadas ao Judiciário é tão grande que se torna difícil, quando não impossível, fixar tudo, com uma espécie de solidez imprudente que mal ou nada resiste à experiência.
De par com o tema das circunstâncias de cada caso, a exigir peculiar estimativa, há também o da modificação do próprio entendimento dos magistrados. Considere-se um exemplo: o do recente julgado do Supremo Tribunal Federal sobre a prisão [logo após condenação] em segunda instância. Poucos meses depois de uma definição importante sobre isto, manteve-se, já agora mais apertada, a mesma solução, mas com a mudança de um voto [o ministro Dias Toffoli acompanhou voto vencedor de um pedido de Habeas Corpus, em fevereiro, que reconheceu a prisão antes do trânsito em julgado; em outubro, quando foram pautadas duas ações de controle concentrado, declarou que a pena só deveria ser decretada depois de decisão do Superior Tribunal de Justiça].
Se, em um caso como esse, estamos sujeitos a modificação, imagine-se em outros tipos menos delimitados de situação. No fundo, estamos em busca de uma segurança que não existe, uma segurança absoluta na vida humana. Nós não sabemos se daqui a dois minutos estaremos vivos. Então temos que nos acostumar com algumas surpresas da vida.
ConJur — Mas o Judiciário não busca uniformizar as decisões?
Ricardo Dip —
 Aristóteles faz uma indagação muito interessante: ao estudar um dado assunto, devemos sempre partir da estaca zero? Ele faz uma sugestão muito prudente: nós temos que saber fazer as perguntas, descobrir as premissas prováveis. E como descobri-las? Verificando o que disseram todos, ou pelo menos a maioria, incluindo os mais sábios. Partimos disso como de uma verdade provisória.
No campo do Direito precisamos dar audição ao ensinamento da jurisprudência doutrinária e da pretoriana, mas, como disse muito bem o ministro [aposentado Cesar] Peluso, nosso respeito maior é, ao divergimos dessa jurisprudência, mostrar por que divergimos, e não sempre acatar tudo, como se fôssemos “soldadinhos de chumbo”. Hoje a doutrina perdeu muito espaço factual como fonte do Direito; o costume, nem se diga; só se atende aos julgados de turno. Ainda bons doutrinadores têm, às vezes, incidido em conduta que, com todo o respeito, não me parece adequada: “Sempre pensei, dizem, que isto fosse branco, mas, como o Supremo disse outro dia que é vermelho, passo a dizer que é vermelho”. Não se trata de persuasão, mas de adesão ao critério do magister dixit.
Um atualíssimo exemplo disso é a autorização para que pessoas alterem a enunciação de sua a identidade nos cartórios de registro civil. O problema começa a ser grave quando alguém quer impor à sociedade uma identidade a que se atribui arbitrariamente. Se alguém hoje disser “não me sinto João, me sinto Maria”, é questão identitária individual. O problema põe-se politicamente quando essa sensação individual tenta modificar o registro civil. Com o direito à volúvel felicidade hiperindividualista, cria-se um problema grave, porque se abandona um legado de segurança.
Se alguém obrigar o registro civil, ao só capricho do postulante, a alterar a menção de seu sexo, de masculino para feminino, outra pessoa poderá dizer que não se sente feliz em ter 65 anos; quer ter 40… Vamos ter, enfim, que decidir se queremos uma sociedade respeitosa da verdade ou se apenas respeitosa da vontade individual e arbitrária de cada um.
ConJur — O senhor defende então que sejam adotados parâmetros: quem fizer a cirurgia para mudança de sexo, por exemplo, pode mudar o registro?
Ricardo Dip —
 Há uma pergunta preliminar, e é a seguinte: qual conceito de sexo está sendo adotado? É o sexo fenotípico? Cromossômico? Psicológico? Gonádico?
A verdade entende-se aquilo que não depende da minha inteligência para existir. Os registros públicos deveriam funcionar como repositório da verdade, ou então não servem para nada. Não se trata, portanto, de preconceito, discriminação, desejo de invadir a liberdade de atuação de cada um, de atentar contra o tal direito à felicidade. Os registros de interesse da sociedade não podem ser o repositório das arbitrariedades pessoais que se imponham a toda a vida social. Se alguém faz cirurgia para mudar o sexo fenotípico, suposto se entenda que essa mudança deva constar do registro, a informação verdadeira que deve ali constar exige que se indique o fato da cirurgia. De não ser assim, o registro passará a ser um lugar de recolha de, no máximo, meias verdades.
ConJur — Os tribunais superiores estão com muitos pedidos de repercussão geral e recursos repetitivos. O senhor tem alguma sugestão para agilizar as demandas?
Ricardo Dip —
 Francamente, não. A Constituição Federal de 1988 se preocupou com as gerações futuras, com um mundo que não era o nosso. Acho que é apenas mais um caso, comum desde nossa primeira Constituição republicana, de um código de política silogística, para lembrar aqui a célebre expressão de Joaquim Nabuco. Gerou-se um “demandismo” imenso, impulsionou-se a procura pelo Judiciário sem dar-lhe meios para enfrentar essa demanda toda. Tenho citado em meus votos um psiquiatra alemão, Manfred Lütz, que considera loucura qualquer país colocar nas suas leis o direito à saúde. O Brasil colocou... E como clausula pétrea! Há uma avalanche correspondente.
ConJur — A avaliação da situação econômica da pessoa é parâmetro importante diante da judicialização da saúde?
Ricardo Dip —
 A Constituição não diz isso, a assistência é universal.
ConJur — O senhor avalia que o Estado é obrigado a arcar com um tratamento experimental nos Estados Unidos, por exemplo?
Ricardo Dip —
 Esse é um problema delicado, é preciso examinar caso a caso. Nossa legislação prevê que remédios em fases de experiência já possam ser distribuídos, e não só os aprovados na lista do SUS.
ConJur — Esse entendimento inclui a fosfoetanolamina, a chamada “pílula contra o câncer”?
Ricardo Dip —
 Na fase de apreciação de pedidos liminares, concedi todos, deferindo medidas de urgência para determinar que a Universidade de São Paulo fornecesse a substância, porque preferi seguir o princípio in dubio pro vita. Ao analisar pela primeira vez o mérito de um caso a mim distribuído, considerei temerário impor ao Estado, com base apenas em testemunhos extrajudiciais e sem nenhum amparo do médico assistente, a obrigação de fornecer pílulas sobre a qual ainda não há estudos científicos suficientes para garantir sua eficácia e tampouco segurança no uso por seres humanos.
ConJur — Como foi a adaptação ao novo Código de Processo Civil?
Ricardo Dip —
 Os colegas têm se queixado muito de alguns pontos. Se a ideia era a de celeridade, não será com esse Código que conseguiremos obtê-la. Vejam a situação do julgamento dos Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas, por exemplo. O desembargador [Luis Antonio] Ganzerla já declarou, durante uma sessão pública, que qualquer incidente que ingresse na Turma Especial tende a demorar um ano de paralisação do processo. O instrumento é interessante, na tentativa de estabilizar a jurisprudência, mas ninguém havia pensado antes nesse problema da demora. Mas, enfim, a função do juiz é aplicar a lei da forma melhor possível.
ConJur — Por que demora tanto tempo?
Ricardo Dip —
 Processamento. Há a fase de admissibilidade, é preciso dar vista à parte contrária. E estabilizar a jurisprudência só é bom se a jurisprudência for boa. A estabilidade é importante, sem dúvida, mas não é mais importante do que a substância da decisão – é dizer, a substância do justo. É preciso ter muita cautela para bem fixar as teses e limitá-las, do contrário poderão ficar muito amplas, e os casos concretos anteciparão o inferno. A Turma Especial, que julgava as dúvidas de competência, passou a ter uma importância maior dentro da Seção. A desembargadora Luciana Bresciani — um modelo para a magistratura — tem marcado pelo menos duas sessões por mês para a Turma.
ConJur — Para substituir os embargos infringentes, o novo CPC determina novo julgamento quando o resultado da apelação não for unânime. Essa nova regra tem gerado problemas?
Ricardo Dip —
 Só em algumas situações esporádicas. Na 11ª Câmara, a minha estimada câmara de origem, houve um período em que nós ficamos só com quatro membros. Um estava viajando, e eu, afastado. Então pedi autorização para a Presidência do tribunal e voltei para julgar um ou outro caso, de forma excepcional. Para outra câmara, sugeri que convidassem um juiz substituto em segundo grau, para integrar a turma do julgamento expansivo. Foram procedimentos práticos para evitar delongas e julgar o mais adequadamente possível.
ConJur — Geralmente esses julgamentos ocorrem na próxima sessão?
Ricardo Dip —
 Na 11ª, na maior parte das vezes o caso é votado no mesmo dia. Na Câmara Especial, por vezes se julga bastante no mesmo dia, quando há sustentação oral e o caso está “vivo”; e em outras situações, alguém pede vista para julgar na sessão seguinte. Depende se o juiz responsável por proferir o voto se sente suficientemente instruído de fato para julgar de pronto...
ConJur — O novo CPC também prevê sustentação oral por videoconferência. Há alguma previsão para que a regra seja adotada?
Ricardo Dip —
 Isso está em discussão no Conselho Superior da Magistratura, porque demanda um aporte técnico que não é muito simples. O tema está sendo estudado.
ConJur — Tem aumentado o número de audiências de conciliação e mediação, fixadas pelo novo CPC?
Ricardo Dip —
 De modo geral, esse tema no Direito Público é pouco frequente, porque a Fazenda não costuma fazer acordo.
ConJur — Existe diálogo da Seção de Direito Público com os demais órgãos públicos para reduzir litigiosidade? 
Ricardo Dip —
 Isso já foi feito em administrações anteriores. Sem a intenção de avaliar de forma negativa essa prática, entendo que o tribunal deve ser independente, julgar o que lhe aparecer de casos. Não somos nós quem deve limitar as ações. Outro dia mesmo comentei isto com dois simpáticos defensores públicos que vieram visitar-me: o tribunal tem que ser independente, respeitoso das partes, mas não parceiro de parte alguma.
ConJur — Com a crise política e econômica, houve algum impacto na litigância na parte de Direito Público?
Ricardo Dip —
 Não parece que tenha ocorrido. O que aconteceu foi o seguinte: como a composição do tribunal há dez anos incluía muitos membros do antigo Tribunal da Alçada Criminal – de onde eu mesmo vim –, o perfil era muito rígido nos casos referentes à improbidade. Até começarmos a notar que apareciam muitos réus das cidades de 2 mil almas, ou seja, de cidades pequenas. Nós estávamos virando um juizado de pequenas causas de improbidade. Também começamos a compreender um pouco mais o problema da falta de consciência. Existem prefeitos que apenas assinaram algum documentou errado. Com o tempo nós começamos a descobrir que, no fundo, alguém estava pagando por coisas muito maiores. A jurisprudência está bastante consolidada, bastante calma. Os critérios são muito mais realistas. A Seção amadureceu. Não nos esqueçamos de que só foi criada há dez anos. Parece que houve uma evolução favorável neste sentido.
ConJur — No Conselho Superior da Magistratura, o senhor votou por reconhecer o direito de que juízes em segundo grau sejam chamados de desembargadores no exercício profissional...
Ricardo Dip —
 Votei favoravelmente para que sejam chamados segundo a função. O que me convenceu é o seguinte: eu tenho apoio de juízes auxiliares. Temporariamente, eles deixam de assinar segundo o local de que são titulares e passam a identificar-se na condição de “juiz auxiliar da Presidência da Seção”. Leva-se em conta a função que eles exercem, não seus cargos. O juiz substituto em segundo grau também deve ser tratado como tal. Ele está na função de desembargador. O voto dele vale tanto quanto o meu. Isso não quer dizer que eles vão ter outros benefícios.
Também é preciso reconhecer que eles passam por um momento peculiar... Alguns deles estavam à beira da promoção quando a mal designada “PEC da Bengala” aumentou o prazo da aposentadoria compulsória – de 70 para 75 anos. É natural certa angústia. Mas aqui na minha Seção tenho motivo de muita satisfação com os substitutos, todos trabalham com muita dedicação e são muito respeitosos.
ConJur — Como o senhor avalia sua atuação na Presidência da Seção de Direito Público, neste primeiro ano?
Ricardo Dip —
 A tarefa é muito trabalhosa, sabe? Eu estava acostumado com um trabalho mais tranquilo. De meia em meia hora, aqui, há gente querendo falar comigo, marcando audiência, versando dezenas e dezenas de assuntos. Antes, eu próprio sindicava os processos, pesquisava as fontes e redigia meus votos. Hoje, isso não é possível sem auxílio de assessores. Mas estou muito contente! Não tenho a pretensão de sair em dois anos com a casa pronta. Procuro fazer, tal como meus antecessores, e elevar a Seção para um patamar ainda melhor, dando um passo na linha de continuidade bem cultivada por aqueles que me precederam. Tenho-me dedicado efetivamente a fazer isso.
Felipe Luchete é repórter da revista Consultor Jurídico.
Claudia Moraes é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 8 de janeiro de 2017, 6h51
http://www.conjur.com.br/2017-jan-08/entrevista-ricardo-dip-presidente-direito-publico-tj-sp

Professora que foi agredida por aluno deficiente será indenizada

Escola que não providencia acompanhamento especializado a aluno deficiente com comportamento violento responde pelas agressões deste a professor. Com esse entendimento, o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG) condenou uma instituição de ensino de Uberlândia a pagar indenização de R$ 5 mil a uma professora.
A profissional, que atuava em uma escola que lida com educação inclusiva (que abrange todas as crianças em um mesmo contexto escolar, ou seja, que inclui aquelas com necessidades especiais), foi à Justiça após sofrer reiteradas agressões de um aluno que apresentava sérios problemas de comportamento. Na sua versão, o estudante necessitava de acompanhamento profissional especializado, fato esse negligenciado pela escola, que não tomou cuidados mínimos com a segurança.
Para a escola, não houve o alegado descaso e omissão. Afirmou ainda que o aluno já havia demonstrado manifesta simpatia pela docente, a qual solicitou a transferência dele para sua turma. Segundo a entidade, o estudante era acompanhado por um terapeuta e um psiquiatra, sendo que seus pais também eram médicos psiquiatra e pediatra.
O juiz da 6ª Vara do Trabalho de Uberlândia Fernando Sollero Caiaffa entendeu que a razão estava com a professora. Ele ressaltou que a questão não envolve análise do tratamento escolar dispensado à criança, mas a tese de que a escola, embora se conceituasse como uma instituição inclusiva, não adotou todas as medidas necessárias para preservar a incolumidade física e psíquica da docente no ambiente de trabalho.
Como constatou o julgador, os elementos indicam que, embora a escola possua em seus quadros três psicopedagogos, sendo uma psicóloga, não houve qualquer preparação dos professores não especializados para o trato com crianças que exigem tratamento diferenciado. Conforme revelou a prova testemunhal, em momentos de crise, a criança mordia e chutava. Seu comportamento oscilava de amoroso a muito agressivo.
Nesse cenário, o juiz entendeu que a escola foi negligente com relação à preparação de seus profissionais. "Pelo quadro que se delineou neste feito, a questão merecia um tratamento extremamente especializado, disponibilizando profissionais em tempo integral para acompanhamento dos trabalhos dentro e fora de sala de aula, com vistas a constatação se o processo educacional estava se conduzindo de forma correta, considerando as condições do aluno", pontuou Caiaffa.
Concluindo pela omissão injustificada da instituição no que tange à segurança e integridade física não somente dos educadores, mas de toda a comunidade escolar, o juiz registrou que as providências deveriam ter sido tomadas desde a ocorrência do primeiro incidente, tendo em vista que a professora afirmou que as agressões ocorreram por cinco vezes. Considerando presentes os elementos da responsabilização civil e atentando para as circunstâncias específicas do caso, o juiz condenou a instituição a pagar à professora indenização por danos morais, arbitrada em R$ 5 mil.
A escola recorreu da sentença, mas o TRT-3 manteve a condenação.
Outros professores agredidos
O Tribunal de Justiça de São Paulo condenou os pais de um adolescente que agrediu seu professor a pagar indenização por danos morais no valor de R$ 10 mil. O caso aconteceu em uma escola estadual de Santos (SP), depois que o professor não deu a chave da sala de jogos para o aluno, pois não havia ninguém para supervisioná-lo. Diante da negativa, o estudante passou a insultá-lo e, em determinado momento, acertou um soco no olho direito do professor.
Já o Tribunal do Júri de Porto Alegre condenou um estudante de enfermagem a 10 anos e 6 meses de reclusão por tentativa de homicídio triplamente qualificado contra uma professora. Conforme denúncia do Ministério Público estadual, no dia 9 de novembro de 2010, numa das salas da Escola Factum, no centro da capital, Rafael agrediu violentamente a professora Jane Antunes, de 57 anos — com o objetivo de matá-la. O assassinato não se concretizou porque a vítima se defendeu e recebeu ajuda de outros alunos. O motivo da agressão foi considerado torpe pelo MP: o agressor não aceitou a nota que tirou na avaliação. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRT-3.
Processo 0000998-37.2014.5.03.0173
Revista Consultor Jurídico, 10 de janeiro de 2017, 14h22
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Projeto de lei permite que cônjuges alterem regime de bens em cartório

Com o objetivo de satisfazer os interesses das partes de maneira mais simples e, ao mesmo tempo, diminuir o número de processos distribuídos ao Judiciário, um projeto de lei busca dispensar a necessidade de um juiz no chamado pacto pós-nupcial, admitindo a mudança de regime de bens por escritura pública.
Atualmente, conforme previsto no Código Civil de 2002, a alteração de regime de bens após o casamento deve ser requerido judicialmente por ambos os cônjuges, desde que a alteração não cause prejuízo a terceiros.
De acordo com o PLS 69/2016, do senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE), a alteração do regime de bens do casamento será feita por meio de requerimento, assinado conjuntamente pelos cônjuges, dirigido ao tabelião de notas, que, atendidos os requisitos legais, lavrará a escritura pública independentemente da motivação do pedido. A proposta exige que os requerentes sejam assistidos por advogado.
Em se tratando de cônjuges casados sob o regime de separação obrigatória de bens, o tabelião de notas somente lavrará a escritura de alteração de regime de bens se provada a superação das causas que o motivaram.
Ainda conforme o projeto, os cônjuges deverão promover a averbação das mudanças perante os cartórios de registro civil e de imóveis e, caso qualquer dos cônjuges seja empresário, junto ao Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins.
Mínima interferência do estado
"A realização de uma escritura de alteração de regime de bens só vem a sedimentar o novo contexto do direito das famílias onde deve primar a intervenção mínima do Estado nas relações familiares”, argumenta o senador Valadares.
Para a advogada Aline Saldanha Rodrigues, do Nelson Willians e Advogados Associados, essa interferência mínima do estado é o grande diferencial do projeto de lei apresentado. "Cabe unicamente aos cônjuges a escolha do regime que mais se adequa ao casamento contraído, desde que, por óbvio, tal escolha não venha a prejudicar terceiro e, ainda, que seja efetivada em comum acordo entre as partes requerentes."
Ela destaca também que, se aprovado, o outro objetivo do projeto deve ser alcançado: "Obviamente, a dispensabilidade de movimentação judicial para alteração do regime de bens entre cônjuges trará expressivo desafogamento ao Judiciário e flagrante benefício aos consortes, que poderão, de maneira menos burocrática, alterar o regime de casamento escolhido no momento da realização do matrimônio".
A advogada Vanessa Scuro, sócia da Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra Advogados, ressalta que essa mínima interferência do Estado vem norteando o Direito de Família. 
"Considerando que, antes do casamento, os cônjuges têm a liberdade de pactuar o regime de bens que então lhes pareça conveniente, parece-nos lógico que, também no decorrer do casamento, tenham a mesma liberdade para alterar o que inicialmente escolheram, optando por outro regime que se revele mais conveniente para a realidade da relação que desenvolveram, sem que para isso tenham de recorrer ao Judiciário, mediante pedido motivado", explica.
Prejuízo a terceiros
A advogada também destaca ser necessário que o projeto preveja mecanismos para que o procedimento não configure meio para perpetração de fraudes, seja a direitos de terceiros, seja como a dos próprios cônjuges, franqueando-se aos tabeliães de nota os meios necessários para a fiscalização, como, por exemplo, com a previsão de obrigatoriedade de apresentação de certidões dos distribuidores cíveis juntamente ao requerimento de alteração.
Preocupação semelhante tem o advogado Luiz Kignel, sócio do PLKC Advogados. Apesar de considerar o projeto salutar, ele considera perigoso que a iniciativa seja mal utilizada por devedores contumazes que tem por objetivo prejudicar credores.
"Há situações que pessoas com problemas financeiros mudam o regime de bem para lesar credores. Quando tem o Judiciário acompanhando, tem uma sentença, da uma segurança jurídica a essa mudança. Essa presença nesse caso é importante. É inibidor de pessoas que desejam usar esse mecanismo para fraudar credores", explica.
Ele ressalta que, ainda que o tabelião negue a alteração de regime de bens por identificar uma fraude, o interessado pode simplesmente busca outro cartório até encontrar um que faça a alteração do regime de bens.
Autor do projeto, o senador Valadares garante, contudo, que a regra não prejudicará terceiros. “Suponha-se que haja alteração do regime de comunhão universal para a separação absoluta de bens com o intuito de fraude aos credores do marido. Para os credores eventualmente prejudicados, a mudança é ineficaz e se aplicam as regras da comunhão universal. Contudo, caso os cônjuges se divorciem, a partilha se dará à luz da separação de bens. Da mesma forma, se um dos cônjuges falecer, a sucessão em concorrência com os descendentes se dará de acordo com o novo regime escolhido”, explica Valadares. Com informações da Agência Senado.
Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 11 de janeiro de 2017, 16h46
http://www.conjur.com.br/2017-jan-11/pl-permite-conjuges-alterem-regime-bens-cartorio