terça-feira, 21 de março de 2017

A busca de um culpado pelo divórcio: quo usque tandem?

Em processos de divórcio e dissolução de união estável ainda se observa a prática de peticionar buscando a determinação de um único culpado pelo fim da relação. Essa conduta pode levar à eternização do litígio em prejuízo às partes e filhos do casal.

A busca obstinada e incessante de um único culpado pelo fim da relação matrimonial ou convivencial, salvo em situações muito específicas, parece, cada vez mais, tese sepultada por nossos principais autores e pela segura jurisprudência de nossos Tribunais.

Porém, parece que de tempos em tempos, provavelmente para que nos rememoremos de como o Direito de Família brasileiro já foi marcado por este pensamento retrógrado, como advogados, somos obrigados em peças de defesa a tecer certas considerações a respeito.

Isso porque em certos processos, alguns litigantes deixam de lado os temas mais importantes (situação dos filhos, partilha de patrimônio, v.g.) para tecer comentários – geralmente desairosos - a respeito de condutas da outra parte, seja durante o relacionamento, seja nas intermitências de seu encerramento, as quais, verdadeiras ou não, não possuem o condão de influir nas vindouras decisões judiciais acerca da concessão ou não do divórcio ou da dissolução da união estável.

Ora, é notório e sabido que nos dias de hoje não se deve destinar o processo de Divórcio - ou Dissolução de União Estável - à discussão da culpa pelo fim da relação, pois se assim fosse, certamente a outra parte teria também uma série de considerações desagradáveis para fazer e esta troca de acusações não chegaria a lugar algum, apenas servindo para entupir o feito de petições e papéis inúteis.

Esta vetusta técnica de argumentação tem por escopo, muitas vezes, tão somente, buscar arranhar a imagem de um dos cônjuges/companheiros, buscando desviar a atenção do Magistrado e do representante do Ministério Público para assuntos de somenos importância, sem se ater aos principais aspectos que devem nortear este tipo de processo.

Foi-se o tempo em que a discussão sobre a culpa possuía alguma relevância jurídica, causando impactos patrimoniais, pessoais e alimentares até, os quais geralmente recaíam sobre o cônjuge virago, em um processo marcado pelo sexismo, pelo preconceito e pela influência do Direito Canônico.

Vários são os modernos pensadores do Direito de Família que pretendem afastar o máximo possível a discussão da CULPA nas Separações.

Leia-se, por todos, a opinião do festejado jurista gaúcho BELMIRO PEDRO WELTER:

No Direito de Família, em vista dos princípios da secularização, da dessacralização do casamento, da liberdade, da igualdade, da prevalência dos interesses dos cônjuges e dos companheiros, da felicidade, da solidariedade, do afeto, da cidadania e da dignidade da pessoa humana, não se pode falar em culpa ou em responsabilidade civil. A responsabilidade imposta no Direito de Família é apenas o “direito de ser feliz e o dever de fazer o outro feliz”. O amor é uma estrada de mão dupla, na qual os cônjuges ou companheiros são responsáveis pelos seus atos e suas escolhas, pelo que não se pode discutir a culpa No Direito de Família, não há responsabilidade civil, e sim a responsabilidade pessoal, em vista da liberdade de escolha do consorte, da situação em que o cônjuge ou companheiro se encontra, ao optar pela dissolução da entidade familiar, e pela saída desse conflito, enfim, se é direito da pessoa humana constituir núcleo familiar, também é direito seu não manter a entidade formada, sob pena de comprometer-lhe a existência digna.

Destarte, o Estado de Direito laicizou, tornou leigo, secularizou, descristianizou, profanou, desconsagrou, degredou, dessacralizou, desdramatizou, enfim, extinguiu o princípio da culpa, pelo que, em um Estado Constitucional, deve-se compreender que a Constituição (ainda) constitui, não se podendo admitir a discussão da culpa do Direito Canônico no âmbito do Direito de Família. (disponível em http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/9414-9413-1-PB.pdf, acessado em 02/09/2016).

Não se pode negar que, em alguns casos, a ruptura do casal dá-se por um ou mais atos eivados de violência e/ou má-fé praticados por um dos cônjuges, até ensejadores de outras medidas penais e/ou de responsabilidade civil, porém esta circunstância não pode jamais inspirar os operadores do Direito de Família a procurarem em todos os casos e de modo obstinado um único culpado pela falência matrimonial, pois, na maior parte dos casos, esta falência é fruto de meses, às vezes anos, de ausência de diálogo, falta de compreensão, omissões, obsessões, pequenos atos de desrespeito mútuo que vão se avolumando até criar uma situação insustentável.

O fato é que nestes casos de desgaste natural e paulatino do casamento/união estável é impossível ao Magistrado, aos advogados e aos representantes do Ministério Público, atuantes em um processo de dissolução do casamento, obterem êxito em descobrir qual dos cônjuges/companheiros foi - pela primeira vez - grosseiro, violento, inoportuno, ciumento ou omisso, pois isto implicaria em adentrar em uma “máquina do tempo” para tentar “ver” o que ocorria dentro da morada comum, todos os dias em que este casal esteve junto, o que sabemos ser impossível.

Ademais, no momento em que ex-esposos/companheiros estão frente a frente em um Tribunal, abalados psicologicamente pelo estresse da separação, em um misto de frustração e vergonha, muitas vezes a razão é deixada de lado e pequenos fatos que já haviam sido relegados a um segundo plano, tornam-se importantes “cavalos de batalha”, no sentido de atribuir toda a culpa ao outro, quando a culpa geralmente pode ser atribuída a ambos, ainda que em proporções diferentes.

A falta de tato, inteligência emocional, honestidade intelectual (e às vezes de ética pessoal e profissional) para superar estes problemas, tanto do lado dos litigantes, quanto por parte dos advogados, pode levar a um duradouro e venenoso processo, o qual poderá, tranquilamente, dar azo a outros processos que tomarão a forma litigiosa, muitas vezes por mera postura vingativa e beligerante das partes. Assim, não se descarta o posterior ingresso de outras ações, prolongando desnecessariamente a dor e o sofrimento destas pessoas, isto sem mencionarmos a série de traumas que podem se abater sobre os filhos do casal.

Tais questões ligadas a determinação de “um culpado” são herança do sistema Canônico, daí o porquê de a doutrina mais abalizada estar pouco a pouco buscando o afastamento destas considerações, tendo sido festejadas as regras contidas especialmente no artigo 1580, § 1º, do Código Civil de 2002, o qual determina que da sentença concessiva de divórcio não conste referência à sua causa. Além disso, não se pode olvidar que o Novo Código de Processo Civil proclama a obrigação de as partes envolvidas buscarem a solução pacífica dos conflitos, algo que, convenhamos, não se obtém enxovalhando a parte ex adversa em petições recheadas de historietas ruins do passado e adjetivos (muitos adjetivos) daninhos.

Esta é a linha de pensamento de nosso Eg. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:

CIVIL. FAMÍLIA. DIVÓRCIO DIRETO LITIGIOSO. RECONVENÇÃO. ALEGAÇÃO DE CULPA. NÃO CABIMENTO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE.1. A ação de divórcio é direito potestativo da parte, não havendo que se perquirir a respeito da culpa. Dessa forma, comprovada a condição de casados, de que não mais coabitavam, a inexistência de bens a partilhar, tem-se por acertado o julgamento antecipado da lide e a consequente decretação do divórcio pelo julgador monocrático, repelindo-se a alegada violação ao artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal.(...)(Acórdão n.636368, 20120110230492APC, Relator: FLAVIO ROSTIROLA, Revisor: CESAR LABOISSIERE LOYOLA, 1ª Turma Civel, Publicado no DJE: 29/11/2012. Pág.: 75) grifamos

DIREITO DE FAMÍLIA. APELAÇÃO CÍVEL. DIVÓRCIO DIRETO. CITAÇÃO POR EDITAL. REVELIA. CURADORIA ESPECIAL. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. RETORNO AO USO DO NOME DE SOLTEIRA. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE MANIFESTAÇÃO DO CÔNJUGE VIRAGO. DIREITO PERSONALÍSSIMO. RECONHECIMENTO.1. A novel legislação civil (CC/2002), recriando paradigmas, afastou-se da busca pela apuração de culpa quando do desfazimento da união conjugal(...)(Acórdão n.588638, 20110310089238APC, Relator: MARIO-ZAM BELMIRO, Revisor: NIDIA CORREA LIMA, 3ª Turma Civel, Publicado no DJE: 29/05/2012. Pág.: 129) grifamos.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIVÓRCIO LITIGIOSO. CUMULAÇÃO DE PEDIDOS. EMENDA CONSTITUCIONAL 66/2010. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. POSSIBILIDADE. ARTIGO 273, §6º, DO CPC. DECISÃO REFORMADA. 1. A Emenda Constitucional n.º 66/2010 trouxe novos relevos ao divórcio, bastando para sua concessão apenas a vontade de um dos cônjuges, ou de ambos, independentemente de qualquer prazo mínimo de separação de fato ou da decretação judicial de separação, sendo afastada, ainda, a discussão sobre culpa pelo rompimento, preservando a intimidade das partes, facilitando e acelerando o procedimento.(...)(Acórdão n.939193, 20160020024312AGI, Relator: ANA CANTARINO 3ª TURMA CÍVEL, Data de Julgamento: 04/05/2016, Publicado no DJE: 12/05/2016. Pág.: 235/244)

Portanto, o divórcio/dissolução da união estável das partes deve ser decretado, sem que haja a menor necessidade de se perquirir o culpado (ou culpada) pelo fim da relação. Entendimento contrário, data maxima venia, seria lançar de volta o Direito de Família brasileiro ao abismo obscurantista do qual vem se livrando há alguns anos.

Além do mais, caso realmente haja fatos graves atribuíveis a uma das partes e que enseje a reparação de algum tipo de dano, importante frisar que já há entendimentos no sentido de que o pedido de indenização por danos morais, pelo menos no âmbito do Distrito Federal, extrapola a competência das Varas de Família, devendo a discussão ser encaminhada para as Varas Cíveis:

SEPARAÇÃO JUDICIAL LITIGIOSA - AGRAVO RETIDO - PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - MANUTENÇÃO DE INDEFERIMENTO - COMPETÊNCIA - EMENDA CONSTITUCIONAL 66/2010 - DIVÓRCIO DIRETO - PARTILHA - NOME. 1.A competência da varas de família (art. 27, da Lei 11.697/08 (LOJDFT) não contempla a demanda de indenização por dano moral supostamente causado por um cônjuge ao outro, estando a matéria afeta à competência das varas cíveis. Precedentes TJDFT. (...) (Acórdão n.575942, 20080110004768APC, Relator: SÉRGIO ROCHA, Revisor: CARMELITA BRASIL, 2ª Turma Cível, Data de Julgamento: 21/03/2012, Publicado no DJE: 30/03/2012. Pág.: 100)

Apenas como adendo, entendemos que nestes casos, ou seja, de discussão de danos morais, oriundos de fatos ocorridos durante a relação conjugal/convivencial, tramitando perante Vara Cível, deve ser concedido às partes o direito ao Segredo de Justiça, com base no art. 189, I e II do novo Código de Processo, sendo seus nomes abreviados nas publicações, a fim de evitar exposição indevida.

Por fim, em respeito aos ditames da lei 12.318/10 e ao Princípio da proteção integral aos direitos das crianças e adolescentes, ainda mais quando estão passando pela dissolução da relação dos pais, é necessário observar que estes fatos negativos (e passados) da vida privada do casal, os quais vieram para os autos do Processo, verdadeiros ou não, exagerados ou não, ao talante do contador das estórias, são muitas vezes repassados aos filhos do casal, de modo a enlodar e conspurcar a imagem de um ou ambos os genitores, em conduta que pode ser entendida como sendo compatível com verdadeira tentativa de Alienação Parental, devendo ensejar a aplicação das penas previstas no supramencionado documento legal.

MOLD, Cristian Fetter. A busca de um culpado pelo divórcio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5010, 20 mar.2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/53205>. Acesso em: 21 mar. 2017.

Desburocratização e segurança no âmbito dos bens de ausentes


terça-feira, 21 de março de 2017
Vitor Frederico Kümpel e Tomás Olcese
Não são poucas as críticas aos males causados pelo apego abusivo às formas e aos procedimentos. Se a literatura serve como indicador da consciência coletiva da humanidade, basta lembrar a trágica saga kafkiana vivida pelo personagem Josef K. em Der Prozess, ou o interminável e economicamente catastrófico julgamento do caso Jarndyce v Jarndyce narrado por Charles Dickens em Bleak House, obra que a historiografia jurídica inglesa1 considera uma descrição fidedigna da hiperburocracia que as reformas do direito inglês de fim do século XIX buscaram resolver2. Entre nós, ninguém menos que o Padre Antônio Vieira fez referência nada elogiosa aos estragos causados pela burocracia jurisdicional da sua época3.
Evidentemente, as situações descritas nas obras citadas são extremas e vêm permeadas de licença artística. Na maior parte dos casos da vida real, entretanto, a implantação de uma burocracia decorre da necessidade de racionalizar procedimentos a fim de atender de forma padronizada a uma quantidade cada vez maior de demandas4.
Logo, a burocracia somente se converte em algo indesejado quando passa a existir em função de si mesma, e não para atender às necessidades práticas dos jurisdicionados, normalmente relacionadas à isonomia, previsibilidade e eficiência da prestação. É apenas diante do extremo dispêndio de tempo e recursos para atender às demandas da burocracia que surgem os clamores que pedem a simplificação de procedimentos e a eliminação de entraves desnecessários.
Essa desburocratização, entretanto, se faz, muitas vezes, à custa da segurança jurídica. Se, de um lado, é verdade que não se pode tolerar o acúmulo injustificado de procedimentos para atingir determinado fim, também é certo que o total abandono de qualquer racionalização procedimental resultaria em desestabilização e arbitrariedade endêmicas. Logo, o discurso contra a burocracia será incompleto enquanto não se levar em consideração seu impacto na segurança jurídica. Nesse sentido, deve-se buscar o (sempre delicado) equilíbrio entre burocracia e segurança, de modo a atender aos fins (sempre sociais) do direito.
Um bom exemplo de desburocratização é a alteração de algumas das regras referentes ao que se poderia denominar "rito oficial" do óbito, especialmente nas hipóteses de ausência. Como bem se sabe, o Código Civil de 2002 promoveu algumas mudanças cujo objetivo foi desburocratizar a oficialização da morte da pessoa natural. Nesse sentido, houve simplificação e facilitação dos procedimentos atinentes à sucessão provisória e à sucessão definitiva.
Em primeiro lugar, os prazos foram substancialmente encurtados. Assim, a legislação anterior exigia, para a abertura da sucessão provisória, que se passassem dois anos sem notícia do ausente, se não tivesse deixado representante, ou quatro anos, caso tivesse deixado procurador5. O Código Civil em vigor reduziu esses prazos a um ano e três anos, respectivamente, contados da arrecadação dos bens do ausente6.
O prazo para o requerimento da abertura da sucessão definitiva e levantamento das cauções prestadas também sofreu progressiva diminuição. A redação original do art. 481 do Código Civil de 1916 exigia o prazo de trinta anos, depois de passada em julgado a sentença que concedia a abertura da sucessão provisória, para o requerimento de abertura da sucessão definitiva e levantamento de cauções. A Lei nº 2.437, de 7 de março de 1955, reduziu esse prazo para vinte anos, e a lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, reduziu ainda mais o prazo, fixando-o em dez anos7.
Veja-se que, apesar dessas reduções, o legislador entendeu necessário conceder um prazo de trinta dias (inexistente na codificação anterior), contados a partir do trânsito em julgado da sentença que determinar a abertura da sucessão provisória, para que os herdeiros ou interessados compareçam para requerer o inventário e assim evitar que a herança se torne jacente e, posteriormente, vacante8.
Houve, entretanto, uma mudança mais drástica. O Código Civil de 1916 exigia que todo e qualquer herdeiro desse garantias de restituição dos bens recebidos a título provisório, sob pena de ser excluído da partilha e os bens permanecerem os bens sob a administração do curador9. O Código Civil de 2002 mudou essa regra e passou a permitir que os herdeiros necessários (ascendentes, os descendentes e o cônjuge), uma vez provada essa condição, entrassem na posse dos bens mesmo sem apresentar qualquer garantia10.
Diante desse quadro, bem como da indissociável correlação entre burocracia e segurança, pode-se dizer que a redução dos prazos para a abertura da sucessão provisória e da sucessão definitiva foram benéficos, na medida em que a tecnologia e os meios de comunicação do mundo moderno em muito facilitam a busca de pessoas ausentes. Além disso, há a necessidade de assegurar a circulação da riqueza, em um contexto de proteção razoável do patrimônio do ausente.
Por outro lado, a não obrigatoriedade de apresentação de garantias para a imissão dos herdeiros necessários na posse dos bens do ausente certamente desburocratiza o processo, mas o faz à custa da segurança que o direito deveria oferecer ao ausente11, especialmente após ter reduzidos os demais prazos para a transmissão definitiva aos herdeiros.
Nessa coluna então foi possível observar um dos muitos esforços em busca do equilíbrio desburocratização versus segurança jurídica. Em outra oportunidade analisaremos como em algumas situações não é possível transigir da burocracia sob pena do sistema gerar injustiça.
Fiquem conosco, sejam felizes!
_________
1 Cf. W. S. Holdsworth, Charles Dickens as a Legal Historian, New Haven, Yale University, 1929, pp. 79-115 e J. H. Baker, An Introduction to English Legal History, 4ª ed., Oxford, Oxford University, 2007, p. 111.
2 As reformas do Tribunal da Chancelaria (Chancery Court) foram implantadas por via legislativa e culminaram na fusão administrativa das jurisdições inglesas (common law e equity), cf. Stat. 36 & 37 Vic. (1873), c. 66 e Stat. 38 & 39 Vic. (1875), c. 77.
3 Padre Antônio Vieira, Sermão de Sancto Antônio – Pregado na Cidade de S. Luiz do Maranhão no Anno de 1651, in A. Honorati, O Chrysostomo Portuguez, vol. IV, Lisboa, Mattos Moreira, 1880, pp. 568-569: "Vede um homem d’esses que andam perseguidos de pleitos, ou occupados de crimes, e olhae quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testimunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São peiores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado e já está comido".
4 Acerca das características da burocracia, cf. M. Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, trad. ing. por E. Fischoff et al., Economy and Society – An Outline of Interpretive Sociology, Berkeley, University of California, 1968, pp. 956-958.
5 Art. 469 do CC/1916: "Passando-se dois anos, sem que se saiba do ausente, se não deixou representante, nem procurador, ou, se os deixou, em passando quatro anos, poderão os interessados requerer que se lhe abra provisoriamente a sucessão".
6 Art. 26 do CC/2002: "Decorrido um ano da arrecadação dos bens do ausente, ou, se ele deixou representante ou procurador, em se passando três anos, poderão os interessados requerer que se declare a ausência e se abra provisoriamente a sucessão".
7 Art. 37 do CC/2002: "Dez anos depois de passada em julgado a sentença que concede a abertura da sucessão provisória, poderão os interessados requerer a sucessão definitiva e o levantamento das cauções prestadas".
8 Art. 28, § 2º, do CC/2002: "Não comparecendo herdeiro ou interessado para requerer o inventário até trinta dias depois de passar em julgado a sentença que mandar abrir a sucessão provisória, proceder-se-á à arrecadação dos bens do ausente pela forma estabelecida nos arts. 1.819 a 1.823".
9 Art. 473 do CC/ 1916: "Os herdeiros imitidos na posse dos bens do ausente darão garantias da restituição deles, mediante penhores, ou hipotecas, equivalentes aos quinhões respectivos. Parágrafo único. O que tiver direito a posse provisória, mas não puder prestar a garantia exigida neste artigo, será excluído, mantendo-se os bens que lhe deviam caber sob a administração do curador, ou de outro herdeiro designado pelo juiz, e que preste a dita garantia (art. 478)".
10 Art. 30, § 2º, do CC/2002: "Os ascendentes, os descendentes e o cônjuge, uma vez provada a sua qualidade de herdeiros, poderão, independentemente de garantia, entrar na posse dos bens do ausente".

11 Nesse sentido, cf. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil – Introdução ao Direito Civil e Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, 29ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2016, p. 192.
Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.

http://www.migalhas.com.br/Registralhas/98,MI255923,91041-Desburocratizacao+e+seguranca+no+ambito+dos+bens+de+ausentes

A carne fica fraca mesmo é quando vê os holofotes (Lenio Luiz Streck)

Para introduzir o tema, lembro um fato bizarro. Em batalha que venceu em 280 AC, o Rei Pirro disse, respondendo a um indivíduo que lhe demonstrou alegria pela vitória: "Mais uma vitória como esta e estarei arruinado completamente". E disse isso apontando para o que restou de suas tropas.
Pois no Brasil parece que logo chegaremos a uma etapa pírrica (é pírrica e não pirrônica, que é outra coisa) das operações com nomes fantásticos da Policia Federal autorizadas pela Justiça. Cá para nós, há exageros midiáticos que correm o risco de serem pírricos. Não gosto de teorias conspiratórias, mas já passamos por isso em relação ao café e às febres suínas e coisas do gênero. Querem ver? A Polícia Federal — claro que com ordem judicial — encontrou problemas em 21 unidades produtoras de carnes, num total de quase cinco mil empresas (unidades de produção), e suspeita de crimes praticados por 33 servidores, num universo de 11 mil funcionários do Ministério da Agricultura.
Resultado: pelo estardalhaço e a generalização feita, a imagem do país ficou comprometida, a ponto de o presidente da República reunir gente no domingo buscando acalmar os mercados internacionais. Dizem até que ofereceu churrasco feito com carne argentina. Mas não é disso que quero tratar.
Trago à colação o que pensa o setor agropecuário disso, nas palavras de Francisco Turra, ex-ministro da Agricultura, que disse: Não dá para a gente generalizar e vender a imagem de que tudo é ruim, de que tudo é corrupto, corrompido e corruptível. Para abrir mercado lá fora, a média tem sido de quase dez anos de luta. A maior injustiça do mundo é jogar na lata do lixo todo esse trabalho, denegrindo o esforço de muitos durante décadas.
Disse mais: somos os maiores exportadores de carne bovina. É um absurdo nivelar tudo, generalizar, vender a ideia de que no Brasil nada presta, de que tudo é podridão, é errado, nada está na conformidade da lei. Quando é justamente ao contrário: somos o país que tem a melhor biosseguridade.
Parece que, com exceção da Polícia Federal e do Poder judiciário, há uma quase unanimidade de que houve exagero (ver também aqui: criminalista vê irresponsabilidade nas acusações à carne brasileira) . Pergunto: por que precisa haver entrevista coletiva? Por que divulgar diálogos resultantes de escutas telefônicas, se a lei não permite essas divulgações? Não entendi também por que foi possível interceptar o ministro da Justiça (na ocasião da intercepção, era deputado federal). Ele não tinha foro por prerrogativa de foro? Como divulgaram a sua fala? Parece que a divulgação ilícita de interceptações fez e faz escola. Já não aprenderam suficiente com o episódio das escutas da ex-presidente Dilma, do ex-senador Demóstenes, tudo anulado pelo Supremo Tribunal Federal?
Depois do famoso power point, parece que há uma disputa para ver quem faz mais pirotecnia. Falta só ter trilha sonora, tipo Cavalgada das Valquírias ou Crepúsculo dos Deuses como abertura da coletiva. Imaginemos que isso vire regra e as generalizações também. Se alguns policiais forem pegos em uma operação, vale uma entrevista coletiva colocando toda a polícia na berlinda? Se pegarem juízes ou promotores envolvidos em irregularidades, vale fazer coletiva colocando todo o Poder Judiciário sob suspeita? Alguns jogadores são pegos no antidoping. Vale colocar na berlinda a lisura das disputas do Campeonato Brasileiro, a maior competição do mundo?
Se a resposta é não — e, para mim, é, efetivamente, “não, não pode fazer isso” — então também a Polícia federal não poderia ter feito o noticiamento dessa operação “carne fraca” desse modo. Parece que a carne é fraca mesmo diante de holofotes e exclusivas na GloboNews, para o gáudio dos filósofos brasileiros-alemães Birbaum (Pereira) e Kabina (Camarote).
Cuidemos para que não repitamos o “vitorioso” Rei Pirro. Temos de vencer, mas sem perder as tropas. Não precisamos jogar fora a criança junto com a água suja. Sim, o Brasil pode até ser uma chinelagem. Mas é meu país. É nosso país. Como na anedota: a mulher diz para a vizinha — sim, comadre, sei que meu marido é tudo isso que você diz; mas é meu. Em minha casa eu e ele resolvemos isso (usei o exemplo ao contrário do que se fala no imaginário popular, para evitar ser acusado de sexismo — hoje em dia isso pode dar coletiva).
Nosso sistema de fiscalização de carnes está com problemas? OK. Mas em que grau? Podemos generalizar isso, com pi(r)rotecnia, a ponto de prejudicarmos o país no mercado internacional? Pirro rima com pi(r)rotecnia.
Imaginemos uma entrevista coletiva contando quantas mortes ocorreram no final de semana nas capitais. Nem isso deve ser generalizado, embora os números assustem. Caso contrário, fizéssemos um power point disso, ninguém mais viria para o Brasil. E nós mesmos fugiríamos para as montanhas. E estocaríamos comida. Gente: vamos tocar o país para a frente.
Nota: agora, segunda-feira (20/3) à tarde, uma TV italiana, em programa de culinária, tirava onda com a carne brasileira. Estamos na boca do mundo; mientrastanto que escrevia este texto, fiquei sabendo que o Chile cancelou as importações de carne; e a União Europeia não quer carne dos frigoríficos listados na operação. Fora outras defecções. Bingo.
Como diz o Rei Pirro...
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 20 de março de 2017, 14h53
http://www.conjur.com.br/2017-mar-20/lenio-streck-carne-fica-fraca-mesmo-quando-ve-holofotes