sábado, 27 de maio de 2017

Os direitos e deveres fundamentais e a descriminalização do aborto: uma breve análise da ADPF 442 e da ADI 5.581

Reivindicamos ao professor e ao educador a liberdade de manifestar o próprio pensamento: liberdade que, aqui como alhures, entendemos com Montesquieu (Esprit, XI, 3) como o poder de fazer o que a nossa consciência moral nos indica como dever e como ausência de toda coerção a fazer o que a nossa consciência reprova. É dever do professor e do educador dizer a verdade segundo a sua ciência e convicção. A liberdade que reivindicamos para eles é justamente aquela que corresponde a tal dever, que, aliás, é sua missão. Nem acusações de heresias, nem denúncias ou perseguições de poderosos devem (assim acreditamos) valer para nos desanimar na honesta coragem de dizer a verdade como a entendemos e, de todo modo, para fazer com que nos desviemos da linha correta de conduta e de responsabilidade que nos foi traçada pela nossa missão. De resto, estamos bastante conscientes de que a verdade não é um dado da natureza a ser percebido e registrado apenas ab extra, nem moeda cunhada a ser contada e colocada em circulação, mas é um valor que nossa mente é convocada a descobrir e a construir na sua sublime objetividade. Por conseguinte, estamos bastante conscientes de que podemos fracassar, com nossos meios, no cumprimento da árdua tarefa; bastante conscientes de que a verdade não pode ser uma posse definitiva e menos ainda o monopólio ou a exclusividade de alguém, mas sim é a meta de uma aspiração que é perene porque nunca plenamente satisfeita, que é comum porque dela nenhum ser humano, por nenhuma razão, deve ser excluído. Conscientes de tudo isso, rejeitamos como absurda e ultrajante, de onde quer que venha, toda pretensão a monopolizar para si a verdade, como a moral. Rejeitamos como imoral toda forma de intolerância que negue aos outros a liberdade de manifestar um pensamento divergente e talvez oposto. Muito distantes de criticar, acusando de cegueira mental ou moral, quem sustenta visões opostas às nossas, temos horror a todo conformismo servil ou farisaico e acreditamos firmemente no benefício da discussão objetiva e da polêmica serena como instrumento de iluminação recíproca em todos os campos do pensamento e, sobretudo, no processo dialético do conhecimento científico. Essa é a nossa profissão de fé.
(EMÍLIO BETTI) [1]
1. Iniciei esta breve intervenção com a longa e judiciosa passagem de Emílio Betti, extraída de aula inaugural que ministrou em 15 de maio de 1948, há quase 69 anos, mas de perene atualidade. Com efeito, tramita perante o Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria da ministra Rosa Weber, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que objetiva a declaração judicial de incompatibilidade com a Constituição da criminalização do aborto voluntário, se realizado no primeiro trimestre de gestação.

2. Além dessa aludida ADPF 442, também tramita perante aquela Suprema Corte, sob a relatoria da ministra Cármen Lúcia, a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.581, proposta pela Associação Nacional de Defensores Públicos (ANADEP), visando, em relação ao aborto, permitir a interrupção da gestação na hipótese de a mulher infectada pelo “zika vírus”.

3. Tanto na ADPF 442 quanto na ADI 5.581 pede-se ao STF que inove o ordenamento jurídico-penal brasileiro, usurpando atribuição constitucional do Parlamento. Os requerentes, em vez de postularem as suas pretensões, que eles julgam válidas e legítimas, perante o Congresso Nacional, Poder constitucionalmente autorizado para transformar ou modificar as Leis brasileiras, provocam o STF para que esse órgão do Poder Judiciário vá além de sua missão institucional.

4. Com efeito, não há nas Leis nem na Constituição o fundamento normativo para as citadas pretensões. Logo, se o ordenamento jurídico não ampara as pretensões, ainda que eventualmente legítimas, o destinatário das postulações deve ser o Parlamento ou o Governo, mas nunca o Poder Judiciário. A rigor, deveria o STF julgar improcedente e liminarmente os pedidos das iniciais por impossibilidade jurídica das pretensões deduzidas. Sucede, todavia, que para há uma nova categoria de juristas, que estão sendo intitulados de neoconstitucionalistas ou pós-positivistas, não há mais pedidos que sejam juridicamente impossíveis.

5. Segundo essa nova categoria de juristas (neoconstitucionalistas ou pós-positivistas), qualquer postulação dirigida ao Poder Judiciário, mormente ao STF, pode ser conhecida e acolhida, independentemente do que esteja escrito e prescrito no ordenamento jurídico nacional e das condições e possibilidades de concretização e efetivação das normas jurídicas. Nessa perspectiva, não há interesse que não possa ser juridicizado e não há pedido que não possa ser acolhido. A decisão judicial pode tudo, inclusive mudar as realidades sociais, culturais, econômicas ou mesmo chegando ao paroxismo de conformar o Mundo e as pessoas às prescrições contidas nas Leis, nos Tratados e nas Constituições. Se na literatura latino-americana temos o “realismo mágico”, tendo como grande expoente o escritor colombiano Gabriel García Márquez, no direito a nossa Constituição é símbolo do “constitucionalismo mágico”, tendo nos neoconstitucionalistas ou pós-positivistas os seus principais entusiastas e corifeus.

6. Com efeito, essa nova categoria de juristas está lendo o texto da Constituição e está conseguindo, mediante um invejável contorcionismo hermenêutico, colher todas as suas utopias, todos os seus desejos e interesses, desprezando o quanto escrito e prescrito na Constituição, ignorando as reais possibilidades econômicas do Estado, bem como as tradições culturais de nossa sociedade. Como “crianças mimadas” ou “adolescentes rebeldes” ou “jovens transviados”, esses (néo ou pós)intérpretes da Constituição não se conformam com os fatos, com as tradições nem com a realidade. A Constituição, para eles, possui poderes mágicos ou sobrenaturais, e cabe à realidade se conformar e se adequar à ela. A força normativa do Direito vale mais que os Fatos. A Constituição é de “aço”; a Realidade seria de “papel”....???

7. Diante desse cenário, temos vivenciado o fenômeno do ativismo judicial à brasileira, que na minha modesta avaliação consiste em decisões judiciais que modificam o ordenamento jurídico, à míngua de direitos que estejam constitucionalmente assegurados ou legalmente estabelecidos.

O ativismo judicial à brasileira consiste na usurpação judicial das atribuições legislativas do Parlamento ou das atribuições administrativas do Governo. O pretexto ou a justificativa que tem sido usada consiste no princípio da máxima efetividade normativa da Constituição e no fato de que compete ao Judiciário a concretização dos direitos constitucionais, mormente os das minorias que não conseguem transformar os seus legítimos interesses em preceitos legislativos, porque não conseguem desbloquear a agenda conservadora, retrógrada e reacionária do Parlamento, segundo alegam.

8.Sem embargo das suas boas intenções (sic) e da inquestionável e indiscutível competência técnica e da honorabilidade dos magistrados brasileiros, Suas Excelências não estão autorizados nem legitimados para legislar nem para governar. Em minha avaliação, os magistrados e os tribunais devem julgar segundo o ordenamento jurídico, mas não devem julgar o ordenamento jurídico. Quem julga o ordenamento jurídico é a sociedade e quem está autorizado a modificá-lo é o Parlamento.

9. Com efeito, o ordenamento jurídico brasileiro assegura à mulher o direito de não engravidar. Nenhuma mulher pode ser constrangida a conceber. É direito jurídico (porque amparado no ordenamento jurídico) e moral (porque amparado nos valores sociais predominantes e intersubjetivamente compartilhados que revelam as diferenças entre o certo e o errado, entre o bem e o mal) da mulher não ser obrigada a manter relações sexuais e, também, o de não conceber. Tanto o Direito quanto a Moral asseguram essa prerrogativa existencial e ética da Mulher: não ser constrangida ao consórcio sexual, nem obrigada a conceber.

10. Mas, salvo nas estritas hipóteses legais, de forte conteúdo moral, é que se garante às mulheres a faculdade de abortar. E quais são essas hipóteses legais que atendem imperativos morais? São aquelas estampadas no Código Penal (art. 128, I e II): a) gravidez resultante de estupro; e b) risco de morte da gestante. Cuide-se que o STF, por força da decisão nos autos da ADPF 54, excluiu a ilicitude penal na hipótese de interrupção da gravidez de feto anencefálico.

11. Lastreado nesse mencionado julgamento da ADPF 54, pede-se, na ADPF 442, que o STF descriminalize o aborto até o primeiro trimestre de gestação, e na ADI 5.581 pede-se a descriminalização na hipótese de a gestante ter sido infectada pelo “zika vírus”.

Com o devido respeito, o julgamento da ADPF 54 não serve para influenciar essas demandas, assim como o julgamento da ADI 3.510, que discutiu a questão das pesquisas embrionárias com células-tronco, também não se presta a essa questão.

12. É que na ADPF 54 o Tribunal entendeu que o feto anencefálico não teria a sua morte efetivada com a antecipação terapêutica do parto, de sorte que sequer seria aborto, visto que a extração do feto do útero materno não seria a causa de sua morte, ante a sua inquestionável inviabilidade extra-uterina.

Na ADPF 442 e na ADI 5.581 não há inviabilidade existencial do feto. Há indesejabilidade do feto ou da criança que eventualmente padeça de “microcefalia”, em decorrência do “zika vírus”. O feto não é inviável, é indesejável para alguns. Seres indesejados devem ser eliminados, segundo essa lógica macabra.

13. No caso da ADI 3.510, se cuidava de embrião fora do útero materno, que não é feto humano. O STF entendeu que o feto ou nascituro humano é merecedor de proteção normativa, mas não o embrião “in vitro”. Nas presentes demandas, há nascituros humanos viáveis, em vez de fetos anencefálicos ou de embriões “in vitro”. Logo, o que restou decidido na ADPF 54 e na ADI 3.510 não se aplica nas presentes controvérsias.

14. A única manifestação que poderia servir de instrumento de persuasão jurídica foi a do eminente ministro Luís Roberto Barroso, nos autos do HC 124.306, na qual a 1ª Turma do STF aderiu às teses de Sua Excelência, em acórdão que, naquilo que interessa, restou assim ementado:

3. Em segundo lugar, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade.

4. A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria.

5. A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos.

6. A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios.

7. Anote-se, por derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália.

8. Deferimento da ordem de ofício, para afastar a prisão preventiva dos pacientes, estendendo-se a decisão aos corréus.

15. Essa decisão da 1ª Turma do STF não tem força normativa geral e não vincula nem obriga às demais instâncias judiciais ou administrativas. Portanto, o Plenário da Corte terá a oportunidade de repelir essa postulação. Mas, se o Plenário da Corte chancelar o entendimento de sua 1ª Turma, o Parlamento, munido da legitimidade democrática e constitucional, pode, se julgar oportuno e conveniente, aprovar eventual Emenda Constitucional cuidando do aborto.

16.Com efeito, é válida a estratégia dos grupos de interesses que não têm respaldo no Parlamento ou na sociedade de provocar o Poder Judiciário visando à efetivação de suas demandas. O que, na minha avaliação, não é válida é a invasão das atribuições constitucionais do Poder Legislativo pelo Poder Judiciário, sobretudo em temas nos quais a escolha é eminentemente política e tem respaldo no texto constitucional.

E, ainda em minha modesta avaliação, não é válida nem desejável a submissão do Poder Legislativo às decisões judiciais inconstitucionais, nas situações em que o Judiciário avança sobre as prerrogativas exclusivas dos legítimos, porque eleitos, representantes políticos do povo, de todo o povo, das maiorias e das minorias. Não defendo nem advogo o descumprimento ou a desobediência às decisões judiciais, ainda que ilegais ou inconstitucionais, ou mesmo teratológicas. Defendo e advogo que o Parlamento edite ou nova Lei ou Emenda Constitucional. A ordem judicial deve ser cumprida, mas a Lei ou a Constituição pode ser alterada.

17. Tenho, no entanto, plena convicção que esses avanços judiciais se devem às omissões políticas e às fragilidades de nossa representação político-partidária, mas também reconheço que pode ser muito conveniente para o Parlamento deixar que o Judiciário tome decisões políticas que seriam eleitoralmente antipáticas.

Sendo assim, não raras vezes o Judiciário realiza o trabalho que o Parlamento propositadamente não quis fazer. Não nos esqueçamos que o Parlamento é composto por políticos, pessoas acostumadas à lógica das conveniências e das oportunidades, e que possuem apurado instinto de sobrevivência, pois necessitam se adaptar às realidades para continuarem vivos.... Já o Judiciário é composto por magistrados, pessoas tradicionalmente acostumadas à lógica da licitude, e que não respondem política nem administrativamente pelas consequências ou resultados de suas decisões.

18. Assim, não raras vezes, pode ocorrer de o Poder Legislativo propositadamente deixar “entreaberta” a porta para que o Poder Judiciário adentre nos seus domínios. Ocorre, no entanto, que no presente caso não há omissão normativa inconstitucional a justificar a intervenção judicial. Há uma Lei que, nada obstante possa até ser julgada como socialmente inconveniente, por aqueles que dela discordam, está em plena conformidade com a Constituição. Reitero: a Constituição assegura à mulher o direito de não ter relações sexuais e lhe assegura o direito de não conceber, mas não lhe assegura o direito de abortar ou de interromper a gravidez. Este último direito é um direito “legal”, mas não um direito de caráter “constitucional”.

19. O principal argumento dos requerentes consiste na tese segundo a qual a criminalização do aborto viola vários dos direitos fundamentais da mulher. Com o devido respeito, o argumento não convence. Peço licença para tecer algumas breves considerações sobre o significado, o alcance, o sentido e as possibilidades normativas dos direitos e dos deveres fundamentais constitucionais, não só das mulheres, mas de todas as pessoas, independentemente do gênero.

20. Adoto a premissa estampada na própria Constituição, no capítulo relativo aos direitos e deveres individuais e coletivos, e cuido da necessária reciprocidade entre os direitos e deveres fundamentais, de modo que a todo direito fundamental corresponde um dever fundamental; para exigir o respeito aos seus direitos fundamentais é imperioso respeitar os direitos fundamentais alheios. Também acolho a premissa segundo a qual as leis e as demais normas jurídicas somente devem ser consideradas válidas e legítimas se não violarem os direitos fundamentais das pessoas humanas.

21. Mas qual o sentido normativo do termo “fundamental” acoplado ao direito? Creio que signifique o indispensável.

E o que seria fundamental ou indispensável para o indivíduo e para a coletividade? Para mim, a declaração, a conduta e o comportamento alheios que afetam de modo relevante ou a vida ou a liberdade do outro ou dos outros.

Nessa perspectiva, à luz do texto constitucional brasileiro, podemos adotar a seguinte noção de direitos fundamentais: o conjunto de preceitos normativos que, visando influenciar as declarações e as condutas das pessoas e das instituições, mediante a atribuição de consequências normativas, prescrevem enunciados jurídicos sobre a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade. Indiscutivelmente os direitos fundamentais ambicionam viabilizar com igualdade de condições e de oportunidades, de acordo com as necessidades e possibilidades individuais e coletivas, a todos - e a cada um - dignidade na mútua convivência, com os devidos, necessários e recíprocos respeito e consideração.

Daí que o sacrifício ou a restrição de direitos fundamentais deverá ser razoável e proporcional (compatível, aceitável, necessário e adequado).

Nessa toada, o intérprete ou aplicador dos direitos fundamentais deve revelar a prudência e o bom senso na solução do caso concreto, segundo as circunstâncias fáticas, os enunciados prescritivos, os paradigmas coletivos e os prismas individuais.

22. Aceito o dogma segundo o qual todo indivíduo maior de idade, na plenitude de suas faculdades mentais e de suas capacidades morais e existenciais, é senhor absoluto e exclusivo de sua vida, de seu corpo, de sua liberdade e de sua propriedade. Mas não pode dispor da vida alheia, do corpo alheio, da liberdade alheia e da propriedade alheia. E, para mim, os direitos fundamentais são conquistas evolutivas de uma sociedade que se pretende decente e civilizada. Essas sociedades, se decentes e civilizadas, optaram pela proteção normativa dos direitos fundamentais dos mais vulneráveis ou dos mais fracos. Sendo assim, entre a proteção dos direitos fundamentais do feto e a proteção dos direitos fundamentais da mulher, não tenho a menor dúvida que a solução que melhor atende aos requisitos de uma sociedade decente e civilizada consiste naquela que protege o feto, porque esse é a parte mais fraca ou vulnerável da relação biológica.

23. Com efeito, a relação entre a gestante e o feto é de caráter vertical e privada, nada obstante, essas relações também são alcançadas pela regulação normativa dos direitos e deveres fundamentais, como sucede com as obrigações dos pais em relação aos seus filhos menores ou dos filhos maiores em relação aos seus pais na velhice. Felizmente a sociedade brasileira tem evoluído na proteção normativa dos mais vulneráveis ou dos mais fracos, ainda que sejam pessoas ou seres indesejáveis pelos eventuais custos econômicos e sociais. Proteger normativamente os fetos nos úteros maternos consiste em relevante mensagem simbólica e de qual é e deve ser a nossa ética social.

24. Reitero o que já tive ocasião de escrever (O grito silencioso dos inocentes: uma leitura conservadora dos direitos fundamentais e da ADPF 442 – www.jus.com.br): A nossa sociedade atribui sentido e valor aos cadáveres e às sepulturas, lhes protegendo normativamente. Por que não proteger os seus opostos fáticos e simbólicos, os fetos e os úteros maternos?

25. O nosso ordenamento jurídico, incluindo os compromissos internacionais que a República brasileira assumiu, proíbe que se atribua a consequência normativa da pena de morte para os criminosos, inclusive os hediondos. Pois bem, se os criminosos, salvante os de guerra, não podem ser condenados à morte, como podemos condenar os fetos, seres absolutamente inocentes e privados da consciência de sua própria existência e dignidade? A proteção normativa aos fetos humanos diz respeito à nossa ideia de humanidade. Que tipo de pessoas humanas somos? Que tipo de sociedade queremos ser? Quais são os valores sociais mais relevantes e caros para a nossa cultura? Qual o sentido que atribuímos àqueles que serão a nossa imagem e à nossa semelhança, e que um dia já fomos a imagem e semelhança deles?

26. Um dos argumentos esgrimidos consiste na tese segundo a qual proteção normativa do feto fere a igualdade de gênero, pois seria uma invasão estatal no corpo da mulher, na medida em que os homens não podem conceber e, por consequência, não poderiam ser proibidos de abortar. O argumento não convence por sua fragilidade intrínseca. Com efeito, não deve ser critério válido invocar uma incontornável desigualdade ou diferença fática ou biológica para impugnar um comando normativo o direito à igualdade. O argumento, com o devido respeito, raia à irrisão. Ademais, a legislação não visa constranger à mulher, mas visa proteger o feto. O feto é o destinatário da proteção. A mulher deve ser levada em consideração, deve ser acolhida, deve ser abrigada, mas nessa relação fática, o feto é a parte mais fraca e, por consequência, ele é o merecedor da proteção normativa. Há inegável simbologia normativa nessa medida de moralidade política. O certo é proteger o direito do nascituro de nascer e de existir. É errado não proteger os mais vulneráveis.

27. Cuide-se que desejável expansão dos direitos fundamentais da pessoa humana não pode resultar na sua banalização. Direito fundamental é coisa séria e que deve ser levado a sério.

A sociedade pode modificar os seus valores éticos plasmados nas leis? Obviamente que sim. Mas se acaso o fizer deverá ser por meio dos seus legítimos representantes políticos, jamais por seus juízes ou tribunais, por mais qualificados e honrados que estes sejam.

28. Ter o poder de dispor sobre a vida ou a existência de um ser, qualquer ser, inclusive e principalmente o ser humano, ainda que em fase embrionária ou potencial, consiste em um poder de natureza divina. Se queremos e se podemos exercer esse poder, que é próprio dos “deuses”, devemos agir com responsabilidade e com misericórdia, pois somente assim seremos dignos de nossa divina humanidade.
NOTA

[1] BETTI, Emílio. Interpretação da lei e dos atos jurídicos. Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. XXXI-XXXIII.
ALVES JR., Luís Carlos Martins. Descriminalização do aborto: análise da ADPF 442 e da ADI 5.581Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22n. 507625 maio 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/57767>. Acesso em: 26 maio 2017.

Uma análise das hipóteses de anulação do casamento

Conheça as hipóteses de anulabilidade do artigo 1.550 do CC/02.

O casamento é ato jurídico, devendo, portanto, ser analisada a sua existência e validade. No que pertine à invalidade por anulabilidade devemos nos atentar às hipóteses trazidas pelo artigo 1.550 do CC/02, de modo que o juiz deverá analisar no caso concreto a ocorrência de uma das causas lá dispostas a fim de anular o ato jurídico.

Vale lembrar que somente o cônjuge ou o seu representante legal pode propor ação para anulação do casamento, pois o ato de propositura é personalíssimo, mas em caso de morte, ocorrerá a substituição processual.

A não propositura da ação, por sua vez, presume a aceitação do fato, de maneira que a inércia injustificável do cônjuge leva à convalidação do ato.

Vejamos as hipóteses de anulação do casamento:

I - Quem não completou a idade mínima para casar
O casamento é anulável, mas se sobrevier gravidez, convalida-se. O prazo decadencial será de 180 dias, com termo inicial a contar para o menor a partir dos 16 anos e para os representantes legais, da data da cerimônia.

II - Menor em idade núbil, quando não autorizado por seu representante legal
O casamento é anulável, mas se sobrevier gravidez, convalida-se. O prazo decadencial será de 180 dias, com termo inicial a contar da cerimônia, quando ajuizada pelo representante legal que não autorizou ou não participou do processo de autorização.

III - Vício da vontade, nos termos dos artigos 1.556 a 1.558
São as hipóteses de erro e coação. Aqui, o prazo decadencial será de 3 anos no caso de erro e de 4 anos no caso de coação a contar da data da cerimônia.

Veja-se:
Art. 1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:
I - o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado;
II - a ignorância de crime, anterior ao casamento, que, por sua natureza, torne insuportável a vida conjugal;
III - a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável que não caracterize deficiência ou de moléstia grave e transmissível, por contágio ou por herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência;

Bem como:

Art. 1.558. É anulável o casamento em virtude de coação, quando o consentimento de um ou de ambos os cônjuges houver sido captado mediante fundado temor de mal considerável e iminente para a vida, a saúde e a honra, sua ou de seus familiares.
IV - Incapaz de consentir ou manifestar, de modo inequívoco, o consentimento;

Trata-se da hipótese da ocorrência de brincadeiras na hora da manifestação de vontade ou de declará-la sob efeito de álcool ou drogas, por exemplo. O prazo decadencial será de 180 dias a contar da cerimônia.

V - Realizado pelo mandatário, sem que ele ou o outro contraente soubesse da revogação do mandato, e não sobrevindo coabitação entre os cônjuges;
Nessa hipótese, o prazo decadencial será de 180 dias a contar da cerimônia, desde que não haja coabitação, sob pena de convalidação.

VI - Incompetência da autoridade celebrante
O prazo decadencial será de 2 anos a contar da data da cerimônia. Mas, cumpre mencionar que o Poder Judiciário tem negado a anulação nessa hipótese, em razão do princípio da insignificância. Logo, a incompetência deve ser grave.
Por fim, vale lembrar que do cabimento do perdão, poisem razão de o fato ser repugnante, a reação deve ser dotada de imediatidade, de modo que a partir do conhecimento do fato, deve agir no sentido de cessar a coabitação e propor a ação, sob pena de presumir o perdão, convalidando o ato.

A EBRADI – Escola Brasileira de Direito tem como missão transformar a educação jurídica, colaborar para humanização do direito e alçar nosso aluno a um patamar de excelência no mercado de trabalho, e tem como visão ser referência nacional e internacional de qualidade no ensino do direito.

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