segunda-feira, 12 de junho de 2017

Monteiro Lobato no TSE



"Monteiro Lobato no TSE

No julgamento do TSE, Gilmar Mendes citou uma passagem da obra "A Reforma da Natureza", de Monteiro Lobato. O trecho citado pelo ministro já estava na obra "Fábulas", na qual Lobato reescreve textos de La Fontaine e Esopo. No texto mencionado, Lobato diz mais ou menos o seguinte: um cidadão, Américo Pisca-Pisca, quer reformar a natureza, e acha que seria mais lógico pôr as abóboras na jabuticabeira, e as jabuticabas crescendo ao chão. Feito isso, vai descansar embaixo de um antigo pé de jabuticabas, quando lhe cai o novo fruto na cabeça. Moral da história..." (Migalhas, 12/06/17)

A questão jurídica no atendimento médico de pacientes Testemunhas de Jeová

Por 
O presente artigo demonstra a existência de uma atuação médica segura — tanto do ponto de vista jurídico como ético — voltada para pacientes que não aceitam transfusão de sangue por motivos religiosos. Ao final, sugere-se um protocolo de atendimento a fim de conferir segurança ético-jurídica aos profissionais de saúde.
1. Risco de ser processado: transfundir ou não transfundir?
Para muitos, o médico vive um dilema que envolve o risco latente de ser processado ao tratar pacientes Testemunhas de Jeová. É como se em qualquer cenário o profissional de saúde corresse o risco de processo: pelo paciente, se sua vontade for violada ao receber uma transfusão de sangue; ou pelo Ministério Público, familiares ou Conselho de Medicina, por deixar de transfundir e ocorrer a morte.
Cabe, então, a pergunta: seria possível conciliar o respeito à autonomia dos pacientes Testemunhas de Jeová com uma atuação médica segura, que não comprometa o profissional de saúde mesmo em situações críticas?
2. Dever legal do médico e o consentimento livre e esclarecido
Do ponto de vista técnico-jurídico, a obrigação do médico é de meio, e não de resultado. Considerando que o resultado final — cura — não é garantido, faz-se necessário explicar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, as opções terapêuticas e os possíveis resultados. Trata-se de uma etapa importante da relação médico-paciente que leva em consideração os aspectos humanísticos envolvidos. Após ser devidamente esclarecido, o paciente decidirá o tratamento que julgar mais apropriado ao seu caso[1].
É justamente o ato de dar o consentimento que chancela a ciência do paciente de que a obrigação do médico é de meio, havendo verdadeira repartição do risco. Por outro lado, caso não respeite a autonomia do paciente, o médico estará colocando integralmente sobre os seus ombros todo o ônus de sua intervenção.
Para José de Aguiar Dias, as obrigações implícitas no contrato médico compõem-se dos seguintes deveres: (1) informação; (2) cuidados; (3) abstenção de abuso ou desvio de poder[2]. Há o dever de esclarecer o paciente sobre a doença e os tratamentos possíveis. Uma vez obtido o consentimento do paciente, o profissional agirá com diligência e providenciará cuidados de acordo com os melhores recursos científicos disponíveis. Desse modo, o médico não poderá ser responsabilizado caso a cura não seja alcançada ou o tratamento proposto não seja bem-sucedido.
Uma pesquisa jurisprudencial sistemática nos tribunais revela que médicos ou hospitais não têm sido processados ou responsabilizados cível e criminalmente quando respeitam a recusa de transfusão de sangue de pacientes Testemunhas de Jeová.
O conceito de que profissionais de saúde são processados e condenados ao tratarem pacientes Testemunhas de Jeová, embora amplamente difundido, não encontra sustentação diante de uma pesquisa jurisprudencial atual e sistemática.
3. Omissão de socorro?
O crime de omissão de socorro (Código Penal, artigo 135) se perfaz por meio da conduta de “deixar de prestar assistência”. Assim, sua caracterização requer a recusa intencional de atendimento, isto é, diante da situação de perigo, o médico não oferece qualquer espécie de tratamento, abandonando o paciente. Pode-se concluir que o médico, ao “prestar assistência” por meio de opções terapêuticas diversas da transfusão de sangue em conformidade com o consentimento informado do paciente, não comete o crime de omissão de socorro.
Tratando especificamente do caso das Testemunhas de Jeová, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso esclarece não haver qualquer crime cogitável na conduta do médico que respeita o paciente que recusa transfusão de sangue: “A manifestação da vontade deverá ser respeitada por força dos princípios constitucionais que incidem diretamente na hipótese. Por tais fundamentos, seria impossível qualificar a conduta do médico como homicídio ou omissão de socorro, ou ainda enquadrá-la em qualquer outro tipo em tese cogitável”[3].
No caso de o profissional de saúde deixar de ministrar o procedimento transfusional, o antigo Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo assentou: “O que o art. 135, do CP define como crime é a falta de assistência. Comprovado que as acusadas estão assistindo a menor, ainda que através de terapêutica distinta, mas abonada por critério médico, inexiste justa causa sob esse título, para a ação penal” (Tacrim-SP – HC – rel. Marrey Neto – RJD 7/175).
Além disso, para configurar o tipo penal de omissão de socorro, por se tratar de ilícito doloso, é necessário que haja uma vontade consciente de deixar de socorrer a vítima. Corroborando esse entendimento, o professor Nelson Nery Junior esclarece: “O médico que recomenda a transfusão de sangue, ao contrário do que exige o tipo, tem a intenção de tratar o paciente. Se este a recusa, não há que se falar em omissão de socorro por parte do médico, sendo atípica a conduta, porque falta o elemento subjetivo do tipo, ou seja, o dolo de submeter o sujeito passivo a situação de perigo iminente ou eventual”[4].
Resta assim desmitificado o conceito de que o profissional de saúde pratica o ilícito penal por omissão de socorro se utilizar terapêuticas que evitam transfusão de sangue. Socorrer não é sinônimo de transfundir. O médico que cuida de paciente adulto e capaz segundo o tratamento por ele escolhido não age com dolo de omissão de socorro. Sua conduta, portanto, é atípica — não há crime.
4. Julgados do Conselho Federal de Medicina
A prática médica deve estar acompanhada de uma atuação eticamente responsável[5]. Uma pesquisa jurisprudencial demonstra que o Conselho Federal de Medicina (CFM) já apreciou em três ocasiões casos de médicos que não transfundiram sangue em respeito à posição de pacientes Testemunhas de Jeová: Apelação 1.251/11 CRM-SC; Apelação 654/00 CRM-SP; e Apelação 5.793/98 CRM-SP.
Nos três casos, o CFM reconheceu que não há infração ética quando o médico respeita a autonomia do paciente.
Como exemplo, transcreve-se ementa de acórdão de lavra do conselheiro Roberto Luiz D'Ávila:
PROTOCOLO. RECURSO DE ARQUIVAMENTO. INEXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DE INFRAÇÃO ÉTICA. MANUTENÇÃO DO ARQUIVAMENTO. I - Não se vislumbra indícios de infração ética quando o médico deixa de instituir procedimentos diagnósticos ou terapêuticos necessários ao tratamento do seu paciente, quando impedido por recusa consciente do paciente e de seus familiares, decorrente de motivos de ordem religiosa. II Apelação conhecida e improvida (...) Sem dúvida é um direito individual de todo cidadão professar o credo ou a religião que lhe aprouver. A própria Constituição Federal garante esse direito individual. Porém, a responsabilidade dos atos decorrentes da obediência aos dogmas de credos e religiões professados, mesmos os que coloquem em risco à própria vida, não podem, e não devem, ser transferidos a outras pessoas (CFM - Número: 5793/1998 - Origem: CRM-SP – Pub. 22/10/2001).
Conforme se percebe, a jurisprudência ética do CFM considera que a responsabilidade pelas decisões do paciente Testemunha de Jeová cabe somente a este, não podendo ser transferida ao médico que o respeita.
Dos julgados citados se extrai ainda que o entendimento do CFM é no sentido de que uma conduta eticamente responsável não está pautada no estado clínico no paciente. O que se exige é que o profissional médico se assegure de que haja, por parte do paciente, uma vontade expressa de forma livre e consciente. Essa vontade pode ser expressa, inclusive, de forma antecipada, seja verbalmente ou por um documento de diretivas antecipadas.
Não há registro dentre os julgados do CFM de médicos que tenham sido condenados por respeitar pacientes Testemunhas de Jeová.
5. Atuação médica segura — sugestão de protocolo
Nos últimos anos, o CFM publicou diretrizes que fixam parâmetros para resguardar os médicos ao lidarem com pacientes que não consentem com o tratamento proposto e que exigem terapias diversas do recomendado pela equipe médica. Com base em tais parâmetros, propõe-se no presente artigo um protocolo de atendimento a pacientes Testemunhas de Jeová que oferece garantias legais e resulta em uma atuação médica segura:
a. analise todas as alternativas à transfusão disponíveis. Segundo a Recomendação CFM 1/2016, “a conduta do médico já não pode limitar-se à constatação de risco de morte para transfundir sangue compulsoriamente, mas precisa levar em consideração as recentes alternativas disponíveis de tratamento ou a possibilidade de transferência para equipes com profissionais treinados em tratamentos através de substitutos do sangue”.
b. esclareça o paciente. Em respeito ao princípio do consentimento informado, esclareça o paciente sobre as alternativas disponíveis, incluindo diagnóstico e prognóstico. Desse modo, permite-se ao paciente tomar a decisão sobre tratamento que este julgar mais apropriado para seu caso (Código de Ética Médica, art. 24). Enquanto a responsabilidade do médico é de meio (prestar a melhor assistência possível), o resultado final dependerá, dentre outros fatores, da escolha consciente de tratamento feita pelo paciente.
c. registre a decisão em TCLE. É importante registrar a decisão esclarecida do paciente que recusa transfusão de sangue. Um instrumento recomendado pelo próprio CFM é o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), conforme parâmetros da Recomendação CFM 01/2016[6]. Termos flexíveis, contendo o protocolo que será adotado, riscos envolvidos e as decisões do paciente constituem uma prática segura. Deve-se permitir que o paciente faça observações, inserções e exclusões no documento. O TCLE exime a equipe médica de eventuais responsabilidades caso haja um resultado insatisfatório no tratamento escolhido pelo paciente.
d. registre no prontuário. É importante o médico registrar as decisões e a evolução do tratamento escolhido no prontuário, a fim de comprovar que a atuação foi norteada pela decisão autônoma do paciente. Se o paciente fornecer um documento com diretivas antecipadas sobre transfusão de sangue, esse deve ser juntado ao prontuário, visando proteger o profissional. O objetivo é oportunizar ao paciente o registro de sua vontade sobre tratamentos, sobretudo quando “estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”. Acerca de eventual pressão de familiares contrários ao desejo do paciente, as diretivas antecipadas deverão prevalecer[7] (arts. 1º e 2º, § 3º e 4º da Resolução CFM 1.995/2012).
e. conferencie, promova junta médica, transfira o paciente. É prudente consultar médicos experientes em tratamentos sem sangue a fim de obter-se uma segunda opinião (Código de Ética Médica, art. 39). Contudo, caso o profissional se recuse a praticar atos com os quais não concorda (objeção de consciência), em respeito à sua autonomia profissional, pode este “sempre que possível encaminhar [o paciente] para outro colega” (Resolução CFM 2.144/2016 e Recomendação CFM 01/16). Logo, uma vez conhecida a posição do paciente, caso não haja concordância por parte do médico, é recomendável transferir o paciente o mais breve possível para outro profissional que aceite tratá-lo sem sangue. Tal procedimento, já no início da internação, evitará que o problema se agrave e permitirá que alternativas médicas à transfusão de sangue sejam utilizadas desde o início do tratamento.
Considerações finais
Em síntese, não são adequados à realidade os temores de muitos médicos de serem condenados ética, civil ou criminalmente por respeitarem a vontade de pacientes Testemunhas de Jeová. A jurisprudência, tanto dos tribunais como do Conselho Federal de Medicina, atesta ser legal e adequada a conduta do profissional de saúde que respeita a escolha esclarecida de um paciente adulto e capaz que recusa transfusões de sangue.
Portanto, é perfeitamente possível a elaboração de um protocolo de atendimento a pacientes Testemunhas de Jeová que confira tranquilidade e segurança ético-jurídica aos profissionais de saúde. Apesar dos desafios e da complexidade do tema, mediante uma visão mais humanística e livre de paixões e preconceitos, é possível conciliar o mister beneficente dos médicos de zelar pela saúde com o respeito aos direitos humanos do paciente.


[1] “CIVIL E CONSTITUCIONAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PACIENTE INTERNADO. TRATAMENTO APLICADO PELA INSTITUIÇÃO DE SAÚDE. DETERMINAÇÃO JUDICIAL. TRANSFUSÃO DE SANGUE COMPULSÓRIA. RECUSA DA PESSOA ENFERMA. OPÇÃO POR MODALIDADE DIVERSA DE TRATAMENTO. POSSIBILIDADE. OBSERVÂNCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E À LIBERDADE. DIREITO DE ESCOLHA DA ESPÉCIE DE TRATAMENTO MÉDICO. LEGALIDADE. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E PROVIDO.
1. A opção de escolha pela modalidade e características do tratamento médico que lhe pareça mais conveniente, sob os aspectos biológico, científico, ético, religioso e moral, é conduta que possui a natureza de direito fundamento, protegida pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e da Liberdade, na forma preconizada no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal. 2. É lícito que a pessoa enferma e no pleno exercício de sua capacidade de expressão e manifestação de vontade, de modo claro e induvidoso, recuse determinada forma de tratamento que lhe seja dispensado, não se evidenciando nesse caso lesão ao bem maior da vida, constitucionalmente tutelado, mas se configurando, de outro modo, o efetivo exercício de conduta que assegura o também constitucional direito à dignidade e à liberdade pessoal” (TRF 1ª Região – Agravo de Instrumento 0017343-82.2016.4.01.0000/MG, rel. Kassio Nunes Marques, julg. em 16/5/16).
[2] Da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, n. 116.
[3] BARROSO, Luís Roberto. Legitimidade da Recusa de Transfusão de Sangue por Testemunhas de Jeová. Dignidade Humana, Liberdade Religiosa e Escolhas Existenciais. Parecer jurídico. Rio de Janeiro, 5 de abril de 2010.
[4] NERY JUNIOR, Nelson. Escolha Esclarecida de Tratamento Médico por Pacientes Testemunhas de Jeová – como exercício harmônico de direitos fundamentais. Parecer jurídico.
[5] A Resolução CFM 1.021/80, que prevê a negativa de consentimento em casos de iminente risco de morte, encontra-se em processo de revogação pelo Conselho Federal de Medicina. Atualmente ela não confere real segurança jurídica visto que é contrária à Constituição Federal de 1988, que assegura a dignidade da pessoa humana, e, por conseguinte, a autonomia do paciente independentemente do seu estado de saúde.
[6] As Testemunhas de Jeová usualmente portam um documento de diretivas antecipadas que se assemelha ao TCLE e que já foi reconhecido como declaração válida de vontade (TJ-SP – Agravo 0065972-63.2013.8.26.0000)
[7] Nesse sentido, entende a Suprema Corte argentina em caso envolvendo paciente Testemunha de Jeová: “Por conseguinte, o tribunal de primeira instância constatou que tais diretivas devem ser respeitadas priorizando os desejos do paciente com base no seu direito de autodeterminação, em suas crenças religiosas e em sua dignidade, que as manifestações feitas por seu pai não consideraram que poderia ser remediado. Que, no caso, não há elementos para dúvidas quanto à validade formal do documento assinada manualmente por Pablo [paciente] perante o escrivão público Natalio R. Strusberg procedeu certificação” (Tradução livre - Corte Suprema de Justicia de la Nación – Argentina - Albarracini Nieves, Jorge Washington s/medidas precautorias A. 523. XLVIII. REX).

Referências bibliográficas
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Autonomia do Paciente e Direito de Escolha de Tratamento Médico Sem Sangue. Parecer jurídico, São Paulo, SP, 08 de fevereiro de 2010.
BARROS JUNIOR, Edmilson de Almeida. A responsabilidade civil do médico: uma abordagem constitucional. São Paulo: Atlas, 2007.
BARROSO, Luís Roberto. Legitimidade da Recusa de Transfusão de Sangue por Testemunhas de Jeová. Dignidade Humana, Liberdade Religiosa e Escolhas Existenciais. Parecer jurídico. Rio de Janeiro, 5 de abril de 2010.
BASTOS, Celso Ribeiro. Direito de recusa de pacientes submetidos a tratamento terapêutico às transfusões de sangue, por razões científicas e convicções religiosas. Revista dos Tribunais, v. 90, n. 787, maio 2001.
KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.
NERY JUNIOR, Nelson. Escolha Esclarecida de Tratamento Médico por Pacientes Testemunhas de Jeová – como exercício harmônico de direitos fundamentais. Parecer jurídico. São Paulo, SP. Setembro, 2009.
PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado na relação médico-paciente. Centro de Direito Biomédico. Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra Editora, junho 2004.
RAGAZZO, Carlos Emmanuel Joppert. O dever de informar dos médicos e o consentimento informado. Curitiba: Juruá, 2006.
Leandro S. Valadares é procurador federal e especialista em Direito Constitucional e Civil pela UFG.
Revista Consultor Jurídico, 10 de junho de 2017, 6h37
http://www.conjur.com.br/2017-jun-10/opiniao-questao-juridica-atendimento-testemunhas-jeova

TJ-PE mostra sensibilidade ao incluir deficientes via concurso público

Por Mateus Costa Pereira e Rafael Alves de Luna

Em 31 de maio de 2017, a Seção de Direito Público do Tribunal de Justiça de Pernambuco iniciou seus trabalhos analisando dois mandados de segurança (MS 0000670-97.2017.8.17.0000 e 0012803-11.2016.8.17.0000); duas ações que, de um ponto de vista estritamente numérico, perder-se-iam no número de feitos que seriam julgados naquela mesma sessão, mês ou ano, dentre as centenas enfrentadas pelo colegiado e os milhares julgados pela própria corte.
Sucede que, algumas peculiaridades marcavam os writs em alusão. Inicialmente, a circunstância de ambos terem sido impetrados pela mesma candidata e ao ensejo de diferentes fases do mesmo concurso público. Mais, os mandados de segurança invocavam o direito à inclusão social da pessoa com deficiência, especificamente em certame para provimento de vagas polícia civil, o que costuma despertar controvérsias e revolver problemas de discriminação (em sentido negativo).
A candidata, pessoa com deficiência física e motora causada por lesão sofrida na vértebra lombar L1, regularmente inscrita dentre as vagas reservadas à política de integração da pessoa com deficiência, teve que impetrar duas ações para garantir seu direito à isonomia e permanecer no concurso. Mas o caso, já analisado à luz da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (Decreto 6.949/09) e do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15), não remontava apenas à integração, senão à inclusão social. Além da reserva de vagas, em reconhecido e necessário esforço/política para integrar, a necessidade do concurso público/comissão organizadora adotar as medidas necessárias para garantir que a candidata com deficiência pudesse concorrer em igualdade de condições aos demais, é dizer, a observância do dever de incluir.
No ensejo, ressoando preceito normativo da Convenção e presente no Estatuto, o edital do concurso previa que os candidatos com deficiência teriam assegurado o direito à isonomia, mas sem especificar as medidas in concreto previstas para tanto. Ao revés, o edital estabeleceu as mesmas fases e regras para os candidatos indistintamente. Nesse sentido, naquilo que importa destacar na oportunidade, todos os candidatos deveriam se submeter à prova de aptidão física, consistente em quatro testes: corrida, impulsão horizontal, natação e estático de barra. É importante enaltecer o ponto: todos, com ou sem deficiência, postulantes ao cargo de delegado, agente ou escrivão, deveriam prestar a mencionada fase.
À parte da candidata com deficiência ser postulante do cargo de escrivã, o que nos remete a uma reflexão necessária quanto à razoabilidade/proporcionalidade da exigência da prova de capacidade física, dada a manifesta ausência de congruência dentre as habilidades exigidas pelo concurso e a natureza do cargo almejado − um "nonsense" já reprochado pelo Supremo Tribunal Federal (Recurso Extraordinário 505.654 AgR/DF, relatado pelo ministro Marco Aurélio) −, para os fins deste trabalho focamos na obrigatoriedade da prova de capacidade física na perspectiva da inclusão social.
Volvendo aos "fatos", foi após se submeter à prova de aptidão física que a candidata amargou a primeira eliminação do concurso. Enfrentando sensíveis dificuldades para caminhar − o que faz com o auxílio de uma muleta −, a candidata passou no teste de natação e no estático de barra, mas não reunia condições para saltar (impulsão horizontal), tampouco para correr. E, ainda que seu médico tivesse especificado a impossibilidade dela se submeter aos dois testes em um atestado médico − atestado que deveria ser apresentado por todo candidato por ocasião da referida prova −, a comissão organizadora forçou a candidata a gravar dois vídeos correspondentes aos testes não realizados (todos os testes eram gravados). Logo, diante de uma câmera, após a indicar seu nome e número de inscrição, a candidata foi instada a afirmar que, seguindo recomendações médicas e para não colocar a própria saúde em risco, não poderia correr; em seguida, na outra gravação, que não poderia saltar − mais tarde, a discriminação (em sentido negativo) e a humilhação a que a candidata fora submetida foram reconhecidas pelo voto proferido pelo desembargador relator.
Reintegrada ao certame por força de medida liminar, a candidata seria desclassificada uma segunda vez, desta feita, ao tempo em que foi avaliada pela junta médica, cujos expertos, após analisarem os laudos e demais exames apresentados, chegariam a duas conclusões "brilhantes": que a candidata era pessoa com deficiência; seguindo o rompante, que ela apresentaria "condições incompatíveis com o cargo pretendido", "potencializadas com as atividades a serem desenvolvidas", "capazes de gerar atos inseguros que venham a colocar em risco a segurança do candidato/outras pessoas" e "potencialmente incapacitantes a curto prazo." Novo mandado de segurança haveria de ser impetrado.
Sobre não ser único (cada caso é um caso, mas nem tanto...), a situação descrita é rica para um estudo em sala de aula, permitindo diferentes abordagens. Sob a égide da inclusão social, cujo assento tem índole normativo-constitucional (Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, primeiro e único tratado de direitos humanos aprovado sob as especiais condições descritas pelo artigo 5º, parágrafo 3º, Constituição Federal), percebe-se que uma aparente igualdade (submissão de todos os candidatos às mesmas fases e regras), travestiu uma desigualdade (os diferentes estavam sendo tratados de modo igual, visto que peculiaridades relevantes não haviam sido tomadas em consideração à adequação do tratamento). Que a promessa de igualdade de condições presente no edital açambarcava uma futura e previsível contradição.
Em um contexto mais amplo, sempre na dimensão da inclusão social, que a deficiência é um conceito em evolução (não é estático, tal como concebido ao tempo do Decreto 3.298/99), o qual não pode ser encarado como uma espécie de ônus da pessoa (mais uma vez, contrastando ao Decreto 3.298/99). Nessa linha, a deficiência está no ambiente ou resulta dele, vale dizer, são os ambientes (sociais, culturais, laborais, físicos, virtuais etc.) que carecem de adaptação à diversidade humana (considerando a diversidade uma afirmação de riqueza humana e, pois, um novo alicerce à igualdade). Mas não só. Há um esforço isonômico à inclusão das pessoas com deficiência, o que passou pelo mencionado redimensionamento de seu conceito (não se restringindo a aspectos físicos ou de perda de funcionalidades), motivo pelo qual se fala em avaliação biopsicossocial (artigo 2º, Estatuto) e, sobretudo, da assunção de se tratar de um conceito em permanente alteração.
Noutros dizeres, a compreensão da deficiência não está circunscrita ao modelo médico ou clínico presente no Decreto 3.298/99, não sendo um objeto que se porta ("portador...") ou um conceito sem pessoa. Inconfundível à incapacidade, a deficiência deve ser encarada enquanto uma característica/funcionalidade a ser perquirida no caso concreto, pois resulta ou é agravada pela interação da pessoa (com deficiência) com o ambiente (Artigo 1, propósito, Convenção).
Em meio a ricas intervenções e esclarecimentos, algo em torno de duas horas foram consumidas à conclusão do julgamento dos mandados de segurança. Ao fim e ao cabo, duas votações acachapantes foram alcançadas no sentido da concessão da segurança. A Seção de Direito Público do TJ-PE acolheu os pedidos de decretação da nulidade dos atos que culminaram nas eliminações da candidata com deficiência do certame, reconhecendo, no primeiro deles, a ilegalidade da exigência da prova de capacidade física para a candidata com deficiência e, no segundo, a impossibilidade da junta médica impedir o acesso da candidata ao cargo pretendido. Em ambos os casos, em prestígio da inclusão social, reconhecendo a acessibilidade ao trabalho (artigos 2º e 34 do Estatuto da Pessoa com Deficiência; artigo 43, parágrafo 2º, Decreto 3.298/99).
Seriam mais dois casos em um universo mais vasto. Seriam mais dois, não fossem as circunstâncias que marcaram as proposituras. Mais dois, acaso não estivessem arrimadas na inclusão social. Dois, não fosse a sublime compreensão da inclusão social externada pelo colegiado, algo que, afirma-se com algum conhecimento de causa, não acontece todo dia.
Mateus Costa Pereira é professor da Unicap, diretor de Assuntos Institucionais da ABDPro e vice-presidente da Comissão de Defesa da Pessoa com Deficiência da OAB-PE.
Rafael Alves de Luna é mestrando em Direito pela Unicap.
Revista Consultor Jurídico, 10 de junho de 2017, 7h30
http://www.conjur.com.br/2017-jun-10/tj-pe-mostra-sensibilidade-inclusao-deficientes-via-concurso

O que menos temos hoje é segurança jurídica, diz criminalista Alberto Toron

"Estamos próximos de um Estado de Exceção. O que menos nós temos hoje é segurança jurídica." Essa é a visão do criminalista Alberto Zacharias Toron, conhecido por sua atuação em casos com grande repercussão nacional, como a Ação Penal 470, o processo do mensalão, a operação satiagraha e a operação “lava jato”.


Acostumado a defender clientes que muitas vezes são condenados pela opinião pública antes mesmo de serem julgados, Toron ressalta a importância do respeito ao direito de defesa, independentemente de quem seja o acusado.
"Todos têm direito de defesa, e quero dizer o seguinte: quanto mais a pessoa parece culpada, mais importante que ela tenha o direito de ser defendida", afirmou Toron, em entrevista ao jornalista Morris Kachani, do jornal O Estado de S. Paulo.
Como já havia feito em entrevista à ConJur, Toron não poupou críticas à "lava jato", que vão desde o uso exagerado das prisões preventivas para obter delações até o modo como a operação é conduzida.
"A investigação numa sociedade democrática tem limites. Eu não posso torturar alguém para saber a verdade. Não posso esconder as provas para encalacrar as pessoas. Então ou se respeita as regras do Estado Democrático para investigar ou teremos a barbárie. A 'lava jato', neste sentido, se aproximou muito do Estado policial, de um Estado que quer, a ferro e fogo, obter as verdades que almeja", afirmou.
Toron destaca, no entanto, que a operação também tem coisas boas. Entre elas aponta o fato de mostrar que não há pessoas inatingíveis, inalcançáveis, insuscetíveis de serem punidas.
"E eu acho que esse padrão da 'lava jato' é um padrão que veio pra ficar, ou seja, acho que o padrão da Justiça daqui pra frente é no sentido de que não há uma Justiça para pobres e outra para ricos, ela é rigorosa igualmente com uns e outros."
O criminalista também aponta como ponto positivo o fato de a operação ter exposto "as vísceras de uma estrutura promíscua que se estabeleceu entre o público e o privado".
Delações premiadas
Apesar de criticar à profusão de delações e o modo como elas se deram na "lava jato", Toron diz não ser contra a colaboração premiada. Para ele, esse instrumento serve tanto na investigação quanto na defesa. "Questionável do ponto de vista moral, mas de um ponto de vista jurídico ela é absolutamente legítima", explica.
A legitimidade jurídica, porém, não impede que algumas delações sejam questionadas, como a firmada entre o Ministério Público Federal e os irmãos Joesley e Wesley Batista, controladores da JBS. Toron se disse preocupado com esse acordo, que tem sido questionado, pois torna válida a máxima de que o crime compensa.
"A impressão que eu tenho é que os irmãos Batista receberam uma espécie de troféu por ter conseguido enlaçar o presidente da República e talvez também o senador Aécio Neves. Deram um presente pra eles, um troféu que é esse acordo magnífico, eu vejo assim", conta.
Na prática, o advogado enxerga que há dois pesos e duas medidas nos acordos firmados. "Por mais que se diga que cada caso é um caso, custa a entender porque os irmãos Batista conseguiram rapidamente se evadir dos gravames penais, dos gravames punitivos, e o Marcelo Odebrecht ainda os sofre."
Juiz inquisidor
Toron também avaliou as atuações do juiz Sergio Moro, responsável pela condução da "lava jato" em Curitiba, e do ministro do Supremo Edson Fachin, responsável pela operação no Supremo Tribunal Federal.
Para Toron, Moro é um juiz muito competente, focado, mas ao mesmo tempo um sujeito autoritário, prepotente. Para justificar, ele cita alguns episódios como quando conduziu coercitivamente o blogueiro Eduardo Guimarães para descobrir quem passa informações ao seu blog.
O recente depoimento de Lula também mostrou, para Toron, que o juiz Sergio Moro faz as vezes de juiz inquisidor, fazendo o papel de juiz e de órgão da acusação. "Com o juiz Sergio Moro, acho que não precisa de Ministério Público, porque ele faz as vezes de acusador e de juiz", disse.
Quanto ao ministro Edson Fachin, Toron avalia que ele tem se revelado muito restritivo em relação aos Habeas Corpus e também muito punitivo. O criminalista afirma que ficou assustado que o ministro tenha liberado suas conversas com o senador afastado Aécio Neves (PSDB-MG), que é seu cliente.
Toron também é advogado da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e diz que, apesar de terem posições políticas antagônicas, tanto o tucano quanto a petista compartilham da mesma dor.
"Os dois sofrem a mesma dor de se sentir, cada um a seu modo, atingido por mentiras, e não poucas vezes por vazamentos criminosos de conversas que deveriam permanecer sob sigilo e foram vazados. Nos dois casos há esse tipo de coisa. Além do sentimento de quebra do devido processo legal", conta.
Instigado a comparar a operação "lava jato" com a operação mãos limpas, na Itália, Toron diz que é preciso repensar o papel do sistema punitivo no Brasil. "O resultado da mãos limpas na Itália foi Berlusconi no poder. Eu não quero ter aqui o Bolsonaro no poder. Eu não quero uma política de terra arrasada depois da 'lava jato'."
Ele diz que é preciso refletir se o que queremos é seguir a linha do "fez tem que pagar", ainda que seja prejudicial ao país, ou se é preciso ter uma amplo entendimento, com reformas e novas exigências de governança. Para Toron, essa segunda linha é que deve ser seguida. "Ir pra frente e parar com as punições. Claramente digo isso."
O criminalista diz que o problema da corrupção no país não é algo cultural, mas um reflexo da forma como o país está estruturado. "A base material que propicia a corrupção é que tem que ser mexida, ser modificada. Punir pura e simplesmente não resolve o assunto."
Advocacia criminal
Com 36 anos de carreira e a experiência de defender clientes com grande exposição na mídia, Toron reúne ensinamentos sobre a advocacia criminal. Um deles é o conflito entre a defesa do político acusado nos meios de comunicação e seus advogados no Judiciário.
"Do ponto de vista midiático, convém que você fale, o quanto antes, e o mais que for possível. Do ponto de vista de uma defesa judicial, o sentido da coisa é inverso. E isso cria um conflito muito grande. Porque o político quer salvar a vida política dele, e o advogado está preocupado em evitar um processo, evitar uma condenação", ensina
Quanto à origem do dinheiro que paga seus honorários, Toron é direto: "Eu recebo dinheiro oficial, passo recibo". No caso específico de Aécio Neves, que foi gravado pelo empresário Joesley Batista pedindo R$ 2 milhões que seriam para pagar seus advogados na "lava jato", o criminalista disse ter sido surpreendido com essa afirmação, sem revelar o valor cobrado.
Toron explicou ainda que é mais fácil defender uma pessoa que você acha escrota do que defender uma pessoa que você passa a estabelecer relações afetivas.
"Quanto mais distante você é da pessoa, mais você passa a ter uma visão em perspectiva e passa a poder fazer uma incisão analítica do caso, muito mais bem-feita e apurada. Quando você, ao contrário, tem relações, quanto maiores são seus vínculos afetivos, mais fica difícil você separar as coisas com clareza, analiticamente falando, e fazer suas opções."
Ao analisar o mercado da advocacia criminal, o advogado conta que é o único setor que cresce no país. Mas isso não necessariamente significa uma coisa tão animadora quanto se imagina. Isso porque, explica, muitos clientes estão com a vida difícil e bens bloqueados, o que muitas vezes atrapalha o recebimento de honorários.
Ativismo judicial
Toron afirmou também que o Supremo Tribunal Federal vive uma crise de identidade, se arvorando na condição de legislador. Em sua opinião, se o Supremo continuar a tomar o lugar de outros agentes públicos, acabará virando uma ditadura do Judiciário.
Segundo o criminalista, esse ativismo judicial tem se dado não somente nas vezes que o Supremo preenche as lacunas da lei, como fez no caso do aborto. Para o advogado, isso também tem acontecido no campo da política, especialmente nessa discussão do foro por prerrogativa de função.
Revista Consultor Jurídico, 11 de junho de 2017, 12h12
http://www.conjur.com.br/2017-jun-11/temos-hoje-seguranca-juridica-criminalista

A Constituição não justifica o descumprimento das obrigações

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A Constituição de 1988 trouxe em seu longo texto o anseio de proteção dos direitos fundamentais e sociais. Tudo o que pudesse ser lembrado, nela foi introduzido, na legítima aspiração de uma sociedade democrática, justa e solidária. Muitos lutaram por isso e sentiram-se recompensados nos seus esforços, vendo incluídas na nossa Lei Maior as cláusulas de segurança do cidadão contra o Estado e eventuais maus governantes.
O passo seguinte foram os estudos sobre a Constituição. Livros, artigos, palestras, decisões judiciais, disseminados aos quatro ventos, sustentaram a inconstitucionalidade de tudo o que pudesse ameaçar algum parágrafo da Carta Magna. E nem era preciso que nela estivesse escrito. Poderia ser também um princípio implícito, muito embora isso seja algo tão pouco identificável quanto um espírito que acompanha o corpo.
Passados quase 30 anos, vê-se que os resultados não são animadores. A corrupção tornou-se endêmica, vários estados entraram em estado de insolvência, os serviços públicos pioraram, e a segurança pública não é mais um problema das grandes cidades, mas de todas, inclusive de capitais outrora tranquilas.
No âmbito do sistema de Justiça, se houvesse um Prêmio Nobel às avessas, seríamos fortes candidatos à primeira classificação, quem sabe com a distinção summa cum laude.
Na avaliação, os examinadores diriam, de boca cheia, que somos o único com quatro instâncias, levando um processo cível cerca de 15 anos para terminar, podendo levar outros 15 na fase da execução. E se surgisse alguma dúvida no prêmio, porque um outro país também estivesse em situação semelhante, um examinador diria que, no Brasil, um deputado federal que agride alguém no seu condomínio responderia a ação penal no Supremo Tribunal Federal e isso lhe daria 99% de chance de alcançar a prescrição. Assunto encerrado.
Mas, mesmo que seja raro, ainda há pessoas que não se conformam com tal estado de coisas e tentam dar efetividade ao sistema. Talvez até por uma razão existencial, porque ninguém, no seu íntimo, gosta de saber que seu trabalho é inútil. Nesta senda, alguns que dispõem de meios de melhorar o sistema não se deixam dominar pela apatia ou pelo pessimismo e, mesmo remando contra a correnteza, empenham-se ao extremo.
A juíza de Direito Andrea Ferraz Musa, da 2ª Vara Cível do Foro Regional de Pinheiros, em São Paulo, certeza é uma delas. Em uma execução proposta em 2013, observando que “todas as medidas executivas cabíveis foram tomadas, sendo que o executado não paga a dívida, não indica bens à penhora, não faz proposta de acordo e sequer cumpre de forma adequada as ordens judiciais, frustrando a execução”, determinou a apreensão de sua carteira de habilitação, o recolhimento de seu passaporte e o cancelamento de seus cartões de crédito[1].
Tais medidas foram tomadas com base no artigo 139 do Código de Processo Civil, que no seu inciso IV dispõe caber ao juiz determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária.
Fácil é ver que referido dispositivo visa dar efetividade à Justiça e que deve ser comemorado como uma das boas iniciativas do novo CPC. E mais fácil anda é ver que na sua aplicação não se poderá ferir a Constituição Federal. Por exemplo, determinando a prisão civil do devedor ou admitindo meios de cobrança constrangedores, como a colocação de um carro de som na frente da residência do devedor a pedir-lhe, em alto volume, que quite sua dívida.
Entretanto, a novidade tem suscitado dúvidas no Tribunal de Justiça de São Paulo. No caso da decisão ora comentada, poucos dias depois o desembargador Marcos Ramos, da 30ª Câmara de Direito Privado, concedeu liminar suspendendo a decisão de primeira instância, porque o artigo 5º, inciso XV, consagra o direito e de ir e vir e o artigo 8º do novo CPC protege a dignidade humana e prestigia o princípio da proporcionalidade.
Joice Bacelo comentou o assunto no Valor Econômico, registrando a tendência da jurisprudência da corte em negar tais medidas coercitivas, mas registrando que, em caso de ação proposta pelo Ministério Público contra servidor por improbidade administrativa, o tribunal paulista manteve as limitações decretadas pelo juiz de primeira instância[2].
A primeira observação a respeito é a de que estamos, uma vez mais, entre o velho e o novo Direito. Tal qual o Direito Penal, que tem tipos penais dos tempos em que Elvis Presley cantava nas festinhas de sua escola em Tupelo, o processo civil também tem regras dos tempos em que o Brasil era o grande campeão de futebol. No entanto, qualquer um pode ver, estamos em outro mundo, e neste, entre as múltiplas novidades, está a mudança de valores. A antiga frase, atribuindo a um moço ser “pobre, mas honesto”, portanto de valor, tão comum no passado, soa hoje quase como uma ofensa. Se mudaram os costumes, tem que mudar o Direito.
A segunda observação diz respeito à decisão do desembargador relator no caso em estudo. Invocou-se afronta ao direito de ir e vir com a apreensão da CNH e do passaporte. Ora, a apreensão da CNH é sanção administrativa aplicada diariamente e a restrição é apenas quanto ao uso de automóvel. Portanto, salvo a hipótese excepcional do uso do veículo ser necessário para o exercício da profissão (por exemplo, vendedor que faz entregas), nada mais razoável que impedir alguém, propositadamente inadimplente, de dirigir.
Quanto ao passaporte apreendido, diariamente, em ações penais de crimes financeiros, os magistrados determinam a entrega de tal documento. E nenhum tribunal concluiu pela inconstitucionalidade de tal medida. Apreensão de cartão de crédito não impede a locomoção. E quanto à dignidade humana, esse é o princípio “abre-te-sésamo” do Direito, porque cabe em qualquer situação. Pode ser invocado para tudo e para todos. Credores também têm dignidade. Sócios de pessoas jurídicas também. Portanto, sua invocação deve demonstrar, no caso concreto, por que e como foi ferido, não bastando uma frase aleatória para que deva ser reconhecido a favor de alguém.
Terceira observação, o estímulo judicial ao descumprimento de obrigações. Disciplina, hierarquia e respeito são valores aos quais não se dá mais importância. Para ficar só em um exemplo, citam-se diretoras de escolas públicas, hoje sujeitas a ações judiciais caso tomem qualquer medida disciplinar ou até a sofrerem represálias ou ameaças a seus familiares. Pois bem, estimular-se devedores que colocam seus bens em nome de outros, não pagam de forma alguma, mas postam no Facebook viagens de navio, exibem na garagem vistosos veículos ou frequentam ostensivamente caros restaurantes, é estimular tal estado de coisas.
A quarta observação é a contradição entre a aplicação diferente da norma quando a dívida for de um particular ou quando o caso for de improbidade administrativa. Dir-se-á que, neste, o interesse é público e, naquele, privado. Ocorre que, além do legítimo interesse do credor privado em querer receber o que lhe cabe, inclusive porque é do pagamento de seus créditos que terá capital para sustentar seu negócio e seus funcionários, há, sim, um interesse público em que as dívidas e os compromissos sejam honrados. Uma sociedade só se desenvolve se a maioria de sua população cumprir as obrigações assumidas.
Pelo que foi exposto, conclui-se que o artigo 139, IV, do CPC é um valoroso instrumento de efetividade da Justiça. Evidentemente, deve ser aplicado com cautelas e analisado o caso concreto, com expressa menção a datas e fatos que mostram a necessidade das medidas extremas. Não é adequado para os que devem por circunstâncias alheias às suas vontades e tentam acordos. Mas, em caso de inadimplentes habituais e que se valem do sistema para frustrar cobranças, evidentemente deve ser utilizado.
Na verdade, o Judiciário encontra-se em um momento histórico em que terá que optar entre uma efetividade mínima ou aceitar que outras instâncias assumam o espaço de poder que lhe foi destinado. Por ora, ele vem sofrendo revezes seguidos, seja pela transferência de julgamentos de questões importantes para tribunais arbitrais, seja pela justiça informal aplicada por líderes do tráfico de drogas em regiões de maior pobreza. Se reagir a tempo, será um poder respeitado. Se ficar inerte, seu destino será cada vez mais opaco.


[1] Processo 4001386-13.2013.8.26.0011 - Execução de Título Extrajudicial, Grand Brasil Litoral Veículos e Peças Ltda. contra M. A. S.
[2] TS-SP suspende decisões de bloqueio de passaporte e CNH de devedores. In: Valor Econômico, 24/1/2017: http://www.valor.com.br/legislacao/4845168/tj-sp-suspende-decisoes-de-bloqueio-de-passaporte-e-cnh-de-devedores, acesso 8/6/2017.
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.
Revista Consultor Jurídico, 11 de junho de 2017, 8h00
http://www.conjur.com.br/2017-jun-11/segunda-leitura-constituicao-nao-justifica-descumprimento-obrigacoes