quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Como os deficientes devem ser acolhidos por instituições de ensino particular

Por 

O recente julgamento improcedente pelo Supremo Tribunal Federal da Ação de Inconstitucionalidade 5.357, proposta pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) contra dispositivos da Lei 13.146/15, suscita reflexões acerca do equilíbrio contratual propugnado pelo Direito Civil, incluindo-se as relações de consumo. Tendo restada assegurada a prestação de serviços educacionais por parte das entidades privadas para o aluno com deficiência[1], sem a cobrança de valores adicionais, de qualquer natureza, na matrícula, mensalidade ou anuidade, despesas serão inquestionavelmente necessárias. A proteção da pessoa deficiente encontra espeque no arcabouço legislativo pátrio[2], bem como na Constituição Federal, mas também estão amparadas por normas jurídicas brasileiras a livre iniciativa no campo educacional e a sua regular manutenção.
 O acesso dos alunos deficientes na seara educacional privada, em condições de igualdade, conforme disposto pelo artigo 1o, da dita Lei,  pressupõe a concretização de uma série de providências por parte dos estabelecimentos de ensino. O arigo 28, incisos I e II, do Estatuto da pessoa com deficiência, determina que os sistemas educacionais deverão ser sempre inclusivos em todos os níveis e modalidades, disponibilizando serviços e recursos que eliminem as barreiras e promovam a inclusão plena. O aprimoramento constante para a facilitação do ingresso e da permanência destes discentes é outra exigência legal em prol de  se alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, em conformidade com as suas características, interesses e necessidades de aprendizagem[3].
Para a inserção do aluno deficiente, a entidade particular terá que providenciar os recursos intelectuais, humanos e materiais necessários para que a sua inclusão social e o exercício da cidadania sejam concretizados de forma efetiva. No que tange aos primeiros recursos, urge que seja elaborado projeto pedagógico que institucionalize o atendimento educacional especializado, assim como os demais serviços e adaptações razoáveis, para atender às características dos estudantes com deficiência e garantir, em condições de igualdade, o seu pleno acesso ao currículo, promovendo a conquista e o exercício de sua autonomia[4]Quanto aos recursos humanos, o quadro de pessoal da instituição de ensino terá que contar com a presença de docentes, tradutores, intérpretes de Libras e de pessoal de apoio que possam empreender planejamento educacional especializado, adotando-se medidas individualizadas e coletivas para propiciar o desenvolvimento acadêmico e social dos estudantes com deficiência. Os recursos materiais envolvem a acessibilidade para todos, os instrumentos e equipamentos didáticos, incluindo-se a tecnologia assistiva, o ensino da Libras e o Sistema Braille[5] 
Dúvidas não pairam que as instituições de ensino necessitarão fazer investimentos complementares, que não serão exíguos, para o pleno e eficiente cumprimento das estipulações legais acima aludidas, sendo-lhes vedada a exigência de valores adicionais para os responsáveis legais pela pessoa com deficiência. Crucial asseverar que o parágrafo único do artigo 27 da Lei 13.146/2005 considera que a criança, o adolescente, a mulher e o idoso, com deficiência, são especialmente vulneráveis. Ademais, consoante estatui o artigo 5º do Estatuto em epígrafe, a pessoa com deficiência deverá ser protegida de toda forma de negligência, discriminação, opressão e tratamento desumano ou degradante. Nessa senda, os proprietários e gestores das entidades educacionais precisam estar bastante atentos para que não criem obstáculos infundados para o recebimento de alunos com deficiência e sejam responsabilizados judicialmente.
Propugna-se, assim, por uma análise econômica da problemática em apreço[6], reconhecendo-se que os estudantes com deficiência devem ser recepcionados pelas instituições de ensino sem imbróglios e empecilhos, mas que os custos sejam socializados entre os fornecedores dos serviços educacionais, demais usuários do sistema de ensino e o poder público. Ressalta-se que o parágrafo único do artigo 27 da multicitada Lei preconiza que constitui dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência. Para a manutenção da estabilidade econômica das entidades educacionais particulares diante da presença dos estudantes com deficiência, que devem ser protegidos como consumidores, o fornecedor arcará com o ônus previsto em sede legal. No entanto, dentro da perspectiva financeira, a repartição de parte dos gastos denota-se necessária, tendo as instituições de ensino que onerar um pouco mais as contraprestações pecuniárias, para se manterem saudáveis e em atividade. O poder público poderá ainda instituir incentivos para que as escolas, que recebam maior número de acadêmicos deficientes, possam usufruir de benesses fiscais, estimulando-as a prosseguir nesta caminhada.
Interessante rememorar a mitologia grega sobre Hefestos, filho de Zeus e Hera, que tinha uma deficiência física nunca aceita pelos próprios pais e pelo povo, razão pela qual fora atirado de um penhasco, sendo, porém, recolhido por Tetis e Eurinome, filhas do Oceano, que lhe deram guarida na ilha de Lemos. Nesse local, trabalhou, tornou-se poderoso artesão e, após, retornou ao Olimpo, casando-se com Afrodite e assumindo definitivamente o seu local entre os deuses[7]. Que nos sirva de incentivo as lições mitológicas e que sigamos as instruções de Diderot que, desde 1749, na “Carta sobre os Cegos para o uso dos que os vêem”, defendia o respeito ao direito educacional dos deficientes, como dito acima, através da assunção dos custos necessários pelas escolas, colaboração dos demais usuários dos serviços e do governo, com esteio em uma perspectiva econômica crítica! 
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[1] De acordo com o art. 2º da Lei 13.146/15, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
[2] A  Lei 7853/89, alterada pela Lei 8.028/90 e  regulamentada pelo Decreto 3.298/90, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. O Decreto 3956/01 promulgou a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência. (Convenção da Guatemala). A  Lei 10216/2001 versa sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.
[3] Assim, dispõe o caput do art. 27 da Lei 13.146/15.
[4] CONSULTAR: Savelsbergh, G. J.; Netelenbos, J. B.; Whiting, H. T. (1991). Auditory perception and the control of spatially coordinated action of deaf and hearing children. The Journal of Child Psychology and Psychiatry. 32,489-500. Hindley, P. A.; Hill, D. P.; McGuigan, S.; Kitson, N. (1994). Psychiatric disorder in deaf and hearing impaired children and young people: A prevalence study. The Journal of Child Psychology and Psychiatry. 35 ,917 - 934. Farrugia, D. L. (1986). An Adlerian perspective for understanding deafness. Individual Psychology Journal of Adlerian Theory: Research and Practice. 42. 201-213. 
[5]  Cf: MANTOAN, Maria Teresa Eglér. A integração de pessoas com deficiência. Contribuições para uma reflexão sobre o tema. São Paulo: Memnon, 2008. ______. Caminhos pedagógicos da inclusão. São Paulo: Memnon, 2009. ______.Inclusão escolar: o que é? por quê? como fazer? São Paulo: Moderna, 2010. BRYAN, Jenny. Conversando sobre Deficiências. São Paulo: Moderna, 2010. WERNECK, Cláudia. Sociedade Inclusiva: Quem Cabe no seu Todos?  São Paulo: WVA, 2009.  
[6] Consultar: COASE, Ronald. The Problem of Social Cost. The Journal of Law and Economics v. 3, n.1 (1960). CALABRESI, Guido. Some Thoughts on Risk Distribution and the Law of Torts, Yale Law Journal. PARISI, Francesco e ROWLEY, Charles K. The Origins of Law and Economics – Essays by the Founding Fathers. Mass.: The Locke Institute, 2005, MERCURO, Nicholas e MEDEMA, Steven G. Economics and the Law – From Posner to Post-Modernism and Beyond. Princeton University Press, 2006.
[7] MARCH, Jenny. Mitos Clássicos. São Paulo: Civilização, 2000.
Joseane Suzart Lopes da Silva é promotora de Justiça do Consumidor do MP-BA. Professora Adjunta de Direito das Relações de Consumo da FDUFBA. Doutora em Direito pela UFBA. Diretora do Brasilcon para a Região Nordeste. Coordenadora Científica do Projeto de Extensão ABDECON/FDUFBA.
Revista Consultor Jurídico, 21 de novembro de 2016, 10h36
http://www.conjur.com.br/2016-nov-21/direito-civil-atual-deficientes-acolhidos-instituicoes-ensino-particular

O direito de concorrência na união estável e no casamento

Por 
Senhores ministros,
Gostaria de fazer-lhes uma colocação. Mais do que isso, um desabafo: vossas excelências acabaram de me subtrair o direito à felicidade.
De primeiro esclareço ser absolutamente favorável à equiparação levada a efeito entre casamento e união estável (RE 878.694, rel. min. Roberto Barroso, j. 10/5/2017). Em face da mesma e especial proteção assegurada pela Constituição da República às entidades familiares, o princípio da igualdade não permite mesmo tratamento diferenciado entre casamento e união estável. Desse modo, quando morre um dos cônjuges ou um dos companheiros, descabido que a parte da herança que o sobrevivente irá receber, a título de concorrência sucessória, seja calculada de modo diverso, exclusivamente em razão da forma de constituição do vínculo de convívio.
Os integrantes da entidade familiar não podem ter direitos diferenciados pelo só fato de terem comparecido ao cartório civil ou ao tabelionato. Tanto o casamento como a união estável geram iguais efeitos patrimoniais que precisam ser solvidos quando da sua extinção.
De outro lado, o fato de o objeto da ação dizer com o direito de concorrência sucessória não limita o reconhecimento da inconstitucionalidade apenas com relação a esse instituto. Seus efeitos se alastram a toda a desequiparação por acaso existente no Direito Sucessório, das Famílias, Previdenciários etc.
Essa interpretação abrangente, ao contrário do que muitos sustentam, não afronta o princípio da liberdade nem se confronta com o respeito à autonomia da vontade. As pessoas são livres para ficarem só ou viverem com alguém. No momento que optam em ter alguém para chamar de seu, constituem uma entidade familiar que gera direitos e obrigações, independente da forma de sua constituição: casamento ou união estável.
Até aqui, nada a objetar.
O grande equívoco perpetrado no julgamento diz com a eleição da base de cálculo para apurar o direito de concorrência. Desde a entrada em vigor do Código Civil, quando surgiu essa novidade, questiona a doutrina o fato de o direito estar condicionado ao regime de bens do casamento. Também até hoje causa surpresa a circunstância de a apuração do direito concorrencial eleger bases de cálculo diferentes: quando se trata de casamento, o cálculo é feito sobre os bens particulares do falecido. Na união estável, sobre os bens adquiridos onerosamente durante a união.
A distinção, além de injustificada, traz consequências terríveis. Ao conceder ao viúvo fração dos bens adquiridos pelo falecido antes do casamento, por herança ou por doação, à claras enseja enriquecimento sem causa do cônjuge. Atribui a alguém patrimônio que não ajudou a amealhar. De outro lado, também provoca justificável desconforto se os herdeiros não são filhos do viúvo, só do falecido, realidade cada vez mais frequente. Terão eles maior dificuldade em aceitar o novo casamento dos pais, pois terão que repartir os bens que pertenciam exclusivamente ao genitor. Muitas vezes, até ajudaram a amealhar, fazendo sacrifícios.
Por isso, ninguém duvida que o melhor critério foi o adotado na união estável, ao determinar que o direito de concorrência seja calculado sobre o patrimônio adquirido onerosamente, depois da união, pressupondo esforço comum. Os bens particulares dos companheiros pertencerão exclusivamente aos seus filhos.
Ainda assim — e talvez por um resquício da mais-valia sempre atribuída ao casamento, desarrazoada e equivocadamente, o Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer como inconstitucional a desequiparação, elegeu como modelo a forma de cálculo prevista para o casamento.
E esta, senhores ministros, é a razão do meu dilema.
Explico: sou divorciada, tenho três filhos e, com muito trabalho, consegui amealhar razoável patrimônio. Agora, depois dos filhos criados, acabei me apaixonando. Mas, pelo jeito, não poderei casar nem viver em união estável. Em qualquer dessas hipóteses, no caso do meu falecimento, o meu par ficará com um quarto do que amealhei durante toda a minha vida?
Não teria qualquer problema em repartir eventuais bens que viesse a adquirir depois da união. Nada mais justo. E já que se está falando em justiça: é justo privar os meus filhos de parte do que adquiri até agora? Até porque o que ficar com o companheiro sobrevivente não retornará para eles que fizeram tanto esforço para ter o que temos.
Senhores ministros, desculpa, mas vossas excelências estão me proibindo de amar, de ser feliz.
Maria Berenice Dias é advogada especializada em Direito de Família, das Sucessões e Homoafetivo, além de vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam).
Revista Consultor Jurídico, 16 de julho de 2017, 10h46
http://www.conjur.com.br/2017-jul-16/direito-concorrencia-uniao-estavel-casamento