domingo, 3 de setembro de 2017

O executado não quer pagar e está se valendo de artifícios. O que fazer?

Publicado por Salomão Viana

Meus queridos jusbrasileiros, é muito comum que processos de execução por quantia certa sejam frustrados em razão da adoção, pelo executado, de comportamento escorregadio, contrário ao Direito, com o objetivo de evitar o cumprimento da obrigação.

Muitas vezes, não se consegue sequer encontrar o executado. Em outras situações, o problema está na identificação de bens integrantes do seu patrimônio, uma vez que o executado passa a evitar manter dinheiro em instituições bancárias, tornando, com isso, inútil o uso do sistema “Bacenjud”, que permite a penhora de dinheiro mantido em depósito ou em aplicações financeiras (CPC, art. 854 e seus §§).

A seguir, estão algumas sugestões de medidas que podem ser adotadas pelo exequente para que o seu processo de execução seja efetivo.

Primeiro quadro adverso: o executado não é encontrado.

Diante de uma situação dessa, o exequente deve demonstrar ao juiz que não dispõe das informações necessárias e que elas podem ser obtidas pelos diversos meios postos à disposição do Poder Judiciário. Tais meios, por óbvio, vão para muito além de meras diligências realizadas por oficial de justiça, já que o Poder Judiciário mantém, com outros órgãos públicos e até com pessoas jurídicas de direito privado, como empresas de fornecimento de energia elétrica, convênios que lhe permitem, com rapidez, valendo-se de simples consultas ao sistema informatizado, ter acesso a dados que, sem violação à privacidade do executado, revelam, em boa parte das vezes, endereços em que pode ele ser encontrado.

Neste ponto, jamais se pode perder de vista que os reflexos, no ambiente intraprocessual, do Estado Democrático de Direito implica a necessária cooperação entre todos os sujeitos do processo para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva (CPC, art. ). Por isto, o juiz deve cooperar com todos os demais sujeitos, dentre os quais inclui-se, por óbvio, o exequente.

Quanto a isso, os textos do § 1º do art. 319 e do inciso III do art. 772 do CPCsão claros: caso o exequente não disponha de tais informações – bem como de outras relativas à correta identificação e à qualificação do executado – poderá requerer ao juiz a realização de diligências necessárias à sua obtenção.

Por fim, cumpre lembrar que a citação por edital (CPC, arts. 256, II, e 830, § 2º) e a citação por mandado com hora certa (CPC, arts. 252/254 e 830, § 1º) são potencialmente geradoras de uma série de problemas, desde o dispêndio de tempo e, no caso do edital, o gasto de dinheiro, até incidentes processuais decorrentes, por exemplo, da necessidade de nomear curador especial (CPC, art. 72, II). Por isto, a citação com hora certa somente deve ser realizada e a citação por edital somente deve ser requerida se não houver outro caminho possível para a efetiva localização do executado;

Segunda situação problemática: não são encontrados bens pertencentes ao executado.
Nesse caso, são diversos os caminhos que podem ser trilhados, isolada ou conjuntamente:

1º) Ordem para que terceiros forneçam informações e/ou documentos reveladores da existência de bens. O exequente pode indicar ao juiz sujeitos que detenham informações em geral, relacionadas ao objeto da execução, bem como documentos, e requerer que o magistrado determine que as informações e/ou documentos sejam fornecidos por tais sujeitos (CPC, arts. 772, III, e 773). Se as informações e/ou documentos fornecidos forem sigilosos, tal como se dá com a declaração de rendimentos prestada à Secretaria da Receita Federal, o juiz deverá ordenar que o processo passe a tramitar em segredo de justiça, de modo a preservar a confidencialidade dos dados (CPC, art. 773, parágrafo único). Entre os sujeitos que podem ser indicados para fornecer informações e/ou documentos estão os seguintes: (a) Secretaria da Receita Federal, para apresentar cópias das declarações de rendimentos do executado nos últimos exercícios, o que pode ser obtido mediante o acionamento do sistema denominado “Infojud”, de funcionamento similar ao “Bacenjud”; (b) Detran, para indicar se há veículos em nome do executado (para tanto, há um sistema informatizado denominado “Renajud”, de funcionamento parecido com o do sistema “Bacenjud”); (c)Junta Comercial, para noticiar se o executado é sócio de alguma pessoa jurídica; (d) Cartórios de Registro de Imóveis, para fornecer informações sobre a existência de bens imóveis de propriedade do executado ou sobre os quais detenha ele direito real (é este, dentre outros, o objetivo da criação, pelo CNJ, do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis – SREI); (e) Capitania dos Portos, para informar se o executado possui embarcações em seu nome;ANACC, para que diga se há aeronave registrada em nome do executado; e (g) Comissão de Valores Mobiliários – CVM, para que informe se o executado é titular de ações de sociedades anônimas;

2º) – Ordem para que o próprio executado indique bens seus. O exequente pode requerer ao juiz que determine a intimação do próprio executado para indicar quais são e onde estão os bens integrantes do seu patrimônio sujeitos à penhora, bem como os valores de tais bens, exibindo a prova da propriedade e certidão negativa de ônus, se for o caso (CPC, art. 774, V). Se o executado não cumprir a determinação judicial, estará praticando ato atentatório à dignidade da justiça (CPC, art. 774, V), ficando sujeito a multa, que será revertida em proveito do exequente (CPC, art. 774, parágrafo único), além das sanções inerentes à prática de ato atentatório à dignidade da justiça (CPC, art. 77, IV, e seu § 2º);

3º) – Determinação de que o executado compareça pessoalmente frente ao juiz. O exequente pode requerer ao juiz que ordene o comparecimento das partes (executado e exequente) a uma audiência para tanto designada, ocasião em que o magistrado poderá determinar, na própria audiência, pessoalmente (o que aumenta, sob o aspecto psicológico, a carga de responsabilidade do devedor), que o executado diga quais são e onde estão os bens integrantes do seu patrimônio sujeitos à penhora, bem como os valores de tais bens, exibindo a prova da propriedade e certidão negativa de ônus, se for o caso (CPC, arts. 772, I. e 774, V). Ainda na audiência, o juiz poderá advertir o executado para a circunstância de que o não cumprimento da determinação judicial implica prática de ato atentatório à dignidade da justiça (CPC, art. 774, V), com sujeição a multa, que será revertida em proveito do exequente (CPC, art. 774, parágrafo único), além das demais sanções decorrentes da prática de ato atentatório à dignidade da justiça (CPC, art. 77, IV, e seu § 2º).

4º) – Inclusão do nome do executado em cadastros de inadimplentes. O exequente pode requerer ao juiz que determine que o nome do executado seja incluído em cadastros de inadimplentes, a exemplo do SPC, do SERASA e do CADIN (CPC, art. 782, §§ 3º a 5º);

5º) – Averbação da existência da execução junto a órgão de registro de bem pertencente ao executado. O exequente pode obter, junto ao Cartório ou à Secretaria da Vara em que o processo de execução está em curso, certidão de que a execução foi admitida pelo juiz e, de posse da certidão, promover a averbação da existência da execução junto ao registro de imóvel pertencente ao executado, junto ao Detran, quanto a veículo integrante do patrimônio do executado, ou junto a qualquer outro órgão que mantenha registro de bem de que seja proprietário o executado, a exemplo da Junta Comercial (CPC, art. 828, caput). A certidão deverá indicar o valor da causa e a identificação das partes (CPC, art. 828, caput) e o exequente deve ficar atento para cumprir os deveres a que se referem os parágrafos do art. 828, de modo a evitar danos indevidos para o executado;

6º) – Realização de protesto. Tratando-se de obrigação consubstanciada em título executivo judicial, depois de transcorrido o prazo para pagamento voluntário, o exequente pode levar a protesto a decisão judicial transitada em julgado, tal como se faz com uma duplicata ou uma nota promissória que não tenham sido pagas (CPC, art. 517 e seus §§). Se o caso for de débito alimentício, o protesto não depende do trânsito em julgado da decisão judicial e pode ser ordenado de ofício pelo juiz (CPC, art. 528, § 1º);

7º) – Requisição de força policial. O exequente, diante de situações em que o executado está opondo resistências, como fechar as portas do imóvel para evitar a realização de penhora, pode requerer ao juiz que requisite força policial, podendo, daí, resultar apuração criminal relativamente à conduta do executado pela eventual prática dos delitos de desobediência ou de resistência (CPC, arts. 782, § 2º, e 846 e seus §§);

8º) – Advertência ao executado. O exequente pode se limitar a requerer ao juiz que advirta o executado de que o seu comportamento constitui ato atentatório à dignidade da justiça. Dentre os comportamentos que ensejam isso, na execução, estão a fraude à execução; a oposição maliciosa à execução, por meio de ardis e meios artificiosos; a criação de dificuldades ou de embaraços à realização da penhora; e a resistência injustificada ao cumprimento de ordens judiciais (CPC, arts. 772, II, e 774, I a IV). Se o executado persistir com a conduta, ficará sujeito a multa, que será revertida em proveito do exequente (CPC, art. 774, parágrafo único), além das sanções inerentes à prática de ato atentatório à dignidade da justiça (CPC, art. 77, IV, e seu § 2º);

9º) – Adoção de medidas executivas atípicas. Diante do fato de o CPCconsagrar a chamada atipicidade dos meios executivos, o exequente – sugerindo, ou não, ele mesmo, as medidas que entender adequadas – pode requerer ao juiz que, valendo-se da sua criatividade (sempre balizada pelos postulados da razoabilidade e da proporcionalidade), determine todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial. A adoção de tais medidas é possível em qualquer situação de prática de atos executivos e em qualquer modalidade de execução, inclusive nos processos que tenham por objeto prestação pecuniária (CPC, art. 139, IV).

Com mais este pingo de processo, espero poder colaborar para que processos de execução possam alcançar a efetividade que deles se espera.

Salomão Viana - Baiano, graduado em Medicina e jurista apaixonado. Foi advogado e Juiz de Direito. É Juiz Federal e professor de Direito Processual Civil na UFBA e no Brasil Jurídico - Ensino de Alta Performance.

A síndrome de procusto: o perigoso discurso da “disciplina judiciária”.

Segundo a mitologia grega, Procusto era um bandido conhecido como “o esticador”. Ele mantinha, em sua casa, uma cama de ferro com o seu exato tamanho, para a qual convidava todos os viajantes a se deitarem. Se os hóspedes fossem maiores do que a cama, o perverso anfitrião lhes amputava o excesso. Se fossem menores, eram esticados até atingirem o comprimento suficiente. Nenhuma diferença era tolerada.

A lenda de Procusto ilustra o perigo que se esconde por trás do sedutor discurso da “disciplina judiciária”, que busca impor, de forma pouco democrática, a “uniformização da jurisprudência” e a “padronização de procedimentos”, sem tolerar divergências e de modo a sufocar a autonomia dos juízes de primeira instância, em prejuízo do cidadão, que é o destinatário final da atividade jurisdicional.

Em nome de uma suposta “segurança jurídica”, a banalização das súmulas vinculantes e dos incidentes de uniformização pretende padronizar, compulsoriamente, todas as decisões judiciais, de modo a impedir interpretações divergentes, com o declarado propósito de “dar harmonia ao sistema” e reduzir o número de recursos.

Entretanto, é curioso notar que essa mesma retórica de SEGURANÇA E DISCIPLINA é adotada por todas as instituições autoritárias, que partem de ideias aparentemente inofensivas e até defensáveis: OBEDIÊNCIA e CONFORMIDADE. Esses conceitos são indispensáveis ao bom funcionamento de qualquer grupo social e, portanto, são facilmente assimilados por todos os seus integrantes, sem maiores questionamentos.

Porém, quando esses valores, em princípio virtuosos, passam a ser usados como instrumentos de dominação e submissão, exercendo-se o poder hierárquico de forma arbitrária para sufocar as divergências e reprimir a subjetividade dos indivíduos, estamos diante de um sistema fadado ao totalitarismo e à autofagia.

“Obediência” e “Conformidade” são conceitos essenciais para compreendermos por que o velho discurso de “Disciplina” e “Ordem” é tão atraente para a maioria das pessoas e, ao mesmo tempo, uma armadilha perigosa para a sociedade, podendo levar ao colapso das instituições e a degradação do ser humano. Sem “obediência” e “conformidade” não existiriam os grandes holocaustos, os genocídios, as inquisições, os atentados terroristas, enfim, a chamada “banalização do mal”.

Comecemos falando de “OBEDIÊNCIA”. Será mesmo uma virtude absoluta, como insistem os defensores da chamada “disciplina judiciária”? Em nome da obediência às Leis e às Instituições, sempre em nome da Ordem e da Disciplina, foram cometidas as maiores atrocidades da história da humanidade.

Por exemplo, o que leva uma pessoa que se diz “cidadão de bem” a obedecer cegamente uma ordem absurda, que pode resultar no sofrimento ou na morte de outro ser humano? No aclamado romance “O Leitor”, de Bernhard Schlink, temos um diálogo muito eloquente que nos ajuda a refletir sobre essa tormentosa questão. Na Alemanha do pós-guerra, Hanna, guarda de um campo de concentração nazista, responde às perguntas do magistrado que a interroga:

Juiz – Por que vocês não desobedeceram à ordem?
Hanna - Obviamente, não podíamos. Éramos guardas. Nossa missão era guardar os prisioneiros. Não podíamos deixá-los fugir.
Juiz - Entendo. Se escapassem, seriam culpadas, acusadas, ou até executadas.
Hanna - Não! Se abríssemos as portas, seria um caos. Como iríamos restaurar a ordem? Aconteceu rápido. Estava nevando, haviam bombas, haviam chamas, por toda a vila. Então começaram os gritos. Ficava pior e pior. Todos iriam correr, não podíamos deixá-los escaparem. Não podíamos. Éramos responsáveis por eles!
Juiz - Então, não sabia o que estava acontecendo? Não sabia e fez uma escolha. Deixou todos morrerem, ao invés de arriscar deixá-los escapar.
(O leitor, 2008, 69´56´´ - Bernhard Schlink)

A resposta de Hanna está longe de ser uma ficção. A realidade é ainda mais cruel. “Estávamos apenas cumprindo a lei” ou “seguindo ordens superiores” também foram as principais alegações dos oficiais e juízes alemães julgados em Nuremberg por terem colaborado com o “terceiro reich”, como se o estado de “obediência” fosse um álibi moral capaz de lhes eximir de toda a culpa. Rudolf Höss, comandante de Auschwitz, afirmava não entender porque era estava sendo condenado se era apenas um cumpridor de ordens. Ele dizia“: “Não entendo o que quer dizer com ficar perturbado com estas coisas porque eu, pessoalmente, não assassinei ninguém. Era apenas o diretor do programa de extermínio de Auschwitz, um funcionário público cumprindo com o seu dever.”

Os tripulantes do Enola Gay, responsáveis por lançarem as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, diziam não se sentir culpados pelas milhares de vítimas que foram queimadas vivas, muitas delas mulheres, idosos e crianças. Afirmavam que eles apenas apertaram o botão, mas quem tomou a decisão foi o Presidente Harry Truman. Mais uma vez, os executores alegavam que apenas seguiram ordens que não poderiam desobedecer.

Alegação semelhante foi utilizada pelos policiais responsáveis pelo Massacre de Sharpeville – Africa de Sul, que, em 21 de Março de 1960, no auge da política do Apartheid, quando reprimiram uma manifestação pacífica de um movimento pelo direitos da maioria negra, provocando a morte de 69 pessoas e ferindo outras 180. Levados ao Tribunal, os assassinos usaram, em sua defesa o argumento de que somente obedeceram ordens superiores e que estavam cumprindo a lei. Por sinal, o mesmo argumento utilizado pelos réus nos massacres do Carandiru e em Eldorado de Carajás. Todos, sem exceção, eram cumpridores de ordens, sempre em nome da Lei e da Disciplina.

Esse “estado de obediência” parece funcionar como um anestésico moral que silencia o senso crítico e entorpece a consciência para que o executor não tenha que lidar com as consequências das suas escolhas, eximindo-se de sua responsabilidade individual. Lembra o adestramento pavloviano que transformava seres humanos em autômatos irracionais.

Stanley Milgram (1933-1984), psicólogo americano da Universidade de Yale, conduziu uma série de experimentos sobre conformismo e obediência à autoridade. De descendência judaica, seu objetivo era tentar entender os limites da nossa consciência e os mecanismos psicológicos da obediência, em um esforço para encontrar alguma explicação para os atos abomináveis de extermínio de milhares de judeus durante a segunda guerra mundial (1).

No mais famoso desses experimentos, conhecido como “O Aluno e o Professor”, Milgram recrutou por anúncios de jornal cidadãos comuns através da oferta de 4 dólares para a participação em um “estudo sobre o aprendizado.” . Quando o candidato chegava ao laboratório experimental, a ele era atribuído, por um sorteio fictício, o papel de “professor” e lhe pediam que lesse uma série de pares de palavras para “o aluno”, um ator que estava do outro lado de uma parede. Eles não podiam se ver, mas um ouvia o que o outro dizia. Em seguida, o “professor”, sem saber que tudo não passava de uma simulação, iria testar no aluno a capacidade de recordar os pares através da leitura da primeira palavra em cada par.

Sempre que o aluno cometesse um erro, “o professor” era instruído, pelo pesquisador, a administrar a punição na forma de choque elétrico, cuja intensidade ia aumentando, progressivamente, ao longo do experimento. O pesquisador intervia de forma impositiva, valendo-se da sua autoridade, para ordenar que o teste prosseguisse até o final, mesmo quando o “professor” pensava em desistir ao ouvir os gritos de dor do “aluno”, do outro lado da parede.

O resultado foi surpreendente: de cada dez participantes, seis a sete prosseguiam até o final, obedecendo, cegamente, as ordens do pesquisador, sem questioná-las, mesmo quando o “aluno” pedia que parassem. E não eram pessoas sádicas ou desumanas: as reações corporais e as expressões faciais demonstravam que o “professor” também estava sofrendo, angustiado com a dor que infligia ao “aluno”. Muitos até chegavam a dizer que queriam parar, que não achavam aquilo certo, mas, diante da ordem da “Autoridade”, representada pelo pesquisador, prosseguiam com o experimento.

Detalhe: os “professores” não receberam nenhuma ameaça e o valor que ganharam pela participação era irrisório. Eles simplesmente obedeciam pela reverência à autoridade. Em uma entrevista posterior, questionadas sobre o motivo de terem prosseguido, mesmo contra a sua vontade, muitos disseram que simplesmente estavam “cumprindo ordens” (2).

Anos depois, revendo seu experimento, Milgran observou que “pessoas comuns, simplesmente fazendo seu trabalho, e sem qualquer hostilidade particular de sua parte, podem se tornar agentes em um terrível processo destrutivo. Além disso, mesmo quando os efeitos destrutivos de seu trabalho se tornam manifestamente claros, e eles são solicitados a realizar ações incompatíveis com padrões fundamentais de moralidade, relativamente poucas pessoas têm os recursos necessários para resistir à autoridade.” (3).

Em 2010, um reality show inspirado no experimento de Milgram causou comoção nacional na França. Em "Le Jeu de la Mort" ("O jogo da morte"), os participantes, que não sabiam que faziam parte de uma encenação e não concorriam a nenhum prêmio em dinheiro, davam choques de até 460 volts em outro competidor, que, neste caso, era um ator. Um documentário homônimo da TV Francesa mostrou como, apesar de ouvir os gritos da vítima - supostamente real -, oito em cada dez participantes cumpriram até o fim as ordens da apresentadora e chegaram a dar descargas elétricas de até 460 volts em seus oponentes, momento em que perceberam que a pessoa que recebia o choque simulado não dava mais sinais de vida.

A reação dos participantes, que tiveram suas expressões filmadas, dava a entender que não se tratava de sadismo ou de ter prazer na dor alheia. Os jogadores estavam profundamente incomodados com aquela situação. Alguns demonstravam sinais evidentes de angústia e estresse emocional, mas, mesmo contra os seus valores morais e o seu senso crítico, a maioria obedeceu, cegamente, às ordens da autoridade constituída (4).

Em pesquisa publicada na revista Current Biology, em 2016, Patrick Haggard, neurocientista da University College London, resolveu fez novos testes inspirados na experiência de Milgran, procurando uma explicação biológica para esse comportamento psicossocial. Mesmo variando o tipo de punição (por exemplo, uma perda financeira em vez de um choque elétrico) e o tempo de resposta, Haggard chegou a conclusão muito semelhante, observando que o cérebro de quem está recebendo ordens reage de forma bem diferente do que o daquele que está tomando suas próprias decisões, de modo que fazer a vontade alheia nos faz sentir menos responsáveis pelas nossas escolhas (5).

Porém, quando se trata de uma decisão coletiva, que envolve mais de um indivíduo, um outro conceito se torna igualmente indispensável para explicar a submissão cega à autoridade: a uniformização alienante, também conhecida como CONFORMIDADE.

Solomon Asch, psicólogo polonês radicado nos Estados Unidos, foi o idealizador da mais conhecida experiência de conformidade social. Ele reuniu diversos grupos de 8 indivíduos e pediu que cada um deles dissesse qual das linhas que estava vendo era a de maior comprimento. Uma pergunta muito simples, com resposta óbvia, que dispensava maiores conhecimentos. Em cada grupo, sete dos oito participantes eram atores que faziam parte do experimento e apenas um era o sujeito cujo comportamento seria observado, chamado de “participante”. Os atores eram instruídos a insistirem em uma resposta errada. Mesmo diante da evidência ocular e, por mais simples que fosse a pergunta, apenas três de cada dez participantes davam a resposta correta. Os demais, sete em cada dez, cediam à pressão do grupo e se “conformavam” com a reposta errada (6). Muitos anos antes de Nelson Rodrigues, Asch já comprovava a máxima de que “a unanimidade é burra”.

É o chamado efeito Bandwagon ou efeito-manada. Experiência semelhante, também inspirada nas pesquisas de Solomon Asch, foi reproduzida no TESTE DO ELEVADOR, no qual uma câmera escondida filma o comportamento dos “passageiros” dentro do ascensor, revelando que mais de noventa por cento das pessoas tende a ajeitar seu corpo na mesma posição dos outros usuários, de forma instintiva, sem qualquer questionamento racional (7). Não por acaso os experimentos de Conformidade de Asch vêm sendo objeto de discussão no campo jurídico, nos estudos sobre o Tribunal de Juri e nos julgamentos proferidos por órgãos colegiados, a fim de analisar a que ponto chega o poder de influência de um grupo sobre a consciência de cada indivíduo.

O estudo sobre o fenômeno da “conformidade” e a influência do grupo sobre a opinião do indivíduo, a ponto de fazê-lo negar suas próprias convicções para se amoldar ao coletivo em que está inserido, também foi objeto de inúmeras outras experiências, como, por exemplo, o polêmico Experimento da Prisão de Stanford (8), liderado pelo professor Phillip Zimbardo, da Universidade Stanford (EUA), no qual pessoas, aparentemente, decentes e bem intencionadas, quando divididas em equipes de “prisioneiros” e “guardas”, acabaram sucumbindo à pressão do grupo e praticando atos degradantes, inclusive com torturas e humilhações (9). Nessa mesma linha são os estudos de Muzafer Sherif sobre a NORMALIZAÇÃO, cujas evidências empíricas demonstraram a influência do grupo sobre o pensamento individual e sobre a criação de normas (10)

Os experimentos de Asch e Zimbardo trazem à lembrança o premiado filme alemão “A ONDA” (título original: Die Welle), dirigido por Dennis Gansel, que, a partir do microcosmos de uma escola, na qual os estudantes participam de um experimento sobre o totalitarismo, tenta entender as origens de um regime autoritário e os fatores que levam à despersonalização dos indivíduos. Mais uma vez, obediência cega e conformidade levam a escolhas erradas e, paradoxalmente, é o excesso de ordem que produz o caos.

Portanto, precisamos tomar muito cuidado com a onda autoritária que tenta impor OBEDIÊNCIA CEGA e CONFORMIDADE a todas as instâncias do Poder Judiciário porque, por trás do discurso que fala em “Disciplina Judiciária” e em “Segurança Jurídica”, o que se pretende é sufocar as divergências e acabar com a autonomia dos juízes de primeira instância, instrumentalizando as súmulas vinculantes e os incidentes de uniformização como forma de reafirmação do poder de uma cúpula cada vez mais distante da realidade cotidiana.

O maior prejudicado será o cidadão, na medida em que o juiz se transformará em mero carimbador de súmulas, sem ter a liberdade indispensável para aplicar à justiça atendendo às peculiaridades de cada caso concreto. Em outra frente, a padronização de procedimentos, imposta de cima para baixo, visando uniformizar realidades tão distintas, com metas inatingíveis, poderá transformar as unidades judiciárias em verdadeiros “fast food” do Direito, lembrando as linhas de produção fordista, como se cada processo fosse apenas um número a ser eliminado, esquecendo-se que os litigantes são seres humanos que estão tratando de questões essenciais para as suas vidas.

Não podemos perder de vista que a função mais nobre da atividade jurisdicional não é apenas resolver o litígio ou acabar com um processo, mas promover a JUSTA composição da lide, que leve à pacificação social por meio da efetiva distribuição da Justiça. Para tanto, o Poder Judiciário precisa se libertar da cama de Procusto.
NOTAS

1.https://www.youtube.com/watch?v=zAh-LGLsQO4
2.Milgram, S. (1963). Behavioral study of obedience. Journal of Abnormal and Social Psychology, 67, 371-378.
3. Milgram, S. (1974). Obedience to authority: An experimental view. Harpercollins.
4.http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticia/2010/03/falso-reality-show-levanta-polemica-e-choca-a-franca-2843206.html
https://www.youtube.com/watch?v=3yz-P5CWE1E
5.http://elpais.com/elpais/2016/02/22/ciencia/1456131231_900861.html
6.Asch, S.E. (1956). Studies of independence and conformity. A minority of one against a unanimous majority. Psychological Monographs, 70(9), 1–70.
https://www.youtube.com/watch?v=tAivP2xzrng
7.https://www.youtube.com/watch?v=S0xCv_S2JJM
8.https://pt.wikipedia.org/wiki/Experimento_de_aprisionamento_de_Stanford
9.https://www.youtube.com/watch?v=ps3fKeYxly8
10.https://www.youtube.com/watch?v=zSal8A6C4-w

JANON, Renato da Fonseca. A síndrome de procusto: o perigoso discurso da “disciplina judiciária”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5132, 20 jul. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/58679>. Acesso em: 3 set. 2017.

A violência obstétrica à luz da Constituição

terça-feira, 22 de agosto de 2017. por Saul Tourinho Leal.

Ser mulher sempre foi um ato de coragem. Hoje, não é diferente. Para entender, vale conhecer a história de Paula de Oliveira Pereira, 28 anos, dona de casa, mãe de quatro crianças entre 11 anos e 11 meses nascidas em hospitais públicos da grande São Paulo. Ela foi, há poucas semanas, apresentada ao país pela imprensa em razão de uma drama pessoal que experimentou.
Em 2015, Paula teve o terceiro filho. Ficou 14 horas em trabalho de parto, sem acompanhante, embora a lei lhe assegure esse direito. Pediu anestesia, em vão. Sozinha e fora de si, caiu da maca. O corpo esmagou sua barriga no chão. Depois de ser recolhida pela equipe médica, ainda se debatendo, ouviu que não estava contribuindo para o parto "andar logo". Foi quando a enfermeira resolveu agir. Saltando sobre Paula, passou a empurrar o bebê pressionando a parte superior do útero. Estava deitada sobre a gestante. É a manobra de Kristeller, desaconselhada pelo Ministério da Saúde. Paula perdeu o ar. A barriga se transformou num hematoma. Ela passou semanas sem levantar da cama, mas o menino nasceu. Foi um parto "desumanizado". Algo cotidiano.
Para dar a luz nas condições acima só mesmo tendo nervos de aço. Acontece que somos seres humanos, trazemos conosco emoções, não aço.
Ano passado, Paula percebeu que era hora de encarar mais um parto. Tendo experiência de sobra no assunto, entrou em pânico. Desesperada, comprou uma arma e preparou um plano. Chegaria ao hospital e exigiria uma cesárea. Se não fosse atendida, se mataria ali mesmo.
Mandou uma mensagem para a mãe avisando. A senhora comunicou à polícia e correu para o hospital em socorro de Paula. Persuadidos, os médicos fizeram a cesárea. Em seguida, os policiais a separaram do seu bebê e a levaram presa, num camburão, tão logo teve alta, três dias depois do parto. Porte ilegal de arma foi a acusação.
Paula foi encaminhada para a delegacia de Itapecerica e depois para o Centro de Detenção Provisória (CDP) Feminino de Franco da Rocha. Ainda carregava na barriga os pontos da cesárea. Passou 21 dias presa. Segundo o art. 5º, L, da Constituição, às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação. Paula nem viu o filho, nem o amamentou. A promotora de Justiça de Itapecerica da Serra pediu sua absolvição. A juíza concordou.
O relato, fruto das várias entrevistas que Paula concedeu à imprensa depois que O Estado de São Paulo a descobriu, escandaliza uma rotina que grita em silêncio nos hospitais brasileiros. Há partos que são uma tortura.
Grávida, sozinha, em pânico, desorientada, Paula sofreu. Quantas Paulas vagam por aí? Os episódios relatados correspondem ao que a literatura especializada chama de "violência obstétrica". Na Venezuela, é um crime com expresso tratamento legal. Na Argentina, também. No Brasil, estudos e discussões começam a se adensar a respeito da questão e o caso de Paula trouxe tudo à tona com mais força.
A violência obstétrica pode ocorrer na gestação, no parto e no pós-parto ou no atendimento em situações de abortamento. Humilhar a gestante com gritos e xingamentos, negar a aplicação de anestesia ou equivalentes, não permitir a entrada de um acompanhante, adotar procedimentos como a manobra de Kristeller e mutilar a mulher, são exemplos de violência contra a gestante. Paula sofreu um caso clássico de violência obstétrica.
Enquanto a divulgação de episódios de violência obstétrica começa a pipocar pelo país, há, do outro lado, o instrumento mais poderoso a conter essa prática cruel. A Constituição distribui empatia às gestantes.
O preâmbulo diz que o nosso Estado democrático se destina a assegurar o "bem-estar". A dignidade da pessoa humana, por sua vez, é um dos fundamentos da República (art. 1º, III). É preciso que todas as Paulas saibam disso. A Constituição é por elas, não contra; defende-as, não as acusa; ameniza seus sofrimentos, não os intensifica.
Segundo os depoimentos de Paula, o parto foi internalizado como sofrimento e humilhação. Acontece que, pelo art. 5º, III, da Constituição, ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante. Se assim o é, então como essas mulheres têm passado por tudo isso?
Se a Constituição não pretendesse construir uma sociedade sensível às gestantes não teria assegurado como direitos dos trabalhadores urbanos e rurais a licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias (art 7º, XVIII). A proteção à maternidade é um direito social (art. 6º, caput). O art. 10, II, 'b' traz restrições severas à dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. Não bastasse, a previdência social atenderá, nos termos da lei, a proteção à maternidade, especialmente à gestante (art. 201, II). Outra conclusão não há que não seja a de que a Constituição é atenta às gestantes.
Não se trata simplesmente do direito à saúde ou do direito à vida, entendida como vida digna. A Constituição, generosa e repleta de empatia, se dedica especificamente às gestantes, ou seja, abre um campo normativo próprio ao enfrentamento da violência obstétrica.
Há um conjunto eloquente de dispositivos realçando a vulnerabilidade da gestante e conferindo-lhe especial proteção. Além disso, tanto a dignidade da pessoa humana quanto a vedação à tortura ou a tratamento desumano ou degradante encontram perfeito emprego em situações como a vivida por mulheres como Paula.
Essa articulação dos dispositivos constitucionais pode acelerar uma revolução humanitária nos partos no Brasil. Dar a luz não pode significar ver as trevas. O Poder Judiciário deve ser procurado. O Ministério Público e a Defensoria Pública já demonstraram disposição em enfrentar a questão. Além disso, o Congresso Nacional, por meio de leis, deve estimular o Poder Executivo a disciplinar a violência obstétrica considerando-se o contexto brasileiro e a experiência internacional com o assunto. Já há iniciativas nesse sentido.
Quanto a Paula, O Globo noticiou que ela está grávida de novo, agora, de quatro meses. É o quinto filho gestado no ventre de quem não completou sequer 30 anos. Moradora em Embu das Artes, na grande São Paulo, ela vive em uma casa de um cômodo com os quatro filhos e o marido desempregado.
Paula segue em busca de uma cesárea ou, pelo menos, do direito de não ser mais vítima de violência obstétrica. A hiper exposição do seu drama deu a ela visibilidade suficiente para não precisar mais enfrentar tudo o que enfrentou num hospital. Mas há ainda muitas Paulas por aí. A Constituição quer conhecê-las e protegê-las. O nascimento de crianças há de simbolizar a renovação das esperanças, o sopro da vida, não tortura e humilhação. Para isso, uma boa saída: mais e mais respeito à Constituição.
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