segunda-feira, 6 de novembro de 2017

STF irá decidir se lei municipal pode proibir sacolas plásticas

Relator do caso é o ministro Luiz Fux.

SEGUNDA-FEIRA, 6/11/2017

O plenário virtual do STF entendeu, por unanimidade, que há repercussão geral na matéria tratada no RE 732.686, que discute a constitucionalidade de lei do Município de Marília/SP que exige a substituição de sacos e sacolas plásticas por material biodegradável. Segundo o relator, ministro Luiz Fux, a questão requer um posicionamento definitivo do STF, “para pacificação das relações e, consequentemente, para trazer segurança jurídica aos jurisdicionados”, uma vez que há diversos casos em que se discute matéria análoga.

O recurso foi interposto pelo procurador-Geral de Justiça de São Paulo contra acórdão do TJ/SP que considerou inconstitucional a lei municipal, por ser resultante de projeto de lei de autoria de vereador, quando deveria ter sido iniciada pelo prefeito municipal. Segundo o TJ, o Estado de São Paulo já editou normas relativas à proteção ambiental sem dispor sobre a obrigação ou a proibição do uso de sacolas plásticas, nem diferenciando umas das outras, e “descabe aos municípios imiscuírem-se na edição de linha diversa, como o fez o Município de Marília”.

No recurso, o procurador-Geral de Justiça alegou que o município tem competência administrativa e legislativa para promover a defesa do meio ambiente e zelar pela saúde dos indivíduos, e que a lei declarada inconstitucional pelo TJ/SP visa à defesa do meio ambiente e do consumidor, não invadindo a esfera de competência reservada ao chefe do Poder Executivo. Ainda segundo o procurador, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito constitucional fundamental, e sua proteção cabe a todos os entes da federação.

Manifestação

Ao se manifestar pela repercussão geral do tema, o ministro Luiz Fux assinalou que a questão constitucional trazida no recurso diz respeito a uma controvérsia formal – a possibilidade de município legislar sobre meio ambiente – e uma controvérsia material, por ofensa aos princípios da defesa do consumidor, da defesa do meio ambiente e do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Para Fux, é louvável a preocupação dos municípios quanto à redução de sacos plásticos. “O descarte das sacolas plásticas é um dos principais responsáveis pelo entupimento da drenagem urbana e pela poluição hídrica, sendo encontradas até no trato digestivo de alguns animais”, afirmou. “Além disso, elas contribuem para a formação de zonas mortas de até 70 mil km² no fundo dos oceanos.”

No entanto, o ministro sustenta que a questão deve ser tratada “com a complexidade devida”, ponderando que a proibição das sacolas plásticas nocivas ao meio ambiente, cumulada com a obrigatoriedade de substituição por outro tipo de material, pode se tornar excessivamente onerosa e desproporcional ao empresário. “O pluralismo de forças políticas e sociais na sociedade contemporânea impõe que se promova uma ponderação de princípios, de modo a conciliar valores e interesses diversos e heterogêneos.”

Com esses argumentos, o ministro concluiu que a matéria transcende os limites subjetivos da causa por apresentar questões relevantes dos pontos de vista social e econômico, relativas ao direito à consecução da política ambiental.

“É que, de acordo com o recorrente, a questão subtrai relevante expediente de concretização de resultados, inviabilizando a utilização de um instrumento eficaz de conscientização e proteção ambiental e, por outro lado, a obrigatoriedade no cumprimento da norma pode violar o princípio da defesa do consumidor, caso se entenda que o município se substitui ao empresário ao delinear a forma de prestação de serviço a ser oferecido pela empresa.”
Processo: RE 732.686

Fonte: STF

http://m.migalhas.com.br/quentes/268549/stf-ira-decidir-se-lei-municipal-pode-proibir-sacolas-plasticas

Lei municipal que proíbe serviço de transporte por aplicativos é inconstitucional, defende PGR

Para Raquel Dodge, norma afronta competência privativa da União para legislar sobre o tema.

SEGUNDA-FEIRA, 6/11/2017

Em manifestação enviada ao STF, a procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, afirma ser inconstitucional a lei 10.553/16, do município de Fortaleza/CE, que proíbe o transporte individual de passageiros realizados por aplicativos, como Uber, Cabify e 99. Para a PGR, a norma viola a competência privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte e é desproporcional, visto que implica na proibição do serviço. Além disso, afronta os princípios constitucionais de liberdade, livre iniciativa e concorrência e defesa do consumidor.

No parecer enviado na ADPF 449, ajuizada pelo PSL, Raquel Dodge argumenta que tanto o táxi como o transporte individual organizado por aplicativo são serviços de transporte privado de passageiros, o que afasta a competência do município para regulamentar a atividade. A lei de Mobilidade Urbana (lei Federal 12.587/12) restringe a atuação municipal à regulação do transporte coletivo urbano, o que não inclui táxis nem os transportes por aplicativo.

Embora comumente entendido como serviço público, o transporte individual de passageiros prestado por táxis ou aplicativos não é devido ou prestado pelo Estado, tendo natureza jurídica privada, defende Dodge. No caso do táxi, a lei de mobilidade urbana o define como serviço de utilidade pública, que depende de autorização do Poder Público. No entanto, tal norma, conforme argumenta a PGR, não pode ser estendida automaticamente ao transporte por aplicativo - atividade que não é equivalente ao táxi. O mesmo ocorre com a lei 12.468/11, que regulamenta apenas a profissão de taxista.

"Apenas lei Federal pode interferir sobre o transporte privado individual de passageiros organizado por aplicativos online como atividade de interesse público", pontua. Segundo a PGR, cabe à União e não ao Judiciário ou ao município, “definir normas gerais que gerenciem a inovação no campo do serviço de transporte privado individual”. Tal decisão deve ser tomada de forma transparente e participativa, a partir da Constituição e com base em estudos técnicos, pois afeta a liberdade de locomoção, a mobilidade e a proteção ao meio ambiente. “Até que advenha lei Federal que redesenhe o sistema de transporte individual privado de passageiros, não há razões constitucionais para sua proibição”, sustenta Raquel Dodge no parecer.

Segundo ela, a atualização da política de transporte pressupõe a incorporação do novo serviço prestado por aplicativo e não sua proibição, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade. Além disso, a Jurisprudência do STF é clara ao estabelecer que o livre exercício de qualquer atividade econômica, independente de autorização do Poder Público, somente pode ser excepcionado por lei, que deve estar em harmonia com os princípios constitucionais que regem o sistema econômico brasileiro.

"Como gerenciar o serviço de forma a respeitar a livre iniciativa e concorrência, sem descuidar da dimensão pública da vida na cidade e do bem-estar de todos os cidadãos compõe o espectro de políticas públicas que dependem de deliberação popular e que devem ser tomadas em nível nacional."
Veja a íntegra do parecer na ADPF 449.

http://m.migalhas.com.br/quentes/268568/lei-municipal-que-proibe-servico-de-transporte-por-aplicativos-e

Dação em Pagamento

Publicado por Barbara Vilela

1. Introdução

Deveras, é sabido que a obrigação só se extingue com o pagamento da prestação devida, vale dizer, com a entrega do objeto a que o devedor se obrigou, e não outro diverso, ainda que mais valioso[1]. No domínio do Direito das Obrigações, é evidente, desde logo, a identidade entre a coisa devida e a coisa paga. Em uma palavra, o credor deve ser pago precisamente com aquilo que foi prometido, uma vez que é dele por direito.
Por todos esses motivos, assevera, à luz dos ensinamentos oriundos das institutas de Justiniano, Gaio e Ulpiano, Caio Mário que a dação em pagamento é deveras uma exceção, vez que, em regra, as obrigações resolvem-se a partir da prestação a que por elas se obrigou. É dizer: o devedor há que entregar a coisa obrigada e não diversa, malgrado seja essa última exacerbadamente mais valiosa. Fato é que o credor não tem obrigação nenhuma de aceitar objeto diverso daquele a que o devedor se obrigou.
No entanto, desde Roma passou-se a permitir, gradualmente, uma flexibilização de tal rigidez. Donde, se o credor concordar com o recebimento de uma coisa por outra, a prestação a ser efetivamente paga e entregue pode ser diferente. Essa forma de extinção da obrigação, que vem a ser um acordo liberatório entre credor e devedor, em que o primeiro consente a entrega de coisa diversa da avençada para ter resolvida a obrigação[2], consolida a dação em pagamento.
O Código Civil de 2002 consagra a datio pro soluto com esse caráter, admitindo que o credor consinta em receber outra prestação em substituição da res debita. Isso quer dizer, claramente, que não haverá substituição da obrigação por outra, tão somente de uma coisa por outra diversa da devida.

2. Dação em Pagamento para Maria Helena Diniz

Assevera Maria Helena Diniz que o instituto “datio in solutum” surgiu com o Direito Romano, no qual era permitido converter a prestação em dinheiro em obrigação de dar coisa certa para impedir que o devedor perdesse seus bens por um preço vil. Com o tempo e com a evolução do Direito, tal instituto evoluiu e se transformou na atual dação em pagamento. Atualmente não se aceita mais a dação em pagamento coativa, assim como a permitida pelos romanos (“beneficium dationis in solutum”).
De acordo com o artigo 356 do presente Código Civil, a dação em pagamento se dá com o consentimento do credor em receber coisa diversa da prestação que lhe é devida. Por isso, alguns autores a entendem como uma modalidade contratual, mas, na verdade, ela é uma forma indireta de pagamento, já que seu objetivo é extinguir a obrigação, enquanto o contrato cria uma obrigação.
A dação em pagamento, então, é um acordo liberatório, realizado entre devedor e credor, no qual este último consente na entrega de uma coisa diversa da avençada. Sendo assim, seu objeto pode ser de qualquer natureza: bem móvel ou imóvel, fatos e abstenções. Ou seja, a prestação em dinheiro é substituída pela entrega de um objeto que o credor não recebe por preço certo e determinado.
Se o débito não for pecuniário, aplicam-se as normas da troca; se for um título de crédito, a transferência importará em cessão. E por outro lado, se o objeto for um bem imóvel, deverá ser provada por escrito e seu assento no Registro Imobiliário competente justificada. Se for um bem móvel, a tradição já será suficiente para a produção de efeitos.
Doutrinadores divergem quanto à natureza da dação em pagamento. Alguns acreditam que ela se assemelha com a novação objetiva, por implicar uma mudança do objeto devido, que não se poderá dar sem que a dívida seja novada. Outros a veem como um contrato, como o de compra e venda, mas, como já supracitado, enquanto esta extingue uma obrigação, o contrato gera uma nova.
A certa concepção é que a dação é uma variedade de pagamento, um pagamento indireto, porque por ser um acordo liberatório, que visa extinguir a obrigação e liberar o devedor, ela tem a mesma índole do pagamento.
Para que a dação em pagamento seja constituída, se fazem necessários quatro requisitos: a existência de um débito vencido; “animus solvendi”, ou seja, a entrega da coisa ao credor com a intenção de efetuar um pagamento; diversidade de objeto oferecido em relação ao devido (não se deve confundir dação em pagamento com obrigação alternativa, pois nesta última o credor já concordou logo no contrato em receber qualquer uma das prestações; e, por último, a concordância, que pode ser verbal ou escrita, tácita ou expressa).
O efeito da dação em pagamento é a extinção da dívida. Pode ocorrer que o credor receba uma coisa não pertencente ao solvens, havendo então a sua reivindicação por terceiro, que prove ser seu proprietário. Nesse caso, temos a evicção, ou seja, a perda total ou parcial do objeto em virtude de sentença judicial, que confere seu domínio à terceira pessoa.

3. O conceito de “dação em pagamento” para Sílvio de Salvo Venosa[3]
Conforme a definição de dação em pagamento de Sílvio de Salvo Venosa: “Se o credor consentir, a obrigação pode ser resolvida substituindo-se seu objeto. Dá-se algo em pagamento, que não estava originalmente na obrigação. Esse é o sentido da datio in solutum. Só pode ocorrer com o consentimento do credor, pois ele não está obrigado a receber nem mesmo coisa mais valiosa (art. 313)”.
Dessa forma, nota-se que, desde que haja consentimento do credor, o qual deve ser capaz, pode-se substituir a prestação da obrigação firmada. Trata-se de um acordo liberatório que pode ocorrer apenas após o nascimento da obrigação. Pode haver substituição tanto de dinheiro por coisa, caracterizando um rem pro pecuni, de coisa por coisa, rem pro re, como de coisa por obrigação de fazer.
Assim, tem-se a dação, de fato, como o momento em que, com aquiescência do credor, substitui-se o objeto da prestação. Para que ela ocorra, há três requisitos: deve-se ter uma obrigação previamente criada, a aceitação do credor em receber coisa diversa e a entrega da coisa diversa com o intuito de extinguir a obrigação. Lembrar que não há necessidade de equivalência de valor na substituição, visto que a finalidade do instituto é extinguir a dívida.
Quando a obrigação é alternativa ou facultativa, dá-se a datio in solutum se nenhuma das prestações originalmente avençadas for cumprida, e sim uma totalmente estranha ao pacto original.
A natureza jurídica da dação em pagamento é um negócio jurídico bilateral, oneroso e real, uma vez que implica na entrega de algo, havendo cessão de crédito. Pode-se ter uma dação parcial, na qual apenas parte do conteúdo da obrigação é substituída. Nessa hipótese, há necessidade de se explicitar o valor que fica em aberto.
A equiparação da datio in solutum à compra e venda acontece apenas quando determinado o preço da coisa, sendo o objeto móvel ou imóvel. Se não for determinado, ao contrário, não há como realizar tal conexão. Porém, caso tal coisa seja perdida por evicção, volta-se à obrigação originária. Da mesma forma como acontece quando nota-se qualquer vício redibitório em relação à coisa entregue na dação, o objetivo é não prejudicar o terceiro. Assim, o terceiro protegido é de boa-fé e, por conta disso, não será danificado.
Venosa aponta que, de acordo com a jurisprudência, quando aplicam-se os princípios da compra e venda, podem-se tornar nulos os casos de dação quando ela é realizada em cima de todos os bens do devedor sem consentimento de todos os descendentes, quando feita pelo ascendente ao descendente, quando realizada no período suspeito da falência, quando em fraude contra credores.

4. A Dação em pagamento em Silvio Rodrigues [4]

Esse instituto do Direito Civil concernente às obrigações surgiu, originariamente, no processo de execução, “com o intuito de proteger o devedor que, desse modo, não se via compelido a vender seus bens a preço vil”[5] ao ser constrangido a pagar uma dívida. Tal forma indireta de pagamento constitui uma evolução do datio in solutum, criado pelo Direito Romano, ao passo que do Direito Civil atual brasileiro distingue-se por somente ser possível com o expresso assentimento do credor.
Ao anuir com a dação em pagamento do débito contraído pela obrigação firmada com o devedor, as relações entre as partes passam a se regular pelas normas do contrato de compra e venda (art. 357, CC), quando houver a entrega de coisa corpórea, e, em se tratando da transmissão do devedor de um crédito cuja posse lhe pertence, as relações assemelhando-se à cessão de crédito[6].
Sob essa lógica, tem-se que o mecanismo da dação em pagamento pode ser equiparado à compra e venda, pois funciona como se o devedor estivesse vendendo ao credor algo, e a título de crédito houvesse consequentemente o pagamento, a dívida se recompensaria com o preço. Não obstante, se o pagamento se efetua a partir da transmissão, do devedor ao credor, há algo análogo à cessão de crédito.
Para que haja essa caracterização, dois requisitos são de extrema relevância: (1) a coisa dada em pagamento deve ser diversa daquela da prestação e (2) o credor deve concordar com essa substituição.
Por fim, caso o objeto acordado em dação em pagamento seja demandado por terceiro que, através de uma relação jurídica anteriormente constituída, provar ser o verdadeiro proprietário da coisa, sofrendo, portanto, o credor, os prejuízos da evicção, a obrigação ressuscitar-se-á ao status quo ante e os prejuízos recairão sobre o solvens.

5. Dação em pagamento para Washington de Barros Monteiro[7]

O Código Brasileiro compreende a dação em pagamento como forma de pagamento indireto. É, segundo Washington de Barros Monteiro, “um acordo convencionado entre credor e devedor, por via do qual aquiesce o primeiro em receber do segundo, para desobrigá-lo de uma dívida, objeto diferente do que constituíra a obrigação”. Desta definição é possível a extração dos elementos constitutivos da dação: a entrega feita pelo devedor ao credor de coisa dada com ânimo de efetuar um pagamento, o acordo do credor, verbal ou escrito, tácito ou expresso, e a diversidade da prestação oferecida, em relação à dívida originária.
Um exemplo válido deste acordo seria saldar uma dívida de trinta mil reais mediante a entrega de um carro que possua este valor. Os referidos elementos podem ser identificados na medida em que há a substituição de uma prestação por outra, o acordo entre os interessados (base fundamental da dação, uma vez que é essencial o consentimento do credor) e a substituição da prestação do dinheiro para o objeto material do carro.
O pagamento por entrega de bens pode ter diversas naturezas, o que abre espaço para diversas classificações como rem pro pecunia (coisa por dinheiro), rem pro re (coisa por outra), nomen juris pro pecunia (crédito do devedor pelo seu débito ao credor), rem pro facto (coisa por fato), etc. Após a determinação do preço da coisa dada em pagamento, a relação entre as partes passa a ser regulada normalmente pelas normas do contrato de compra e venda, substituindo, ao invés de preço certo e determinado, “coisa por coisa”. Da mesma forma, se for título de crédito, a transferência importará em cessão.
A jurisprudência tem entendido que a dação em pagamento é considerada nula em casos determinados em que esta tenha sido feita por erro e compreensiva de todos os bens do devedor, em caso de dação efetuada por ascendente e descendente, sem consentimento, realizada em período suspeito de falência ou em fraude de credores.

6. A “Dação em Pagamento” em Caio Mário da Silva Pereira[8]

Caio Mário destaca a exigência de “dupla capacidade” concernente ao instituto da “dação em pagamento”. O solvens deverá ter direito à coisa, pois se não puder efetuar transferência da sua propriedade ao accipiens, não poderá ocorrer a sobredita dação. O accipiens, por sua vez, há que ter a aptidão de dar a anuência devida, consentindo com a dação.
Segundo o autor, destacam-se os seguintes requisitos; (i) a existência de uma dívida- de fato, sem divida não poderá ocorrer tal translação; (ii) o acordo do credor – sem a anuência deste, não haverá dação; (iii) a entrega da coisa diversa com a intenção de extinguir a obrigação. Não se confunde com a doação, pois essa última é caracterizada pela liberalidade. Lembra Caio Mário que tampouco devemos confundi-la com a obrigação alternativa, pois a coisa dada já estava obrigacionada e menos ainda com a obrigação facultativa, uma vez que já estava previsto o que podia ser entregue na forma de pagamento.
Poderá existir, ademais, por meio da dação, quitação parcial, donde o “credor pode consentir em receber por conta da coisa ou quantia devida, uma prestação parcial”[9]. Nesse caso, subsistirá o valor remanescente.
Ressalta o referido jurista que, malgrado se equipare a dação em pagamento ao instituto da “compra e venda” (art. 357, CC), trata-se de peculiar modalidade de solução, donde o efeito estará provido de veemente aspecto liberatório do devedor.
Quanto à evicção da coisa dada em pagamento, o Código Civil, no art. 359, adotou a ideia de que a “evicção da coisa dada” gerará efeito repristinatório da primitiva obrigação. Vejamos o esquema. Queremos dizer que, “a evicção da coisa recebida em pagamento torna ineficaz a quitação dada”[10].
Nesse diapasão, questiona-se Caio Mário, o que viria a acontecer com os terceiros envolvidos em tais translações e afetados pela “dação”? O Código optou pelo seguinte, in verbis: “se o credor for evicto da coisa recebida em pagamento, restabelecer-se-á a obrigação primitiva, ficando sem efeito a quitação dada, ressalvados os direitos de terceiros” (art. 359 - grifos nossos).
Esses direitos, como bem critica o autor, não são bem claros – sua extensão é, verdadeiramente, imprecisa. Afirma Caio Mário “A indagação se as garantias fidejussórias se restauram é que ficou sem resposta no Código”[11].
Diferencia-se, ao fim e ao cabo, a datio in solutum da datio pro solvendo. Vale dizer, nessa última, subsistirão duas obrigações e quando o devedor satisfizer a segunda, ficam extintas as duas. É o caso típico do devedor músico que deve para um credor que é dono de uma sala de concerto. De modo que o dinheiro arrecadado em virtude da apresentação do devedor na sala de espetáculos do credor poderá, porventura, pagar total ou parcialmente a dívida.

7. Jurisprudência


a. Apel. Nº: 9116220-50.2008.8.26.0000
Comarca: São Paulo - 16ª Vara Cível
Relator: Eduardo Sá Pinto Sandeville
Julgamento: 26/07/2012

O julgado ora apresentado trata de um recurso feito pela empresa C & M Software LTDA contra o Banco Semear S/A, que pleiteou a inversão da sentença negativa proferida referente à rescisão do contrato de serviços prestados pelo requerente, no qual o requerido pagaria a prestação devida parte em moeda e parte em dação, esta representada por equipamentos de informática juntamente com o Instrumento de Transferência de Propriedade. A rescisão foi pedida com base no não cumprimento do contrato, uma vez que o requerente não recebeu o Instrumento de Transferência de Propriedade, e com base, ainda, na ausência de má-fé do réu.
“Como bem aduziu o juízo, o negócio jurídico entabulado pelas partes para a transmissão dos equipamentos de informática foi perfeito, produzindo todos os efeitos jurídicos esperados, os quais prescindiam da emissão de novos documentos fiscais.” (Relator Eduardo Sá Pinto Sandeville)
O processo foi julgado no Tribunal de Justiça de São Paulo, décima sexta vara cível, sendo que o Relator foi Eduardo Sá Pinto Sandeville, em vinte e seis de julho de dois mil e doze. O apelante alegou que a transferência de propriedade de softwares não se realiza simplesmente com a tradição, mas se faz necessária a entrega de notas fiscais, aspecto não considerado importante pelo Relator, que afirmou que as licenças dos softwares foram transferidas tanto pelo contrato feito com o Banco como pela entrega das máquinas ligadas a eles. Apontou, ainda, para a matéria do Instrumento de Transferência de Propriedade, que diz ser claro que as únicas notas fiscais devidas eram as das máquinas, além das mídias de instalação dos softwares. Declarou, assim, ser incontroverso o fiel cumprimento do contrato por parte do réu e deu provimento parcial ao recurso, já que entendeu não caber condenação ao réu por má-fé.
O Relator não utilizou de quaisquer doutrinas, jurisprudências ou legislação na justificativa de sua decisão.
A sentença promulgada foi embasada nos entendimentos do próprio relator, que se absteve de observar a legislação sobre a transferência de tecnologia, contida na Lei 9069/1998, a qual consta em seu artigo 9º, caput, a necessidade de se ter um contrato de licença para o uso do programa de computador, e no parágrafo único do aludido artigo, na hipótese de inexistência do contrato de licença, faz-se necessário o documento fiscal relativo à aquisição ou licenciamento de cópia, que fora solicitado em contrato pelo apelante, quando acordou com o apelado a dação em pagamento do Instrumento de Transferência de Propriedade.
A obrigação em questão, portanto, não foi resolvida, uma vez que o contrato não foi fielmente cumprido e a dação em pagamento exigida, que se configura como parte da prestação, não foi integralmente paga. Caio Mário da Silva afirma ser “o pagamento como forma de liberação do devedor”, e Silvio Venosa, “Se o credor consentir, a obrigação pode ser resolvida substituindo-se seu objeto”. O credor, no caso, consentiu em receber como dação em pagamento além das máquinas, o Instrumento de Transferência de Propriedade, que não foi plenamente recebido. A obrigação não deve se extinguir até que haja o pagamento completo da prestação, como não ocorreu.
Venosa pontua, ainda, que “a mora constitui o retardamento ou o mau cumprimento culposo no cumprimento da obrigação, quando se trata de mora do devedor.”. Nesse caso, houve um mau cumprimento da obrigação, e o artigo 395 do Código Civil garante ao credor a cobrança do prejuízo a que a mora deu causa, mais juros, atualização monetária e honorários do advogado. Também, o parágrafo único desse artigo garante ao credor o direito de recusar o recebimento da prestação, caso esta tenha se tornado inútil, e cobrar perdas e danos.
Dessa forma, o devedor ainda deveria estar preso à obrigação, em mora, e o credor, caso desejasse, poderia solicitar a rescisão do contrato mais o valor de perdas e danos. O recurso é, assim, cabível.

b.RECURSO ESPECIAL Nº 1.138.993 - SP (2009/0086764-0)
RELATOR: MINISTRO MASSAMI UYEDA
O presente Acórdão versa sobre a controvérsia que reside em saber se, para fins de comprovação de dação em pagamento, exige-se anuência expressa, por escrito, do credor.
A controvérsia teve início com a propositura de ação monitória, por Gilberto Tobias Morato, em face de Aparecido Casemiro, com o fundamento de que assumiu a posição de avalista do réu e que, por isso, arcou com financiamento bancário contratado por este, no que pretende ser ressarcido.
Após citação, o réu apresentou embargos ao mandado monitório alegando em sua defesa que o empréstimo contraído convertera-se em benefício do autor, uma vez que os bens adquiridos com o empréstimo foram devolvidos ao demandante através do instituto dação em pagamento.
O juízo de 1ª Instância conheceu a ação, sob o fundamento de que ficou demonstrado o financiamento do crédito, que, dada a mora do réu, foi pago pelo autor, em posição de aval.
Insatisfeito, o réu apelou, ao que o eg. Tribunal negou provimento ao recurso, em consonância com o entendimento do juízo a quo. Ressaltou o Tribunal que não foi comprovada a dação em pagamento, já que ausente contrato por escrito, possível prova da extinção da dívida.
Em sede de Recurso Especial, o apelante sustentou que a dação em pagamento não exige formalização por escrito, dá-se pela entrega do bem. Sobreveio juízo negativo de admissibilidade. Contudo, através de Agravo, admitiu-se a subida dos autos para a Corte Superior.
Com eminente saber, o ministro relator negou provimento ao recurso. De seu voto, retira-se os seguintes trechos: “Historicamente, a origem do instituto da dação em pagamento (datio in solutum ou pro soluto) traduz a ideia de acordo, realizado entre o credor e o devedor, cujo caráter é liberar a obrigação, em que o credor consente na entrega de coisa diversa da avençada, nos termos do que dispõe o art. 356, do Código Civil, in verbis: "Art. 356. O credor pode consentir em receber prestação diversa da que lhe é devida."
Ademais, é cediço que, para configuração da dação em pagamento, exige-se, pela ordem, uma obrigação previamente criada; um acordo posterior, em que o credor concorda em aceitar coisa diversa daquela anteriormente contratada e, por fim, a entrega da coisa distinta com a finalidade de extinguir a obrigação.
A exigência de anuência expressa do credor, para fins de dação em pagamento, traduz, ultima ratio, garantia de segurança jurídica para os envolvidos no negócio jurídico, porque, de um lado, dá ao credor a possibilidade de avaliar, a conveniência ou não, de receber bem diverso do que originalmente contratado. E, por outro lado, assegura ao devedor, mediante recibo, nos termos do que dispõe o art. 320 do Código Civil, a quitação da dívida”.
Diante do entendimento de que a aquiescência expressa do credor é requisito para configuração da dação em pagamento, e não tendo se vislumbrado isso nos autos, negou-se provimento ao Recurso.

c.HABEAS CORPUS Nº 20.317 - SP (2002/0002687-3)
RELATOR: MINISTRO CESAR ASFOR ROCHA

O presente julgado se trata de um Habeas Corpus nº 20.317 – SP, no qual o paciente fora submetido à prisão civil por causa de débito vencido há mais de dois anos e relativo a quatro anos de prestações alimentícias.
Segundo o entendimento da Corte, a execução segundo o art. 733, do Código de Processo Civil, legitima a prisão civil por falta de pagamento.
Mas, o que se frisa no referido acórdão é a proposta do paciente em conseguir o habeas corpus e de transferir ao menor, em dação e pagamento, imóvel cujo valor afirma ser superior ao débito.
Vale ressaltar que o credor não é obrigado a receber prestação diversa à acordada, ainda que esta seja de valor superior, como dispõe o art. 313, do Código Civil: Art. 313. O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa.
O que gera o debate em si é o fato de quem é credor, pois a mãe é a representante legal do menor, e que, em cumprimento ao art. 313, ela pode até rejeitar a referida dação em pagamento. É também por esse motivo que se torna necessária a intervenção do Ministério Público, de modo a preservar e garantir os direitos do menor, que é que realmente precisa da pensão de alimentos.
A egrégia Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, concedeu o habeas corpus por 30 dias, a fim de oportunizar a dação em pagamento do referido imóvel.

8. Conclusão

a. Conceito
A dação em pagamento é, por assim dizer, uma figura jurídica autônoma, de cunho translativo oneroso que tem por escopo extinguir a dívida, em que há de se liberar o devedor. Trata-se, grosso modo, de um acordo extintivo que ocorrerá toda vez que o “devedor efetua prestação diversa da devida” e da obrigação se liberta. Não se especifica, contudo, a modalidade da prestação substituta, de modo que poderá ser entregue uma coisa em vez de pecúnia (rem pro pecunia), uma coisa por outra coisa (rem pro re), ou ainda, uma coisa pela prestação de um favor (rem pro facto). Importante será que haja substituição do objeto da obrigação por outro diverso, donde se destaca a parêmia latina “aliud pro alio”.
b. Conclusões jurisprudenciais
A jurisprudência tem considerado nula a dação em pagamento quando:
1. Feita por erro e compreensiva de todos os haveres do devedor;
2. Efetuada por ascendente ou descendente, sem assentimento dos demais descendentes;
3. Realizada no período suspeito da falência, ainda que em favor de credor privilegiado;
4. Levada a feito com fraude de credores.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 27ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso De Direito Civil, Vol. 4, Teoria das Obrigações – 1ª parte. 27ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 25 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 30ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2008.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil – Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 13. Ed. São Paulo: Atlas, 2013.

[1] É sabido, por força do artigo3133 doCódigo Civill, não ser o credor obrigado a receber coisa outra além da obrigada, ainda que mais valiosa.
[2] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 27ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p.310
[3] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil – Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 13. Ed. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 269-272.
[4] RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 30ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 195-196
[5] Idem, p. 195
[6] Ibidem, p. 196.
[7] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso De Direito Civil - Vol. 4, Teoria das Obrigações – 1ª parte. 27ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 1994, pp. 290-292.
[8] PEREIRA. Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 25 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, pp. 223-229.
[9] Ibidem, p, 225.
[10] Ibidem, p. 227.
[11] Ibidem, p. 228.


https://bamandavilela.jusbrasil.com.br/artigos/395664453/dacao-em-pagamento

Mesmo depois de rever decisão, plano é condenado por negar cobertura de cirurgia

O fato de uma operadora de plano de saúde rever, posteriormente, a decisão pela qual negou o pagamento de uma cirurgia para retirada de um nódulo não muda o fato de a paciente ter sido obrigada a pagar pelo procedimento. Assim, são legais o auto de infração e a multa imposta pela Agência Nacional de Saúde por causa da má prestação de serviço.
A decisão é da 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em um caso no qual a empresa negou procedimento médico de retirada de nódulo a beneficiária do plano. A cirurgia foi custeada pela própria paciente. Depois disso, o plano reviu a negativa.
A relatora do processo, desembargadora federal Consuelo Yoshida, ressaltou que, embora tenha havido a revisão antes da lavratura do auto de infração, a ação da operadora não teve o condão de reparar a beneficiária de forma imediata e espontânea, uma vez que ela já havia realizado e custeado a cirurgia por conta própria.
“Salta aos olhos a falta de espontaneidade da revisão o fato de ter sido realizada sete meses após a negativa da autorização, coincidentemente na mesma data da resposta ao ofício de solicitação de esclarecimentos à ANS”, afirmou.
No recurso ao TRF-3, a empresa alegou que só tomou conhecimento do pagamento das despesas pela beneficiária quando da ciência da lavratura do auto. Só após isso a operadora tomou as providências para efetuar o reembolso espontâneo e voluntário a fim de reparar os prejuízos e danos eventualmente causados. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRF-3.
Processo 0007049-81.2015.4.03.6100/SP
Revista Consultor Jurídico, 5 de novembro de 2017, 17h25
https://www.conjur.com.br/2017-nov-05/mesmo-rever-decisao-plano-condenado-nao-custear-cirurgia

Lei brasileira permite responsabilizar os pais por danos causados ao nascituro

Por Mário Luiz Delgado

O dano, como sabemos, consiste em uma lesão a um interesse juridicamente protegido, quer seja a destruição ou deterioração de uma coisa inanimada, quer seja a ofensa à integridade física ou moral de uma pessoa. Na relação paterno-filial os pais podem provocar danos à integridade física e moral dos filhos, a exemplo do castigo imoderado, do cárcere privado e do abuso sexual, que são ofensas à dignidade humana susceptíveis de reparação[1].

Na relação gestante-nascituro, os danos mais comuns são o dano genético e o dano pré-natal.O dano genético pode ser compreendido como uma agressão aos genes do nascituro que tenha afetado o seu genoma e provocado consequências que impossibilitem, dificultem ou reduzam a qualidade de vida da pessoa nascida, podendo resultar de contaminação por substâncias tóxicas ou radioativas ocorrida durante a gravidez (teratógenos) ou ainda da condição hereditária de ambos os pais.[2]

Pessoas portadoras de determinados fatores de risco possuem maior potencial de conceberem filhos com malformação genética[3]. Por isso, a lei exige dos colaterais de terceiro grau exame médico preventivo para que possam contrair matrimônio entre si (Decreto-Lei nº 3.200/41). Mulheres com idade mais avançada, para engravidar, precisam de cuidados médicos muito maiores do que aquelas mais jovens[4]. Algumas doenças são transmissíveis dos pais para o filho. Em muitas situações, existe tratamento e o risco pode ser evitado[5]. Em outras, é a gravidez que deve ser evitada. O contrário seria admitir que alguém pudesse realizar um projeto parental para satisfação de suas exclusivas e egoísticas aspirações, sem qualquer preocupação com a saúde e a qualidade de vida do filho a ser gerado.

Sabendo ou devendo saber dos fatores de risco, os pais mostram-se negligentes quando deixam de procurar um especialista antes da gravidez, para realizar o histórico clínico do casal. A conduta responsável e esperada, no caso, é consultar um profissional para ter o aconselhamento genético, de modo a evitar a concepção de um filho com malformação congênita[6].

O dano pré-natal, por sua vez, é causado exclusivamente por fatores ambientais, normalmente condutas inapropriadas ou imprudentes adotadas pela gestante durante a gravidez, expondo a risco o nascituro. Entre as mais comuns, podemos mencionar a ingestão de determinadas substâncias, como é o caso da cocaína, do fumo e do álcool, aptas a prejudicar o desenvolvimento ou a comprometer a saúde do nascituro, ou ainda interferir negativamente na qualidade de vida após o seu nascimento.

Silma Mendes Berti, em sua acurada pesquisa, refere-se a estudos científicos comprobatórios de que “o consumo de cocaína pela mulher, durante a gravidez, pode causar diversas complicações: contrações uterinas prematuras, abortos espontâneos; diretamente, no feto, foram comprovados, dentre outros males, o retardo no crescimento, anomalias congênitas, malformações cardíaca e urogenital e anomalias nos membros. Os estudos comprovam ainda que uso de cocaína pode provocar o nascimento de crianças com cérebros deformados em decorrência de lesões hemorrágicas (...) Os efeitos do álcool não são menos perniciosos. O consumo de álcool comporta um risco elevado de malformações congênitas, associada a retardo de crescimento, disfunção do sistema nervoso central, malformações faciais e cardiopatias congênitas. A síndrome do alcoolismo fetal é considerada importante causa de malformações congênitas e retardos mentais (...) O fumo é outra droga que inquieta. Em mulheres que fumam durante a gravidez constatam-se, além de outros males, partos prematuros e principalmente nascimento de crianças de baixo peso”[7].

Uma indagação que habitualmente arrosta esse tema é saber se as técnicas tradicionais, em matéria de responsabilidade civil, são suficientes e adequadas à reparação desses novos danos, ocorrentes no âmbito das relações materno-filiais. Em outras palavras: o fundamento da responsabilidade civil será o mesmo quando a vítima do dano for o nascituro e o agente causador a mãe e gestante?

Entendo que sim. A gravidez e a maternidade certamente constituem os maiores privilégios concedidos pela natureza ao ser humano do sexo feminino. Aceitá-las requer sacrifícios e ciência dos escolhos ao longo de uma jornada de nove meses. Máximo bônus, sumo ônus. O que implica, para a mãe, abster-se de muitos direitos em favor do filho que espera e, acima de tudo, reconhecer que os conflitos gerados na relação mãe e filho, enquanto gestante e nascituro, devem razoavelmente pender para o inerme, o vulnerável, o incapaz de se defender ou de clamar por socorro e que não pediu para nascer[8].

Todos os direitos inerentes à pessoa humana, nascida ou concebida, devem ser tutelados dentro do núcleo familiar, sobretudo nas relações materno-filial, e a quebra de quaisquer desses direitos poderá caracterizar dano moral indenizável. O Código Civil de 2002 trouxe norma específica e genérica de tutela dos direitos da personalidade, consubstanciada no artigo 12[9].O dispositivo versa sobre os mecanismos de tutela dos direitos da personalidade, tanto na prevenção e cessação da lesão quanto na reparação dos possíveis danos daí advindos. Abriu-se aqui a possibilidade de cumulação dessas medidas com pedido de perdas e danos e com quaisquer outras sanções previstas em leis especiais[10].

Finalmente, resta saber se o nascituro poderá deduzir essa tutela contra a genitora e gestante, enquanto nascituro, ou se o filho poderá deduzir posteriormente a tutela contra os pais por danos causados durante a vida intrauterina ?

A resposta é afirmativa. Não vemos como se possa estabelecer qualquer tipo de restrição, salvo aquelas previstas em lei e referentes à capacidade e legitimidade processuais. Fora disso, não existe óbice a que o filho, nascido ou nascituro, possa valer-se de todas as medidas para defesa de seus direitos da personalidade, incluindo a pretensão de reparação civil.

O filho nascido e maior ou emancipado poderá deduzir de forma autônoma a pretensão de reparação civil contra a mãe, tão logo alcance a plena capacidade civil (CC, art. 197, II). Enquanto incapaz, o filho nascido só poderá propor a ação representado ou assistido.

Já o nascituro tem legitimidade para propor a ação através do outro representante legal, no caso o pai, ou de curador especial. A curatela do nascituro pressupõe a prévia interdição ou destituição do poder familiar da gestante[11].

Também nada pode obstaculizar ao Ministério Público, como legitimado extraordinário, à luz da dicção final do artigo 127 da CF, que o habilita a demandar em prol de interesses indisponíveis, combinado com o artigo 201, incisos III e VIII do ECA,[12] propor as medidas pertinentes para fazer cessar a ameaça contra a integridade biofísica do feto[13], aí incluídas, entre outras, a destituição do poder familiar, a interdição e a internação compulsória e provisória da mãe, para interromper a ingestão de substâncias ou prática de condutas que coloquem em risco a vida e à saúde do nascituro ou ainda para compelir a gestante a se submeter a tratamento médico necessário à garantia dos direitos do concepto.

Ao nascituro vítima do dano genético ou do dano pré-natal, como a qualquer outro membro da família, não pode ser subtraído o direito à reparação integral tão somente porque o agente causador foi a sua própria mãe. O ordenamento jurídico brasileiro não alberga imunidade ou inimputabilidade à gestante que, de forma culposa ou dolosa, ocasionar qualquer espécie de dano ao nascituro. A doutrina da imunidade parental, muito aplicada nos países de common law até meados do século passado e segundo a qual a preservação da harmonia familiar deveria se sobrepor a toda e qualquer compensação eventualmente devida pelos pais aos filhos, encontra-se em franco declínio[14].

É preciso, apenas, demonstrar o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil: a ação ou omissão que viola direito, ligada, pelo nexo causal, ao dano à integridade física ou psíquica do nascituro. Só não haverá que se falar, por ausência de previsão legal, em responsabilidade objetiva. A investigação da culpa em sentido lato é fundamental. Mister identificar no fato concreto qual foi a ação ou omissão negligente ou imprudente da gestante que violou direito do nascituro, demonstrando sua ligação com o dano, bem como a inexistência das excludentes clássicas de responsabilidade civil, como o estado de necessidade, a força maior e a culpa exclusiva de terceiro.

[1] Cf. BAPTISTA, Silvio Neves. Teoria geral do dano. São Paulo: Atlas, 2003, p. 122.
[2] Os chamados teratógenos são agentes ambientais que, agindo na gestante, tornam-se passíveis de acarretar malformação congênita no nascituro. São produtos com elevado potencial de lesar células do embrião e provocar alteração em seus cromossomos.
[3] “Quando um ou os dois membros do casal são portadores de uma anomalia genética ou conceberam um filho com uma doença de transmissão hereditária, a gravidez é igualmente classificada de alto risco. A gravidade destes antecedentes varia segundo o tipo de problema. Em alguns casos, como acontece com a fibrose cística, a fenilcetonúria e a talassemia, o problema apenas se manifesta quando os dois pais são portadores da anomalia genética que o provoca, mesmo que nenhum dos dois seja afetado, algo que é muito comum. Todavia, noutros casos, basta que um dos dois pais seja portador da anomalia genética, independentemente de ser ou não afetado pela anomalia genética, para que a gravidez seja considerada de alto risco, como por exemplo, em caso de coreia de Huntington e osteogénese imperfeita. Deve-se igualmente fazer referência à especificidade da hemofilia e de outras doenças provocadas por anomalias no cromossoma sexual X, pois costumem ser portadoras destas anomalias genéticas, o problema afeta quase exclusivamente os filhos do sexo masculino”. (Disponível em: http://www.medipedia.pt/home/home.php?module=artigoEnc&id=747#sthash.AeCRjusU.dpuf. Acesso em: 30/01/2015)
[4] Estudos médicos demonstram que as mulheres acima de 35 anos, regra geral, não deveriam conceber, em razão dos riscos de malformações no concepto. Segundo Tânia Schupp Machado, a gravidez é considerada de risco depois dos 35 anos, uma vez que a probabilidade de conceber um filho com síndrome de Down (um dos maiores problemas na idade avançada) e do procedimento invasivo para fazer o diagnóstico é de um em cada 300 casos. (Disponível em: http://drauziovarella.com.br/mulher-2/gravidez-apos-os-35-anos/ Acesso em: 30/01/2015)
[5] Observa Giorge André Lando que “determinados danos genéticos podem ser evitados pelos progenitores. Ao planejar uma gravidez, os futuros pais devem procurar um profissional especializado em genética para realizar a anamnese (história clínica) minuciosa do casal para verificar se existe a possibilidade de os pais transmitirem genes que causarão anomalia no filho que pretendem ter. O geneticista irá fazer o aconselhamento genético e relatar aos progenitores a respeito dos riscos de ocorrência de malformação. Portanto, a anamnese e o aconselhamento genético são medidas preventivas no sentido de identificar o potencial de danos, tentar sanar o problema quando possível ou mesmo orientar pela não gravidez, em razão da elevada probabilidade de causar danos ao nascituro”. (Tese cit.)
[6] Podemos afirmar, tomando por empréstimo a oração de Giorge André Lando, que “a violação dos direitos descritos nos artigos 196, 227 e 229 da Constituição Federal, e artigo 4.º da Lei n.º 8.069/90, quando cometidos pelos genitores, ao se negarem a procurar um profissional de saúde para saber sobre as possibilidades de causar dano genético a sua futura prole, configura uma conduta voluntária e omissiva e, verificada a ocorrência de dano, observa- se que todos os pressupostos estão presentes para a responsabilização civil dos pais”. (Op. cit.)
[7] BERTI, S. M. . Responsabilidade civil pela conduta da mulher durante a gravidez. 1. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. v. 5, p. 141-142. Colhe-se do estudo de Giorge André Lando que “crianças nascidas de mães alcóolatras apresentam um padrão comum de alteração característica, conhecida como Síndrome Alcóolica Fetal (SAF), trazendo como alterações: um grupo de anomalias craniofaciais (principalmente microcefalia, fendas palpebrais encurtadas, achatamento da região central da face e pregas epicantais), disfunção do SNC (hiperatividade, déficits de atenção, retardo mental e dificuldade de aprendizagem) e, por fim, atraso do crescimento pré-natal e/ou pós-natal . (Responsabilidade civil da gestante por condutas prejudiciais à saúde do nascituro. Tese de doutorado apresentada perante a Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP, sob a orientação da Professora Fernanda Tartuce).
[8] Reforça esse entendimento o “princípio do melhor interesse da criança e do adolescente”, cujas raízes estão fincadas na doutrina da “proteção integral”, a abranger, segundo propugnamos, não só a criança nascida, mas igualmente o nascituro, inclusive por sua especial fragilidade e vulnerabilidade, a demandar, com ainda mais premência do que a criança nascida ou o adolescente, a proteção integral dos pais para que possa nascer e bem desenvolver suas potencialidades.
[9] Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
[10] Cf. nosso Código Civil Anotado.Inovações comentadas artigo por artigo.São Paulo: Método, 2005.
[11] Com o objetivo de resguardar os direitos do nascituro, o art. 1.779 do CC/2002 prevê a nomeação de curador especial ao concepto, se o pai falecer ou for desconhecido e a mãe grávida tiver sido interditada ou destituída do poder familiar. Ou ainda se ambos os pais forem destituídos poder familiar. A nomeação do curador não está relacionada aos bens que porventura a criança venha a receber por sucessão ou doação depois de nascida. O principal dever do curador é garantir ao nascituro seu nascimento com vida e saúde. Após o nascimento com vida, a curadoria do nascituro será extinta e, permanecendo a mãe, ou ambos os pais, destituídos do poder familiar, será nomeado tutor para a criança.
[12] Art. 201. Compete ao Ministério Público: (...)III - promover e acompanhar as ações de alimentos e os procedimentos de suspensão e destituição do poder familiar, nomeação e remoção de tutores, curadores e guardiães, bem como oficiar em todos os demais procedimentos da competência da Justiça da Infância e da Juventude; (..) VIII - zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis;
[13] Já decidiu o STJ, em ação proposta pelo Ministério Público para pleitear, em favor de menor, o fornecimento de medicamento, que “o direito à saúde, insculpido na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, é direito indisponível, em função do bem comum, maior a proteger, derivado da própria força impositiva dos preceitos de ordem pública que regulam a matéria”.( REsp n° 716512, 1ª T., Rel. Min. Luiz Fux). Em outra demanda, em que o Ministério Público atuou em defesa de interesses mediatos do nascituro, assim decidiu o STJ: PROCESSUAL CIVIL. GESTANTE. ESTADO CRÍTICO DE SAÚDE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DIREITO INDISPONÍVEL.1. A demanda envolve interesse individual indisponível na medida em que diz respeito à internação hospitalar de gestante hipossuficiente, o que, sem sombra de dúvidas, repercute nos direitos à vida e à saúde do nascituro e autoriza a propositura da ação pelo Ministério Público.2. "Tem natureza de interesse indisponível a tutela jurisdicional do direito à vida e à saúde de que tratam os arts. 5º, caput e 196 da Constituição, em favor de gestante hipossuficiente que necessite de internação hospitalar quando seu estado de saúde é crítico. A legitimidade ativa, portanto, se afirma, não por se tratar de tutela de direitos individuais homogêneos, mas sim por se tratar de interesses individuais indisponíveis" (REsp 933.974/RS, Rel. Min.Teori Albino Zavascki, DJU 19.12.07).3. Agravo regimental não provido.(AgRg no REsp 1045750/RS, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 23/06/2009, DJe 04/08/2009)
[14] Segundo o princípio da imunidade parental (parental immunity doctrine), os filhos não podem acionar seus pais, nem os pais podem acionar seus filhos, por responsabilidade civil, na vigência do poder familiar. O princípio foi descoberto pela jurisprudência estadunidense em 1861 a partir do caso HEWLETT v. GEORGE, onde a Corte assentou que enquanto os pais detiverem os deveres de cuidado, assistência e controle e os filhos os respectivos deveres contrapostos, nenhuma pretensão de reparação civil poderia ser deduzida. Baseia-se na política pública de manutenção da paz e da harmonia familiar, além de prevenir o comprometimento do exercício da autoridade parental que poderia advir pelo receio dos pais de serem processados pelos filhos. A proteção das crianças contra eventual violência dos pais seria exercida exclusivamente pelo Estado, por meio do Direito Penal. (Cf. HOLLISTER, Gail D. “Parent-Child Immunity: A Doctrine in Search of Justification”. Fordham Law Review. Volume 50 | Issue 4 Article 1. 1982)


Mário Luiz Delgado é advogado, professor da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp), doutor em Direito Civil pela USP e mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP. Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFa), diretor de Assuntos Legislativos do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e do Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro (IDCLB).

Revista Consultor Jurídico, 5 de novembro de 2017, 10h30

https://www.conjur.com.br/2017-nov-05/processo-familiar-lei-permite-responsabilizar-pais-danos-causados-nascituro