segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Nova Lei 13.532/2017: legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação de indignidade

A Lei 13.532/2017 é constitucional?

Publicado por Flávia Teixeira Ortega

O que é a indignidade, no Direito Civil? Indignidade são situações previstas no Código Civil nas quais o indivíduo que normalmente iria ter direito à herança, ficará impedido de recebê-la em virtude de ter praticado uma conduta nociva em relação ao autor da herança ou seus familiares. Trata-se, portanto, de uma causa de exclusão da sucessão.

A indignidade é considerada uma punição, uma “pena civil” aplicada ao herdeiro ou legatário acusado de atos reprováveis contra o falecido.

Hipóteses de indignidade: As situações que configuram indignidade estão previstas no art. 1.814 do Código Civil.
Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:
I - que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;
II - que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;
III - que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.

Este rol é taxativo (numerus clausus).

Inciso I

Sobre a hipótese do inciso I acima, vale uma observação: para que se ajuíze a ação de indignidade, não se exige prévia condenação no juízo criminal. Mesmo que o processo criminal esteja ainda tramitando, o interessado pode ingressar com a ação de indignidade, até mesmo porque esta demanda tem prazo decadencial de 4 anos.

Vale ressaltar, no entanto, que o autor da ação de indignidade deverá provar, neste processo cível, a ocorrência da situação prevista em algum dos incisos do art. 1.814 do CC. Assim, o autor da ação terá que provar, com testemunhas, perícia etc., que o indigno praticou o homicídio doloso.

Como é feita a exclusão do indivíduo que praticou ato de indignidade

Para excluir um herdeiro ou legatário que praticou ato de indignidade, é necessária a propositura de ação judicial de indignidade.

Assim, a exclusão do herdeiro ou legatário deverá ser declarada por sentença (art. 1.815), que irá reconhecer que o indivíduo praticou o ato de indignidade.

Existe, inclusive, um prazo para que essa ação seja proposta. O direito de demandar a exclusão do herdeiro ou legatário extingue-se em quatro anos, contados da abertura da sucessão (art. 1.815, parágrafo único). Vale ressaltar que se houver herdeiros menores, o prazo só se inicia depois que atingirem a maioridade.

Quem tem legitimidade para ajuizar a ação de indignidade?

A ação de declaração de indignidade pode ser proposta por qualquer interessado na sucessão.

E o Ministério Público, possui legitimidade para ajuizar ação de indignidade?

O que diz a doutrina:

A doutrina majoritária, mesmo antes da Lei nº 13.532/2017, já defendia o entendimento de que o Promotor de Justiça tem legitimidade para propor esta ação, desde que presente o interesse público. Nesse sentido:

Enunciado 116 – Jornada de Direito Civil: O Ministério Público, por força do art. 1.815, desde que presente o interesse público, tem legitimidade para promover ação visando à declaração de indignidade de herdeiro ou legatário.

Exemplo de situação em que há interesse público e que, portanto, o MP teria legitimidade para propor a ação de indignidade: se os herdeiros interessados forem incapazes.

O que diz o Código Civil: Não havia previsão expressa no Código Civilautorizando que o Ministério Público ajuizasse ação de indignidade.

A Lei nº 13.532/2017 acrescentou um parágrafo ao art. 1.815 prevendo expressamente a legitimidade do MP em um caso específico:

Art. 1.815 (...) § 2º Na hipótese do inciso I do art. 1.814, o Ministério Público tem legitimidade para demandar a exclusão do herdeiro ou legatário.

Assim, de acordo com a atual redação do Código Civil, o Ministério Público pode ajuizar ação pedindo a declaração de indignidade caso o herdeiro ou legatário tenham sido:
Autores, coautores ou partícipes de homicídio doloso (consumado ou tentado)
Praticado contra o autor da herança, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente.

Caso Suzane Richtofen: A presente alteração legislativa foi inspirada pelo famoso caso Suzane Richtofen, que, em 2002, matou os pais, com a ajuda do seu namorado. Os três foram condenados e cumprem pena por isso. A garota recebeu 38 anos de reclusão. A situação de Suzane poderia ser enquadrada no inciso I do art. 1.814 do CC. Assim, ela poderia ser excluída da sucessão e não receber a herança dos seus pais. Ocorre que, para isso acontecer, o outro herdeiro (seu irmão, Andréas Von Richtofen) teve que propor ação de indignidade contra Suzane. Caso Andréas não tivesse proposto a ação, Suzane, mesmo tendo matado os pais, em tese, receberia a herança. Isso parece extremamente injusto e contrário à ética geral.

Vale ressaltar que, antes da Lei nº 13.532/2017, mesmo se adotássemos a posição doutrinária presente no Enunciado 116-CJF/STJ, seria discutível e polêmica a possibilidade de o Ministério Público ajuizar a ação de indignidade por três motivos:
1) não havia previsão legal;
2) receber herança (direito patrimonial) está muito mais ligado a interesses privados do que interesse público;
3) o outro herdeiro, em tese, poderia perdoar a pessoa indigna.

Pensando nisso, a Lei nº 13.532/2017 acrescentou expressamente a possibilidade de o MP propor a ação de indignidade neste caso.

Assim, se o caso Suzane Richtofen tivesse acontecido após a Lei nº 13.532/2017, o Promotor de Justiça poderia ajuizar a ação de indignidade mesmo sem a iniciativa ou concordância de Andréas, outro herdeiro.

Discussão quanto à constitucionalidade da Lei nº 13.532/2017

Vislumbro a discussão sobre a (in) constitucionalidade da Lei nº 13.532/2017.

Para uma primeira corrente, a inovação legislativa seria inconstitucional por violar o art. 127 da CF/88. Acompanhe o raciocínio. Sendo a ação de indignidade julgada procedente, o indigno ficará excluído da herança e a sua parte será redistribuída aos demais herdeiros. Dessa forma, é fácil perceber que o que se discute na ação de indignidade são direitos patrimoniais (direito à herança). Não se discute prisão, cumprimento de pena, ressocialização, prevenção de crimes etc. Discute-se dinheiro pertencente, em regra, a particulares. Os outros aspectos relacionados com o fato serão debatidos no respectivo processo criminal. Por essa razão, mesmo que uma situação como a da Suzane Richtofen cause enorme clamor popular e justificada revolta, o certo é que, tecnicamente, a discussão se ela tem ou não direito à herança envolve um debate patrimonial e de índole disponível.

Por exemplo, se Andréas resolve perdoar a irmã, isso não terá efeito direto no processo criminal. Tecnicamente, ela não poderia ser absolvida por conta disso. No entanto, nada impediria que ele, ao perdoar a homicida, resolvesse dividir sua herança com ela. Tem ele total disponibilidade sobre isso por se tratar do seu patrimônio.

Diante desse cenário, poder-se-ia cogitar sobre a inconstitucionalidade da nova previsão. Isso porque impõe-se ao Ministério Público a atribuição de envolver-se em uma disputa de interesses patrimoniais disponíveis, ignorando, inclusive, a eventual vontade do titular desse direito.

A lei pode prever novas atribuições ao Ministério Público, mas para isso elas devem estar de acordo com o art. 127 da Constituição Federal, que preconiza:

Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Pelo comando constitucional, o Ministério Público somente pode desempenhar atribuições que estejam relacionadas com a defesa: • da ordem jurídica; • do regime democrático; • dos interesses sociais; e • dos interesses individuais indisponíveis.

Logo, em um primeiro entendimento, o MP não poderia ajuizar ação de indignidade porque isso representaria tutelar interesses individuais disponíveis (herança), o que não é autorizado pelo art. 127 da CF/88.

Por outro lado, para uma segunda corrente, a Lei nº 13.532/2017 não seria inconstitucional. Na verdade, ela refletiria o entendimento majoritário da doutrina e a correta interpretação do art. 127 da CF/88. Isso porque o Ministério Público, ao propor ação de indignidade no caso do art. 1.814, I, do Código Civil (homicídio envolvendo o autor da herança ou seus familiares), está defendendo a ordem jurídica, um dos valores previstos no art. 127 da Constituição. É a posição, por exemplo, de Maria Berenice Dias que, mesmo antes da novidade legislativa, defendia este entendimento. Confira:
“(...) Quando o ato de indignidade constitui crime de ação pública incondicionada, possível conceder legitimação extraordinária ao agente ministerial. (...)” (DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: RT, 2013, p. 318).

Fonte: Dizer o Direito.

https://draflaviaortega.jusbrasil.com.br/noticias/529984538/nova-lei-13532-2017-legitimidade-do-ministerio-publico-para-ajuizar-acao-de-indignidade?utm_campaign=newsletter-daily_20171211_6404&utm_medium=email&utm_source=newsletter

MP poderá pedir exclusão de herdeiro da sucessão por indignidade

Por 
Foi publicada nesta sexta-feira (8/12) norma que dá ao Ministério Público o poder de pedir exclusão de herdeiro da sucessão por indignidade. O texto foi aprovado pelo Senado em novembro deste ano, depois de dez anos de tramitação na Câmara. A Lei 13.532/2017 transforma o MP em um dos legítimos a interferir no processo de sucessão, o que ainda é controverso na jurisprudência.
A nova lei foi editada para dar poderes expressos ao MP nos processos de herança e sucessão. O artigo 1.814 do Código Civil e seus incisos definem como herdeiros indignos os que tiverem sido condenados pelo homicídio ou tentativa de homicídio “da pessoa de cuja sucessão se tratar”, que tenha acusado falsamente o autor da herança ou seus parentes ou que tenha cometido fraudes.
Não há menções a quem pode pedir a exclusão de um herdeiro por dignidade, mas a jurisprudência vinha entendendo que só os interessados podem pedir a exclusão de alguém da sucessão. O MP, por representar os interesses difusos da sociedade, não teria legitimidade para interferir nesses casos.
Segundo o autor do projeto que deu origem à lei (PL 1.159/2007), deputado Antonio Bulhões (PMDB-SP), diz que o Código Civil atual, de 2002, foi omisso nessa questão. O código anterior, de 1916, diz ele na justificativa do projeto, delimitava quem eram os legítimos a alegar a indignidade — e não falava no MP. Seu projeto, de 2007, tinha o objetivo de suprir o que ele considerava ser uma lacuna legislativa.
Motivos aparentes
Bulhões protocolou o projeto em maio de 2007. Meses antes, Suzane von Richthofen, condenada em agosto de 2006 por mandar matar os pais, havia pedido para fazer parte do processo de sucessão.
Na justificativa do projeto, o deputado não cita o caso de Suzane. Mas reclama da omissão do Código Civil sobre a “duvidosa possibilidade” de o MP atuar em casos de sucessão nos casos de “terem sido os herdeiros ou legatários autores, coautores ou partícipe de homicídio doloso contra a pessoa de cuja sucessão se tratar”.
Tramitação insistente
O projeto foi arquivado sem votação em janeiro de 2011, com o fim da legislatura, e desarquivado um mês depois, quando Bulhões, reeleito, pediu. Em agosto de 2012, o relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça, Sandro Mabel (PMDB-GO), deu parecer pela rejeição do texto.
Bulhões havia justificado o projeto com base num enunciado do Superior Tribunal de Justiça de 2002, de uma jornada de Direito Civil. Ali, o tribunal ementou o entendimento de que o MP pode atuar em processos de família quando houver interesse público na causa. Mas, para Mabel, como o projeto não fazia essa ressalva e apenas dava, como regra, esse poder ao Ministério Público, não deveria ser aprovado.
“Não se justifica a legitimidade ativa do MP, como regra”, escreveu Mabel, no parecer, “pela grande interferência que isso representaria na vida íntima e privada do núcleo familiar”. “É legitimado a propor a ação judicial quem tenha interesse na sucessão”, concluiu o relator. O texto foi, de novo, arquivado.
Antonio Bulhões foi reeleito em 2014 e, em janeiro do ano seguinte, com a nova legislatura, pediu novo desarquivamento do projeto. Em junho de 2016, o novo relator na CCJ, deputado Lincoln Portela (PMDB-MG), deu parecer pela aprovação do texto: “A atuação do parquet estará em consonância com a Constituição, a qual prevê que a sua legitimidade se estende aos interesses indisponíveis da sociedade, bem como com o atual CPC”.
Houve voto em apartado, do deputado Luiz Couto (PT-PB), pela rejeição. Segundo ele, o projeto era inconstitucional por sua “generalidade”. O MP só poderia atuar nesses casos, diz ele, “apenas quando houver expressamente interesses de incapazes”.
Mas ele ficou vencido, e o texto foi enviado ao Senado em setembro de 2016. Lá, a tramitação foi mais rápida, depois da aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça.

*Título corrigido às 22h
Pedro Canário é editor da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 8 de dezembro de 2017, 17h46
https://www.conjur.com.br/2017-dez-08/mp-pedir-exclusao-herdeiro-sucessao-legitimidade

Separação de fato e a perda da qualidade de herdeiro (parte 1)

Por 
A questão da qualidade sucessória do cônjuge tem sido objeto de grandes controvérsias em sede doutrinária. Isso porque a redação do artigo 1.830 do Código Civil não é imune a críticas:
“Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente”.
A utilização de requisitos como a separação de fato e a culpa geram grandes embates jurídicos e são de todo criticáveis.
Recentemente, após o 1º Encontro Estadual de Juízes da Família e Sucessões do Estado de São Paulo[1], foram publicados seus diversos enunciados, entre os quais os de número 31 e 32. Ambos cuidam de interpretar o artigo 1830 do Código Civil.
“32. O direito sucessório do cônjuge sobrevivente, separado de fato até dois anos, previsto no art. 1.830 do Código Civil, cessa se, antes desse prazo de dois anos, o de cujus havia constituído união estável.
33. A partir da Emenda Constitucional 66/2010, que passou a admitir divórcio sem prazo mínimo de casamento e sem discussão de culpa, tornou-se inconstitucional a previsão do art. 1.830 do Código Civil, parte final, no sentido de que o direito sucessório do cônjuge sobrevivente poderia se estender além de dois anos da separação de fato se provado que a convivência se tornara impossível sem culpa dele. Em consequência, decorridos dois anos de separação de fato, extingue-se esse direito, sem possibilidade de prorrogação”.
A partir da indagação de meus interessados e sempre inteligentes alunos de graduação e da leitura dos enunciados, resolvi escrever as presentes linhas.
1. Nota histórica
Com relação à situação sucessória do cônjuge, previa o Código Civil brasileiro de 1916 de maneira singela que:
“Art. 1.611 - A falta de descendentes ou ascendentes será deferida a sucessão ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estava dissolvida a sociedade conjugal”.
Na redação original de 1916, utilizava-se a expressão “não estavam desquitados”. No projeto de Beviláqua, o termo era “não divorciado”, e no projeto da Câmara dos Deputados, o termo era “se com ele coabitar”.
Nota-se que “divorciado”, segundo o instituto da época, significaria dissolução da sociedade conjugal. Desquite era o que punha fim à sociedade conjugal. Já o termo coabitar era mais amplo: bastaria a separação de fato do casal.
A opção do Código Civil de 1916, desde sua origem, era apenas retirar a qualidade de herdeiro se houvesse o fim da sociedade conjugal. Não se optou pela simples separação de fato como causa da perda da qualidade de herdeiro, razão pela qual utilizava-se “desquite” e depois separação judicial.
A opção de Beviláqua é elogiada por João Luiz Alves em aberta crítica à escolha das Ordenações: “Melhor satisfaz aos princípios jurídicos porque a exigência para excluir da sucessão deve ser a separação judicial de corpos e de bens entre os cônjuges por ocasião da morte do cônjuge sucedendo e não a do simples fato material da não coabitação que a Ordenação definia como fato de não viverem os cônjuges em casa teúda e manteúda como marido e mulher”[2].
A escolha tem lógica à luz de um sistema que opta por segurança jurídica. A separação de fato, a não coabitação, a não convivência more uxorio, exige prova fática, pode ser motivo de controvérsia. Já o desquite ou a separação judicial se comprovam por sentença. Evitam-se controvérsias. Rompe-se com o sistema das Ordenações, portanto.
Em suma pela regra do Código Civil de 1916, a perda da qualidade de herdeiro ocorria com o desquite ou a separação judicial (que punham fim à sociedade conjugal), bem como com o divórcio (extinção da sociedade e do vínculo conjugal).
2. O Código Civil de 2002
O Código Civil de 2002, em seu artigo 1.830, dispõe:
“Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente”.
A regra trazida em 2002 resgata a tradição das Ordenações que havia sido banida pelo Código Civil de 1916. A opção do legislador foi por excluir a qualidade de herdeiro do cônjuge nas seguintes hipóteses: i) se o cônjuge estava divorciado, pois nessa hipótese é ex-cônjuge (por isso o artigo 1.830 não fez essa menção); ii) se estava separado judicialmente (ou desquitados na terminologia original do CC/16); e iii) se não estavam separados de fato há mais de dois anos (ou sem a coabitação, sem viver na mesma casa, nos termos de Teixeira de Freitas, ou em casa teúda e manteúda, como previam as Ordenações).
Curiosamente, a separação de fato por menos de dois anos não retira a qualidade de herdeiro. A razão de ser desse prazo será logo mais explicada. Entretanto, o Código Civil de 2002 prossegue ao determinar que, mesmo com a separação de fato há mais de dois anos, o cônjuge mantém a qualidade de herdeiro se a convivência se “tornara impossível sem culpa do sobrevivente”.
Em suma, não só o Código Civil de 2002 abandona o modelo de segurança jurídica adotado pelo Código Civil de 2002, como reintroduz no sistema a culpa mortuária presente, segundo a doutrina, na interpretação das Ordenações Filipinas.
As críticas à introdução (ou reintrodução) da culpa em matéria sucessória são diversas e contundentes. Uma, apenas, merece nota: a questão de sua prova. A prova da culpa mortuária é totalmente absurda se se imaginar que o viúvo ou a viúva litigará com os herdeiros em desigualdade de condições, pois os últimos não têm o conhecimento dos fatos que levaram à separação de fato. Imputar culpa à pessoa que não pode se defender, porque morreu, é indesejável e não se justifica em um sistema cuja base é a responsabilidade, e não mais a culpa.
Contudo, em 2010, com a Emenda Constitucional 66, o sistema sofre um forte abalo, conforme explicaremos em nossa próxima coluna.
***
Dedico este texto aos meus alunos de graduação do 4º ano da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), que me deram a honra de ensinar e aprender!


[1] 10 de novembro de 2017.
[2] Código Civil anotado, v. 3, p. 36.
José Fernando Simão é advogado, diretor do conselho consultivo do IBDFAM e professor da Universidade de São Paulo e da Escola Paulista de Direito.
Revista Consultor Jurídico, 26 de novembro de 2017, 8h00
https://www.conjur.com.br/2017-nov-26/processo-familiar-separacao-fato-perda-qualidade-herdeiro-parte

Separação de fato e a perda da qualidade de herdeiro (parte 2)

Por 
Na presente coluna, prosseguimos nossas reflexões, iniciadas em coluna anterior, a respeito do artigo 1.830 do Código Civil, que assim dispõe:
“Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente”.
3. O Código Civil de 2002 após a Emenda Constitucional 66/2010
O dispositivo deve ser relido a partir de 2010 com a alteração da Constituição da República pela Emenda 66/2010. A emenda alterou o parágrafo 6º do artigo 226, que passou a ter a seguinte redação: “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”.
Não há mais menção à separação judicial, que era o locus natural para se discutir culpa. Essa alteração constitucional significou o banimento da culpa do sistema brasileiro para fins de debate da conjugalidade. O casamento acaba por falta de comunhão plena de vidas (artigo 1.511 do CC), e não por culpa dos cônjuges. O modelo da culpa foi substituído pelo do afeto. Por essa razão, o artigo 1.830 deve ter nova leitura, nova interpretação, retirando-se qualquer menção à culpa em matéria sucessória.
Também o prazo de separação de fato, de dois anos, não mais subsiste. Esse prazo tinha relação direta com a redação do artigo 226, parágrafo 6º da Constituição, que o exigia como mínimo para a possibilidade de divórcio direto[1]. A explicação está no próprio trâmite legislativo do Código Civil de 2002. O então projeto de Código Civil previa que o prazo para perda da qualidade de herdeiro era de cinco anos de separação de fato. A emenda 473-R, do senador Josapha Marinho, reduziu para dois anos, sob o seguinte fundamento[2]:
“Consoante o artigo, ‘somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente, se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de cinco anos’... Mas, se a Constituição estabelece que “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos” (art. 226, § 6º) – não há razão de fixar-se prazo de cinco anos para reconhecimento de direito sucessório”.
Seguindo a lógica em questão, se atualmente a Constituição da República não mais exige prazos para o divórcio, não mais há prazos para a perda da qualidade de herdeiro, bastando a separação de fato.
A leitura que se deve fazer do artigo 1.830, após a Emenda 66/10, é a seguinte: “Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato”.
Em suma, basta que não mais convivam como se casados fossem em razão do fim da comunhão de vidas.
Assim, sobram críticas aos enunciados 31 e 32, aprovados pelos juízes de Família e Sucessões de São Paulo.
O Enunciado 32 traz algo totalmente ilógico: que a perda da qualidade de herdeiro do viúvo ou viúva antes dos dois anos de separação de fato ocorre se o falecido havia constituído união estável. A falta de lógica da orientação é evidente. A existência de união estável não é o fato ensejador da perda da qualidade de herdeiro, mas, sim, a separação de fato com o rompimento da convivência familiar.
Há um elemento prévio que o Enunciado 32[3] desconsidera: a necessária separação de fato para que haja união estável, e não concubinato[4]. Assim, existir ou não união estável é algo indiferente e não pode ser motivo de perda da qualidade de herdeiro, pois é consequência da real causa dessa perda: a separação de fato.
E se o de cujus teve uma união estável após a separação de fato, mas quando morreu essa união já tinha acabado? Quem seria chamado a sucessão: o cônjuge separado de fato ou quem tinha sido companheiro? Essa indagação demonstra que se confunde a causa aparente (união estável) com a causa real que é a separação de fato.
A separação de fato é razão, conforme orientação antiga e sedimentada do STJ, para o fim do regime de bens. Não se exige nem o divórcio nem a separação judicial ou extrajudicial para que o regime de bens acabe.
Em decisão recente, representando pensamento pacífico do STJ, temos a seguinte decisão:
“Nada obstante, a partir da separação de fato ou de corpos (marco final do regime de bens), os bens e direitos dos ex-consortes ficam em estado de mancomunhão - conforme salienta doutrina especializada -, formando uma massa juridicamente indivisível, indistintamente pertencente a ambos”[5].
Em idêntico sentido, temos:
“Na partilha, comunicam-se não apenas o patrimônio líquido, mas também as dívidas e os encargos existentes até o momento da separação de fato”[6].
Se a separação de fato põe fim ao regime de bens, põe fim também à qualidade de herdeiro, que é situação de natureza patrimonial.
O segundo enunciado, ou seja, o de número 33[7], confirma o equívoco do primeiro. Fala-se em abolição da culpa, mas se mantém o prazo de separação de fato de dois anos na leitura do artigo 1.830. Demonstramos o equívoco de maneira singela. Vejamos a redação original do artigo 226, parágrafo 6º da CF e sua nova redação após a Emenda 66/2010.
REDAÇÃO ORIGINAL
O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.
REDAÇÃO APÓS A EMENDA 66
O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio
Em suma, em nossa opinião, ambos os enunciados não partem da premissa correta: o 32, porque traz o elemento união estável, estranho à lei, bem como à doutrina, para estabelecer a perda da qualidade de herdeiro; e o 33, por não abolir o prazo de dois anos de separação de fato em consonância à Emenda 66/2010. A Emenda 66 suprimiu o prazo de dois anos como requisito do divórcio direto. Assim, o Enunciado 33 mantém requisito temporal não mais exigido pela Constituição.
A leitura atual do artigo 1830, considerando-se ainda a possibilidade de separação extrajudicial, além da judicial[8], é a seguinte:
“Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicial ou extrajudicialmente, nem separados de fato”.
Regra idêntica se aplica à união estável por força da decisão do STF no Recurso Extraordinário 878.694.


[1] "Art. 226, par. 6º - O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos”.
[2] www.senado.gov.br/publicacoes/MLCC/pdf/mlcc_v3_ed1.pdf.
[3] 32. O direito sucessório do cônjuge sobrevivente, separado de fato até dois anos, previsto no art. 1.830 do Código Civil, cessa se, antes desse prazo de dois anos, o de cujus havia constituído união estável.
[4] Ver artigos 1.723, parágrafo 1º e 1.727 do Código Civil.
[5] REsp 1.274.639/SP, rel. ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 12/9/2017, DJe 23/10/2017.
[6] REsp 1.477.937/MG, rel. ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 27/4/2017, DJe 20/6/2017.
[7] 33. A partir da Emenda Constitucional 66/2010, que passou a admitir divórcio sem prazo mínimo de casamento e sem discussão de culpa, tornou-se inconstitucional a previsão do art. 1.830 do Código Civil, parte final, no sentido de que o direito sucessório do cônjuge sobrevivente poderia se estender além de dois anos da separação de fato se provado que a convivência se tornara impossível sem culpa dele. Em consequência, decorridos dois anos de separação de fato, extingue-se esse direito, sem possibilidade de prorrogação.
[8] Isso para os separados de direito antes da Emenda 66/10. Depois da emenda, a separação judicial e a extrajudicial foram abolidas do sistema brasileiro.
José Fernando Simão é advogado, diretor do conselho consultivo do IBDFAM e professor da Universidade de São Paulo e da Escola Paulista de Direito.
Revista Consultor Jurídico, 10 de dezembro de 2017, 8h00
https://www.conjur.com.br/2017-dez-10/processo-familiar-separacao-fato-perda-qualidade-herdeiro-parte

Cônjuge que esvazia conta antes de divórcio comete crime contra o patrimônio

Por 
Cônjuge que esvazia conta bancária meses antes de iniciar um divórcio litigioso, deixando o companheiro em situação de vulnerabilidade, comete crime contra o patrimônio, e sua conduta deve ser apurada pela polícia. Com esse entendimento, a 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo negou pedido de Habeas Corpus impetrado por um homem que queria se ver livre de inquérito aberto a pedido de um juiz.
Segundo o processo, em setembro de 2014, o homem fez dois saques da conta bancária, um de R$ 8,9 milhões, e outro de R$ 10,4 milhões. Todo o dinheiro fazia parte de um prêmio da loteria federal de R$ 20 milhões que ele e a mulher haviam ganhado.
Meses depois, o casal decidiu se separar, dando início a uma ação de divórcio. No entanto, como todo esse patrimônio simplesmente sumiu, a mulher passou a viver em dificuldades. Diante do impasse para resolver a partilha, o juízo de Direito da Vara da Família e das Sucessões da Comarca de Itu (SP) pediu a abertura de inquérito policial para investigar possível crime contra o patrimônio praticado pelo ex-marido.
O homem então tentou trancar o inquérito, alegando que o ato seria manifestamente ilegal, pois, segundo o artigo 181, I, do Código Penal, está isento de pena o cônjuge que comete crime contra o patrimônio durante o casamento.
Relator do pedido de HC na ação de divórcio, o desembargador Percival Nogueira não acolheu o argumento. Segundo ele, há situações em que a norma não mais atende os fins sociais a que se destinava, podendo ser aplicado entendimento diverso.
“À época da edição do Código Penal, há mais de 70 anos, o escopo da norma era o de proteger a harmonia familiar em relação ao plano material, considerando, principalmente, que a previsão era de que a sociedade conjugal perdurava e qualquer produto de crime patrimonial cometido por um dos cônjuges permaneceria na família.”
Ainda segundo o desembargador, “é fato que naquela época a condenação de um dos cônjuges afetava diretamente o casamento, bem protegido pela imunidade penal. Noutro vértice, menos verdade não é que a literalidade da lei não mais corresponde aos anseios sociais, especialmente quando uma das partes tem a administração exclusiva do patrimônio e, com o divórcio em mente, pretende prejudicar o quinhão devido à outra, acabando com o respeito e por ferir a dignidade de seu cônjuge”.
Para Percival Nogueira, a imunidade conferida por lei não retira a eficácia da proteção dada por legislação mais recente, caso da Maria da Penha (Lei 11.340/06), que representa um avanço na luta contra a impunidade dos delitos praticados contra a mulher no convívio familiar, inclusive os de cunho patrimonial.
“A lei implementa tutela para o gênero feminino, justificada na vulnerabilidade e hipossuficiência em que se encontram as mulheres vítimas da violência familiar. E não há como desconsiderar a situação de vulnerabilidade da mulher que tem todo o patrimônio comum na posse e administração do marido.”
Como o juízo de primeiro grau não obteve informações sobre o destino dos valores, foi determinado que a investigação continue na esfera penal.
“Até aqui, após as diligências encetadas, poder-se-ia cogitar apenas que o dinheiro ‘evaporou’. Mas dinheiro não evapora”, afirmou Percival Nogueira. “Sem notícia alguma sobre o paradeiro da enorme quantia pertencente à autora, não localizada em poderio do paciente, fato que vem frustrando a partilha no divórcio, fácil concluir que o dinheiro pode estar ‘nas mãos’ (contas ou investimentos) de terceiros.”
2133912-40.2015.8.26.0000
Thiago Crepaldi é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 10 de dezembro de 2017, 8h50
https://www.conjur.com.br/2017-dez-10/esvaziar-conta-antes-divorcio-configura-crime-patrimonio

Reconhecimento de união estável com pessoa casada exige citação do cônjuge

A decisão é da 4ª turma do STJ.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

A 4ª turma do STJ cassou as decisões proferidas em uma ação de reconhecimento e dissolução de união estável com divisão de patrimônio porque um dos conviventes era casado e sua esposa não foi citada no processo. A decisão foi tomada em processo relatado pela ministra Isabel Gallotti.

A alegada união estável foi mantida entre a autora da ação e um homem em período durante o qual ele ainda era oficialmente casado. O relacionamento entre os dois terminou antes que o casamento fosse formalmente extinto por divórcio.

Além de anular todos os julgados originários, o STJ determinou a citação da ex-esposa para que ela possa exercer a ampla defesa no processo que envolve seu ex-marido e a autora da ação.

A autora, apesar de alegar que o suposto companheiro estava separado de fato, admitiu que ele não tinha deixado definitivamente o lar, passando os fins de semana em Fortaleza, e durante a semana morando com ela, em Mossoró/RN. Sustentou que a ex-esposa não teve participação na aquisição dos bens que garante fazerem parte de seu patrimônio junto com ele.

O homem admitiu a convivência com a autora, mas afirmou tratar-se de relação de adultério, pois continuava a conviver com a esposa. Acrescentou que a partilha do patrimônio adquirido durante o casamento lesaria o direito à meação de sua ex-esposa, da qual se divorciou em 2012, após o fim do relacionamento com a autora em 2010.

Vínculo duplo

O TJ/RN, além de ter considerado possível a união estável mesmo persistindo o casamento, afirmou que essa união produziria efeitos contra terceiro não citado (a ex-esposa), titular de patrimônio em mancomunhão.

Dessa forma, o TJ confirmou a sentença que determinou a partilha de bens adquiridos na constância do vínculo conjugal com a ex-esposa, inclusive do imóvel registrado em nome dela.

A ministra Isabel Gallotti, relatora do recurso interposto no STJ pelo ex-marido, chamou atenção para o fato de não ter havido oportunidade alguma de defesa e dilação probatória da então cônjuge.

“Esta Corte Superior entende que somente quando exercida a ampla defesa de terceiro se pode admitir o reconhecimento de união estável de pessoa casada.”

Segundo ela, se a tese veiculada na contestação da ação é a de que continuou havendo convivência marital entre o homem e a então esposa, ainda que estivessem em processo de separação, “há interesse de terceiro que não pode ser negligenciado na ação, sob pena de nulidade”.

Gallotti explicou que a ex-esposa teria interesse em “aderir à defesa do réu para comprovar a manutenção da convivência conjugal, o que afastaria a possibilidade de reconhecimento da união estável, nos termos da consolidada jurisprudência deste tribunal, no sentido de que não é admissível o reconhecimento de uniões estáveis paralelas”.

O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.

Fonte: STJ

http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI270840,61044-Reconhecimento+de+uniao+estavel+com+pessoa+casada+exige+citacao+do