sábado, 30 de dezembro de 2017

Jailson queria vender um bem para um filho: ele teria que obter o consentimento dos outros filhos e da esposa? (Informativo 611 do STJ)

Publicado por Fernando Nonnenmacher

Jailson lembrou do letreiro luminoso e colorido (com fonte Comic Sans) que havia na frente do escritório de advocacia do Dr. Pimpão e resolveu consultá-lo. Afinal, pensou Jailson: “Se eu vou no dentista para prevenir cáries, eu devo também consultar o Dr. Pimpão para prevenir um rebuliço familiar”.

Quando Jailson entrou na sala do Dr. Pimpão, um terrível café lhe foi entregue pela secretária. Parecia ter sido feito na semana anterior, guardado na geladeira e requentado especialmente para ele. De qualquer sorte, a xícara era bonitinha e Jailson sequer fez cara feia.

Questionado sobre qual seria seu problema, Jailson contou pro Dr. Pimpão que constituiu, juntamente com um sócio, uma empresa, chamada de “Muita Coisa Serviços de Nadismo Ltda.”. O que esta empresa fazia? Esta empresa ensinava as pessoas a não fazerem nada. E isso era muita coisa para aqueles que não sabiam como fazer isso. Por isso, a empresa deu muito certo e cresceu.

Prosseguiu (o Jailson) explicando que, depois de criar a empresa, ele casou com a Kelem e, durante a união, eles tiveram dois filhos. Como, na época, ainda não existia aqueles sites com sugestões de nomes para filhos, Jailson e Kelem deram, ao menino, o nome de Kelson, e, à menina, o nome de Jailselem. “Nomes tão bonitos quanto o letreiro luminoso e colorido do Dr. Pimpão”, reconheceu Jailson mentalmente com um sentimento de arrependimento.

Jailson ainda contou que, mais tarde (como talvez você já saiba), ele se divorciou da Kelem, porque os dois não se entendiam sobre o modo correto de apertar a pasta de dentes (clique aqui se você não conhece essa história). Dr. Pimpão até fez um aparte e deu a sua opinião, sobre como achava ser a forma correta de apertar o tubo. Após, Jailson observou que, na partilha dos bens do casal, ele permaneceu com todas as quotas da empresa, enquanto a Kelem ficou com outros bens.

Explicou o Jailson que, depois de ajudar por muito tempo as pessoas a aprenderem a não fazer nada, queria ele próprio, agora, praticar um pouco de vácuo existencial. Por isso, queria ceder onerosamente (ou simplesmente vender) suas quotas na empresa (a parte dele na empresa) para seu filho, o Kelson, pra ele continuar a atividade, juntamente com o outro sócio. Neste rol de ideias, Jailson questionou o advogado (o Dr. Pimpão), a respeito do cuidado que deveria ter com a realização do negócio, pois estava pressentindo que poderiam ocorrer problemas por parte de sua filha, a Jailselem, e por parte de sua ex, a Kelem.

Quando Jailson parou de falar, o Dr. Pimpão notou que Jailson tinha percebido, ao olhar através do vidro da mesa transparente, que o advogado vestia, juntamente com uma camisa e uma gravata, uma bermuda, uma meia marrom e um sapato preto.

Dr. Pimpão, para estancar de uma só vez qualquer má impressão, tratou de explicar, antes de qualquer coisa, que nunca vestiu calças na vida profissional. Disse, ainda, que sempre usava bermuda, mesmo diante do juiz. Justificou ele: “Quem não poder ser surpreendido por aí com as calças curtas são meus clientes. Eu posso, e devo, em um país com terrível calor, andar de bermuda. E assim faço, na frente do juiz ou quem quer que seja”.

Após esse momento de excentricidade master-blaster do Dr. Pimpão, o advogado mudou o foco e passou a orientar o Jaílson. “Você pode realizar essa cessão onerosa de quotas ao seu filho Kelson. Porém, você deve ter o cuidado de obter, na cessão, o consentimento da sua filha Jailselem, para evitar que, mais tarde, ela possa impugnar a validade dessa cessão. Em relação a sua ex, a Kelem, não é necessário o consentimento dela, porque vocês não são mais casados”.

Dr. Pimpão gostava de falar bastante e não economizou nas explicações. Disse que, na forma do art. 496, do Código Civil de 2002, quando um pai vende algo para um filho, é necessário que a mãe (cônjuge do vendedor) e os demais filhos (os demais descendentes do vendedor) consintam expressamente com esta venda. Acrescentou, ademais, que a cessão onerosa de quotas empresariais, em que pese esse nome pomposo, nada mais é que uma compra e venda especial, que possui como objeto quotas empresariais. Por isso, a necessidade de consentimento, prevista para a compra e venda, também se aplica à cessão onerosa de quotas empresariais, consoante, inclusive, decidiu o STJ (Dr. Pimpão se referia ao julgamento do STJ no AgRg no AREsp 604.909/RJ, em 25/11/2014).

Jailson então perguntou o motivo pelo qual seria necessário esse consentimento. Dr. Pimpão explicou que a necessidade de consentimento existe pra evitar que o pai simule uma venda (faça de conta que se trata de uma venda, quando, na verdade, se trata de uma doação) e, assim, prejudique a legítima da mãe (cônjuge), bem como prejudique a legítima dos filhos (legítima aqui é a parte da herança que é devida aos herdeiros, por força de lei).

Jailson, fazendo cara de quem tinha entendido, perguntou: “E o que acontece se não houver o consentimento?”. Pimpão anotou que, não obtido o consentimento, aqueles que não consentiram poderiam pedir a anulação da venda em juízo, também nos termos do art. 496, do Código Civil.

Jailson agora já tinha captado a mensagem, como diria Rolando Lero. Pra realizar a cessão onerosa de quotas da sociedade empresária para seu filho Kelsom, precisaria do consentimento da sua filha Jailselem. Mas, porque Jailson não tinha mais cônjuge (já havia se divorciado de Kelem), não seria necessário o consentimento dela. Caso Jailson não tomasse essa cautela, a Jailselem poderia vir a pedir a anulação do negócio e estragar a festa.

Diante das explicações do Dr. Pimpão, Jailson ficou preocupado com mais uma coisinha (que, na verdade, era um coisão, mas tudo bem). Jailson explicou pro Dr. Pimpão que, alguns anos atrás, naquele período em que ainda convivia com a Kelem (e os dois discutiam frequentemente sobre o modo correto de apertar o tubo de pastas de dentes), conheceu uma moça.

Dr Pimpão, neste momento, se ajeitou na poltrona, como se já soubesse o final da história. Jailson continuou explicando que, naquele período, teve um caso com esta moça e os dois tiveram um filho. Porém, asseverou que nunca contou isso para a Kelem, porque ela era muito braba (clique aqui se você duvida da brabeza da Kelem). Ademais, informou que não reconheceu a paternidade da criança.

Nesse enredo, Jailson tinha uma dúvida. Se o filho não reconhecido ajuizasse uma investigação de paternidade e Jailson viesse a ser reconhecido como pai, ele queria saber se esse filho poderia pedir a anulação da cessão de quotas empresariais ao Kelson.

Dr Pimpão respirou, coçou o nariz, alisou os pelos que tinha nas orelhas e então orientou o Jailson. “Você não precisa se preocupar. O filho reconhecido posteriormente à cessão onerosa de quotas empresariais não poderá pedir a anulação do negócio”.

Jailson permaneceu imóvel na cadeira, com uma expressão de quem tinha revelado um grande segredo, que talvez merecesse uma orientação equivalente a um pouco mais do que seria permitido em um tweet, isto é, um pouquinho mais que 180 caracteres.

O Dr. Pimpão, percebendo a insegurança de seu cliente, referiu que, conforme decidiu o STJ, no julgamento do REsp 1.356.431-DF, em 8/8/2017 (noticiado no Informativo 611), o negócio oneroso de cessão de quotas que seria realizado para Kelson não poderia futuramente ser anulado por um outro filho que viesse a ser reconhecido posteriormente. Segundo o STJ, isso não seria possível, por força daquilo que se denomina segurança jurídica ou situação jurídica definitivamente constituída.

Diante destes caracteres adicionais e destas palavras proferidas pelo STJ, Jailson se deu por satisfeito e nada mais precisava ser dito. Alguns dias depois, Jailson perfectibilizou o negócio de cessão de quotas para seu filho Kelson, observando todas as formalidades que eram cabíveis. E o que aconteceu depois? Bom, a partir daí, Jailson passou a ser um consumidor daquilo que antes ministrava com maestria: a arte de “não fazer nada”.

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