quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Os Efeitos do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) em nosso Ordenamento Jurídico e as Controvérsias sobre sua Constitucionalidade

Publicado por Camilla T. S. Mello

Resumo

Este artigo discorre sobre as principais e recentes alterações na legislação pátria, trazidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), originado a partir dos princípios de Direitos Humanos e regido pelas normas globais de Direito Internacional e Direito Constitucional. Isto porque o estatuto em comento teve como precursora a Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência, tratado internacional sobre direitos humanos recepcionado por nosso ordenamento jurídico com força de emenda constitucional. Para tanto, serão analisados seus aspectos históricos e elementares, suas fontes formais e materiais e seus princípios. É importante consignar que as mudanças na legislação pátria trazidas com o advento do estatuto em comento ocasionaram controvérsias na jurisprudência sobre sua constitucionalidade, visto que alguns magistrados e promotores de justiça entenderam que referidas alterações violam os direitos das pessoas com deficiência ao suprimir a condição de “vulnerabilidade”, ao invés de lhes proporcionar a proteção legal que carecem. Diante dessas objeções, serão apresentadas como hipóteses de solução para o conflito entre as correntes, a hermenêutica e suas técnicas interpretativas, como importantes instrumentos de reflexão sobre a norma aos operadores de Direito que buscam conhecer, analisar e compreender, de forma irrestrita, os objetivos das mudanças trazidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência ao ordenamento jurídico pátrio, principalmente nas esferas do Direito Civil e do Direito de Família. Por fim, esse importante marco para sociedade trouxe a esperança da plena e efetiva inclusão social, assegurando às pessoas com deficiência direitos igualitários perante a sociedade, sobretudo no que concerne às suas liberdades, com base no princípio da dignidade da pessoa humana.

Palavras-Chaves: Estatuto da Pessoa com Deficiência – Direito Constitucional – Direito Internacional – Direitos Humanos – Interdição.

Abstract

This article expatiates about the main and recent alterations on the native legislation, brought by the Disabled Person Statute (Law nº 13.146/2015), originated from the principles of the Human Rights and conducted by the global norms of International Law and Constitutional Law. That because the statute in question had as a precursor the International Convention of the Disabled Person, international treaty about the human rights acknowledged by our legal ordering with constitutional amendment strength. For that, it will be analyzed it’s historical and elemental aspects, it’s formal sources, it’s materials and its principles. It is important to consign that the changes in the native legislation brought with the advent of the statute in comment have caused controversy in the jurisprudence about its constitutionality, since some magistrate and justice prosecutors understood that the referred alterations violate the disabled person rights, suppressing the condition of “vulnerability”, instead of providing the legal protection they need. In the face of this objections, there will be presented as solution hypothesis for the conflict between the branches, the hermeneutics and its interpretative techniques, as important instruments of critical considerations about the norms to the Law operators that seek to know, analyze and understand, in unrestricted form, the objectives of the changes brought by the Disabled Person Statute to the native law ordering, mainly in the areas of Civil Law and Family Law. Lastly, this important landmark brought the hope of fulsome and effective social inclusion, assuring disabled persons their equality rights in front of society, above all concerning their freedom, based on the human person dignity principle.

Keywords: Disabled Person Statute – Constitutional Law – International Law – Human Rights – Interdiction.


1 INTRODUÇÃO

O advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146/2015, com efeito, é resultado da multidisciplinariedade que envolve, em seu nascedouro, o Direito Internacional, o Direito Constitucional, os Direitos Humanos, o Direito de Família e o Direito Civil.

Tem-se, então, a raiz no Direito Internacional combinado com o Direito Constitucional e com os Direitos Humanos, porquanto está o Estatuto da Pessoa com Deficiência, de acordo com a “Convenção Sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência”, promulgada pelo Decreto nº 6.949/2009, com status equivalente ao de emenda constitucional, nos termos do art. , § 3º, da Constituição Federal.

Nesse sentido, referida Convenção Internacional, consoante seu artigo 1.º, tem o propósito de “promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais pelas pessoas com deficiência, promovendo o respeito pela sua dignidade inerente” e, nos termos de seu artigo “12.4”, assegura que os “Estados Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida”.

De igual modo, no âmbito das esferas Cível e de Família, o diploma em comento trouxe alterações significativas, principalmente no instituto da Interdição, cujo objetivo, então, passou a cingir-se tão somente às esferas patrimonial e negocial – noutras palavras, a figura do curador, superadas as fases de conhecimento e perícias, no âmbito processual, terá sua atuação limitada de acordo com a necessidade de sua intervenção, por sentença a ser proferida pelo juízo competente.

Destarte, com o advento das alterações trazidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, a incapacidade civil absoluta restou delimitada somente aos menores de 16 anos, ou seja, observando apenas o critério etário, afastando, assim, situações de deficiência de qualquer natureza e grau de manifestação, da figura de absolutamente incapaz, em conformidade com os ditames da Convenção Sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência.

A controvérsia, atualmente, tem grande repercussão na jurisprudência pátria, conforme será demonstrado mais à frente, posto que magistrados e promotoria de justiça tem entendido, em diversas situações, que a extinção da incapacidade absoluta para casos de deficiência mental severa e incurável podem trazer consequências devastadoras, tanto para a vida da pessoa com deficiência, quanto para a sociedade.

Neste interim, o objetivo desta pesquisa é trazer à tona, em sentido amplo, essa importante mudança em nosso ordenamento jurídico, bem como sua repercussão atual nos tribunais superiores, haja vista se tratar de matéria recente e suas controvérsias, por conjectura, podem ser pouco conhecidas por muitos operadores de direito, egressos ou veteranos.

Por fim, de forma intrínseca, o objetivo do artigo é a análise dos efeitos do Estatuto da Pessoa com Deficiência em nosso ordenamento jurídico, à luz da Convenção Sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, dos Direitos Humanos e do Direito Constitucional, no instituto da Interdição, sobre seus reflexos nos âmbitos familiar, patrimonial, social, afetivo e econômico das pessoas portadoras de deficiência.

2 A CONVENÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Para se compreender melhor o Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), necessária a breve análise histórica dos direitos da pessoa com deficiência, a nível das estruturas normativas globais, que assim lhe deram origem no ordenamento jurídico pátrio.

Consoante dispõe nossa Magna Carta em seu artigo 5º, § 3º: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados (...) serão equivalentes às emendas constitucionais”, incluído, por sua vez, pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004, nosso ordenamento jurídico recebeu, por meio de aprovação no Congresso Nacional, Decreto Legislativo nº 186/2008, a Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007.

Destarte, daí temos a origem do Estatuto da Pessoa com Deficiência no Direito Internacional e Constitucional, considerando que sua elaboração se baseou na Convenção Internacional em comento que, por seu turno, foi adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) por inspiração na história da construção dos direitos humanos das pessoas com deficiência.

Melhor ilustrando, nas palavras da ilustre Doutora Flávia Piovesan:
“A história da construção dos direitos humanos das pessoas com deficiência compreende quatro fases: a) uma fase de intolerância em relação às pessoas com deficiência, em que a deficiência simbolizava impureza, pecado, ou mesmo, castigo divino; b) uma fase marcada pela invisibilidade das pessoas com deficiência; c) uma terceira fase orientada por uma ótica assistencialista, pautada na perspectiva médica e biológica de que a deficiência era uma “doença a ser curada”, sendo o foco centrado no indivíduo “portador da enfermidade”; e d) finalmente uma quarta fase orientada pelo paradigma dos direitos humanos, em que emergem os direitos à inclusão social, com ênfase na relação da pessoa com deficiência e do meio em que ela se insere, bem como na necessidade de eliminar obstáculos e barreiras superáveis, sejam elas culturais, físicas ou sociais, que impeçam o pleno exercício de direitos humanos.” (PIOVESAN, 2013) -Grifo nosso.

Desta forma, em síntese, considerando os aspectos históricos e elementares, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), em seu nascedouro, surgira a partir dos princípios basilares de Direitos Humanos, trouxe significativa influência sobre os direitos civis e de família pátrios e é regido pelas normas de Direito Internacional e Constitucional.

De igual modo, corrobora com esta constatação o preâmbulo da Convenção Internacional em comento, a saber:
“Os Estados Partes da presente Convenção,
a) Relembrando os princípios consagrados na Carta das Nações Unidas, que reconhecem a dignidade e o valor inerentes e os direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana como o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,
b) Reconhecendo que as Nações Unidas, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos, proclamaram e concordaram que toda pessoa faz jus a todos os direitos e liberdades ali estabelecidos, sem distinção de qualquer espécie,
c) Reafirmando a universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e a inter-relação de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como a necessidade de garantir que todas as pessoas com deficiência os exerçam plenamente, sem discriminação,
(...)
e) Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas,
f) Reconhecendo a importância dos princípios (...) em níveis nacional, regional e internacional para possibilitar maior igualdade de oportunidades para pessoas com deficiência,
g) Ressaltando a importância de trazer questões relativas à deficiência ao centro das preocupações da sociedade como parte integrante das estratégias relevantes de desenvolvimento sustentável,
h) Reconhecendo também que a discriminação contra qualquer pessoa, por motivo de deficiência, configura violação da dignidade e do valor inerentes ao ser humano,
i) Reconhecendo ainda a diversidade das pessoas com deficiência,
j) Reconhecendo a necessidade de promover e proteger os direitos humanos de todas as pessoas com deficiência, inclusive daquelas que requerem maior apoio,
k) Preocupados com o fato de que, não obstante esses diversos instrumentos e compromissos, as pessoas com deficiência continuam a enfrentar barreiras contra sua participação como membros iguais da sociedade e violações de seus direitos humanos em todas as partes do mundo,
l) Reconhecendo a importância da cooperação internacional para melhorar as condições de vida das pessoas com deficiência em todos os países, particularmente naqueles em desenvolvimento,
m) Reconhecendo as valiosas contribuições existentes e potenciais das pessoas com deficiência ao bem-estar comum e à diversidade de suas comunidades, e que a promoção do pleno exercício, pelas pessoas com deficiência, de seus direitos humanos e liberdades fundamentais e de sua plena participação na sociedade resultará no fortalecimento de seu senso de pertencimento à sociedade e no significativo avanço do desenvolvimento humano, social e econômico da sociedade, bem como na erradicação da pobreza,
n) Reconhecendo a importância, para as pessoas com deficiência, de sua autonomia e independência individuais, inclusive da liberdade para fazer as próprias escolhas,
(...)
r) Reconhecendo que as crianças com deficiência devem gozar plenamente de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade de oportunidades com as outras crianças e relembrando as obrigações assumidas com esse fim pelos Estados Partes na Convenção sobre os Direitos da Criança,
(...)
y) Convencidos de que uma convenção internacional geral e integral para promover e proteger os direitos e a dignidade das pessoas com deficiência prestará significativa contribuição para corrigir as profundas desvantagens sociais das pessoas com deficiência e para promover sua participação na vida econômica, social e cultural, em igualdade de oportunidades, tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos” – Grifo nosso


É cediço, então, do ponto de vista sócio-histórico-cultural, com base nas severas dificuldades e desvantagens sociais enfrentadas pelos portadores de deficiência, em diversos aspectos, principalmente relativas aos preconceitos que lhes subestimam a capacidade de interagir e participar ativamente do grupo social, foram necessárias atitudes da comunidade internacional (PIOVESAN, 2013), como a criação de Convenções, com força jurídica vinculante, a fim de que os Estados-parte signatários assegurem, promovam e protejam o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, a todas as pessoas com deficiência, em respeito à sua dignidade inerente.

Com isso, nas palavras de Flávia Piovesan, “a Convenção surge como resposta da comunidade internacional à longa história de discriminação, exclusão e desumanização das pessoas com deficiência” (PIOVESAN, 2013), haja vista a mudança da perspectiva mundial sobre a pessoa com deficiência, garantindo-lhes, assim, o reconhecimento de oportunidade igualitária de busca e alcance, de seu potencial na vida pessoal e comunitária, plenamente.

Ademais, outro importante aspecto trazido pela Convenção em comento é o novo conceito de deficiência, cuja problemática em se definir, conforme a extensa e melindrosa bagagem de preconceitos e exclusão social, possibilitou uma nova visão sobre a pessoa com deficiência.

Dispõe, assim, a Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência:
“Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. ”

Com essa definição, foi suprimida a imagem da condição de deficiência, por si só, ser a responsável pelos impedimentos das pessoas delas portadoras, mas principalmente, deve-se considerar, outrossim, os aspectos externos, como o meio em que está inserida – família, comunidade, sociedade como um todo.

Nesse sentido, leciona, igualmente, a Doutora Flávia Piovesan:
“A inovação está no reconhecimento explícito de que o meio ambiente econômico e social pode ser causa ou fator de agravamento de deficiência. A própria Convenção reconhece ser a deficiência um conceito em construção, que resulta da interação de pessoas com restrições e barreiras que impedem a plena e efetiva participação na sociedade em igualdade com os demais. A deficiência deve ser vista como o resultado da interação entre indivíduos e seu meio ambiente e não como algo que reside intrinsecamente no indivíduo. ” (PIOVESAN, 2013)

Essa importante inovação desperta o sentido de reflexão acerca do papel da sociedade na inclusão das pessoas com deficiência, por meio de norma cogente que obriga o Estado, em nível global, a assegurar o exercício dos direitos inerentes à pessoa com deficiência, como vida humana, sejam efetivamente cumpridos, garantidos, protegidos, sendo de extrema e fundamental importância que os demais indivíduos da coletividade deem o espaço e o respaldo necessários às pessoas portadoras de deficiência, na integração com a vida social.

Convém destacar, outrossim, os princípios basilares da convenção internacional em comento, a saber: o respeito à dignidade, à autonomia individual para decisões, em outras palavras, “fazer suas próprias escolhas”, bem como a independência pessoal; a premissa da não discriminação e a plena e efetiva participação, no contexto da inclusão social; o respeito às diferenças e aceitação das pessoas com deficiência com parte da diversidade humana; o princípio da isonomia e a igualdade de oportunidades; a efetiva acessibilidade; a igualdade entre homens e mulheres; o devido respeito ao desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência bem como o respeito ao direito de preservação de sua identidade (PIOVESAN, 2013).

Ainda, para Flávia Piovesan, dos direitos supramencionados,
“(...) destacam-se os direitos à vida, ao igual reconhecimento perante a lei, ao acesso à justiça, à liberdade, à segurança e à integridade pessoal, à liberdade de movimento, à nacionalidade, à liberdade de expressão e opinião, ao acesso à informação, ao respeito à privacidade, à mobilidade pessoal, à educação, à saúde, ao trabalho, à participação política, à participação na vida cultural, a não ser submetido à tortura ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, a não ser submetido à exploração, abuso ou violência. ” (PIOVESAN, 2013)

Portanto, efetivamente, a Convenção Internacional, por sua força cogente e vinculante aos países dela signatários, consagra às pessoas com deficiência, o direito a toda vida humana inerente, bem como, os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, no paradigmas e perspectivas integrais dos direitos humanos.

3 O ADVENTO E OS EFEITOS DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA (EPD) NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Em continuidade à lógica adotada no tópico de desenvolvimento anterior, como introdução à melhor compreensão do Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), foi adotada a sucinta análise histórica dos direitos da pessoa com deficiência, no que concerne às estruturas normativas globais, que assim lhe deram origem, possibilitando, assim, o estudo de seus efeitos no ordenamento jurídico pátrio.

Como cediço, em suma, o EPD (Lei nº 13.146/2015) teve seu advento na Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, recepcionada por nossa Constituição, por força do art. 5º, § 3º, com status de emenda constitucional. Nestes termos, resta expresso e incontroverso o caráter supralegal da Convenção Internacional alhures narrada, noutros termos, sua constitucionalidade reconhecida de forma tácita, vinculante, cogente.

No entanto, a jurisprudência pátria, conforme será exposto mais à frente, tem divergido no sentido de analisar as considerações acerca da constitucionalidade do Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD). Isto porque, o diploma em comento trouxe alterações significativas no âmbito do Direito Civil e de Família e Sucessões, com destaque, neste artigo, aos casos concernentes ao instituto da interdição.

O advento do EPD, que difunde as premissas da Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, como alhures mencionado, promulgada por nosso ordenamento jurídico com força de emenda constitucional, suprimiu a existência da figura do “absolutamente incapaz” no tocante à deficiência mental.

Para Flávio Tartuce (2017, p. 71), “em verdade, o Estatuto da Pessoa com Deficiência gerou muitas polêmicas desde a sua entrada em vigor, especialmente diante de conflitos com o Novo Código de Processo Civil. Para tentar resolvê-las, está em trâmite no Senado Federal o Projeto de Lei 757/2015[1], que conta com o parecer e o apoio parcial deste autor”.

Isto porque, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD) alterou, essencialmente, o Código Civil vigente, posto que revogou todos os incisos do artigo e alterou os incisos II e III do artigo 4º da legislação civil pátria, cuja atual redação, in verbis:

Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
I - (Revogado); (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
II - (Revogado); (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
III - (Revogado). (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)

Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
IV - os pródigos.
Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)


Desta forma, conforme alhures mencionado e nos termos da legislação vigente, acima colacionada, com as alterações trazidas pelo EPD, atualmente, somente os menores de 16 anos são considerados, para os efeitos legais e civis, absolutamente incapazes, não havendo mais, assim, pessoas maiores absolutamente incapazes no mesmo âmbito.

Importante ressaltar que o objetivo do Estatuto em comento é, à luz das normas internacionais de direito das pessoas com deficiência, consoante os paradigmas de direitos humanos e os princípios basilares da dignidade da pessoa humana, a plena inclusão da pessoa com deficiência, sob qualquer ótica.

Por conseguinte, no que concerne ao instituto da interdição, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), em seu artigo 84, com base no princípio da inclusão social com dignidade/liberdade – herança da Convenção internacional que lhe deu origem, assegura à pessoa com deficiência o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas, de forma que, se por ventura necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, nos termos da Lei.

Ademais, a concessão de curatela em face de pessoa com deficiência constitui medida protetiva de caráter extraordinário, devendo atender, de forma proporcional, às necessidades e às particularidades de cada caso, com menor duração possível, e sua decretação afetará tão somente os atos de natureza patrimonial e negocial, nos termos do artigo 85 do EPD.

Nessa senda, consoante a disposição legal vigente, a curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto, podendo existir limitações somente aos atos patrimoniais, “e não para os existenciais, que visam a promoção da pessoa humana” (TARTUCE, 2017, p. 72).

Ademais, nesse sentido, dispõe o Código de Processo Civil, no tocante ao instituto da interdição, no caput do art. 755, e seu inciso II: “Na sentença que decretar a interdição, o juiz: considerará as características pessoais do interdito, observando suas potencialidades, habilidades, vontades e preferências”, e, adiante, em seu § 3º, parte final: “(...) constando do edital os nomes do interdito e do curador, a causa da interdição, os limites da curatela e, não sendo total a interdição, os atos que o interdito poderá praticar autonomamente”.

Diante disso, considerando que, conforme anteriormente mencionado, a interdição constitui medida extraordinária, para que a curatela seja deferida e delimitada, é imperioso ajuizamento de ação judicial competente e específica, nos ditames das hipóteses da nova redação do artigo do Código Civilvigente.

Tem-se, assim, que para os efeitos das inovações trazidas pelo EPD ao ordenamento jurídico pátrio, no concernente aos absolutamente incapazes – caracterizados exclusivamente dentro do critério etário, estarão os atos condicionados à representação, sob pena de nulidade absoluta, e, com relação aos relativamente incapazes, in casu, pessoas com deficiência, a assistênciadeverá suprir a incapacidade relativa, sob pena de anulabilidade do negócio (TARTUCE, 2017, p. 72).

Importante consignar que, com o advento do EPD, “para negócios jurídicos mais complexos, de cunho patrimonial, a pessoa com deficiência poderá fazer uso da tomada de decisão apoiada” (TARTUCE, 2017, p. 922), que substituiu, no diploma vigente, a anteriormente denominada curatela especial, deferida a favor do enfermo ou portador de deficiência física, condicionada ao requerimento expresso próprio ou, na sua impossibilidade, excepcionalmente poderia ele ser formulado pelos pais, pelos tutores, pelo cônjuge, por qualquer outro parente ou pelo Ministério Público.

Por fim, além de todas as alterações e revogações, prima facie, confusas, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), em seu artigo 115, alterou o “Título IV do Livro IV da Parte Especial do Código Civil”, que passou a vigorar com a seguinte redação: “Da Tutela, da Curatela e da Tomada de Decisão Apoiada” e, desta forma, acrescentou o artigo 1.783-A no Código Civil, regulamentando os procedimentos relativos à denominada tomada de decisão apoiada, cujo objetivo é o auxílio à pessoa com deficiência nos atos de celebração mais complexos.

Quanto ao procedimento de tomada de decisão apoiada, na explicação didática do ilustre doutrinador, Flávio Tartuce:
“De início, conforme o caput da norma, a tomada de decisão apoiada é o processo judicial pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos duas pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade. A este autor parece que a tomada de decisão apoiada tem a função de trazer acréscimos ao antigo regime de incapacidades dos maiores, sustentado pela representação, pela assistência e pela curatela. ” (TARTUCE, 2017, p. 941)

Ademais, são notórias as inovações e controversos os efeitos que o Estatuto da Pessoa com Deficiência trouxe ao nosso ordenamento jurídico, de forma que, consequentemente, desafia os aplicadores e intérpretes do Direito Privado no exercício de suas atribuições, principalmente no que concerne à sua compatibilidade com as novas normas processuais, sendo ambas legislações emergentes de maneira concomitante, o que causa, inevitavelmente, desconforto e sentido confuso à sua aplicabilidade e interpretação.

Destarte, por ora, compreendidas as principais alterações do Estatuto da Pessoa com Deficiência, em consonância com as normas de direito internacional que originaram sua elaboração e promulgação no ordenamento jurídico pátrio, necessárias as considerações, a seguir, das controvérsias acerca do EPD no ordenamento jurídico, bem como sobre sua constitucionalidade.

4 AS CONTROVÉRSIAS ACERCA DA CONSTITUCIONALIDADE DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA (EPD)

Com base em todo o contexto, até o momento, é perceptível que as controvérsias advêm da confusão decorrente das múltiplas alterações no ordenamento jurídico, em razão da alhures mencionada multidisciplinariedade do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que envolve as searas de Direito Internacional, Direito Constitucional, Direitos Humanos, Direito Civil e Direito de Família.

Não obstante, para Tartuce (2017, p. 71), “houve uma verdadeira revolução na teoria das incapacidades”, trazidas pela Convenção Internacional e com o advento do EPD, ao ordenamento jurídico pátrio, sob uma nova ótica das deficiências e dos direitos humanos inerentes a toda forma de vida humana.

Nessa senda, não há que se falar, pois, em inconstitucionalidade do EPD, posto que, a nível mundial, a Convenção originária do diploma em comento fora aprovada pela comunidade internacional, da qual é o Brasil signatário, e possui força cogente e vinculante, não permitindo que, assim, seja nosso ordenamento jurídico contrário às disposições impostas pelo diploma internacional de direitos humanos.

Isto porque, no respeitável entendimento de magistrados, promotores de justiça e operadores de direito, a extinção da incapacidade absoluta para casos de deficiência mental severa e incurável podem trazer consequências devastadoras, tanto para a vida da pessoa com deficiência, quanto para a sociedade.

Lado outro, consideram, também, presumida a exclusão da proteção de tais pessoas como indivíduos vulneráveis, ou, nas palavras de Tartuce (2017, p. 71), “a dignidade-liberdade substitui a dignidade-vulnerabilidade, pois, nesta lógica, todas as pessoas com deficiência que, anteriormente, eram consideradas absolutamente incapazes, atualmente, infere-se, passaram a ser consideradas relativamente capazes para as práticas da vida civil.

Entretanto, os tribunais singulares divergem na interpretação das disposições trazidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, conforme é possível verificar nos recentes julgados dos tribunais superiores, cujas ementas seguem a seguir colacionadas:

01. “AÇÃO DE INTERDIÇÃO - ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE - ARTIGOS 84, CAPUT, § 3º E ARTIGO 85, §§ 1º E DA LEI 13.146/2015 (ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA) - CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA - PROMULGAÇÃO PELO DECRETO 6.949/2009 - STATUS DE EMENDA CONSTITUCIONAL - ARTIGO , § 3º DA CR/88 - VÍCIO INEXISTENTE - INCAPACIDADE DO INTERDITANDO - AUSÊNCIA DE CONTROVÉRSIA - INTERDIÇÃO DECLARADA PARA OS ATOS DE NATUREZA PATRIMONIAL E NEGOCIAL - SENTENÇA MANTIDA. 1. Não prospera a arguição de inconstitucionalidade dos artigos 84, "caput" e seu § 3º, e 85, §§ 1º e , ambos da Lei 13.146/2015 - Estatuto da Pessoa com Deficiência, segundo os quais pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas, e a curatela é medida extraordinária e restrita aos atos de natureza patrimonial e negocial, previsão esta em perfeita sintonia com os ditames da Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pelo Decreto nº 6.949/2009, com status equivalente ao de emenda constitucional, nos termos do artigo , § 3º, da Constituição Federal. 2.Restando incontroversa a incapacidade do interditando, deve ser mantida a sentença que declarou sua interdição para os atos de natureza patrimonial e negocial, nos termos do artigo 85, § 1º da Lei 13.145/2015. ”
(TJ-MG - AC: 10000170109227001 MG, Relator: Afrânio Vilela, Data de Julgamento: 06/08/0017, Câmaras Cíveis / 2ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 10/08/2017)

02. “AÇÃO DE INTERDIÇÃO. DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 114, DA LEI Nº 13.146/15. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. INTERDIÇÃO ABSOLUTA. REFORMA DA SENTENÇA. AUSÊNCIA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ADEQUAÇÃO DA LEI À CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. STATUS CONSTITUCIONAL. INCAPACIDADE RELATIVA. ART. , III, CC. ATUAÇÃO DA CURADORA QUANTO AOS DIREITOS DE NATUREZA PATRIMONIAL E NEGOCIAL. APELAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PROVIDA. 1. A sentença declarou, incidentalmente, a inconstitucionalidade parcial do art. 114, da Lei nº 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e decretou a interdição absoluta da apelada. 2. Recurso do Ministério Público. Hipótese de provimento. 3. A Lei nº 13.146/15, no que tange ao estabelecimento da incapacidade relativa para os portadores de deficiência, está em conformidade com a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pelo Decreto nº 6.949/2009, e com status equivalente ao de emenda constitucional (art. , § 3º, CF). 4. Interditanda tem 91 anos, é portadora de doença mental, de prognóstico incurável, e não exprime nenhum pensamento, nem vontade. 5. Reforma da r. sentença para afastar a declaração incidental de inconstitucionalidade, decretar a interdição nos termos do art. 114, da Lei nº 13.146/15 e do art. , III, CC, bem como para manter a nomeação da curadora, que poderá praticar os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, conforme art. 85, da Lei nº 13.146/15. 6. Apelação do Ministério Público provida. ”
(TJ-SP - APL: 10037659420158260564 SP 1003765-94.2015.8.26.0564, Relator: Alexandre Lazzarini, Data de Julgamento: 14/03/2017, 9ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/03/2017)

03. “DIREITO CONSTITUCIONAL - DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE ARTIGOS DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA - LEI 13.146/15 - E DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 - ARTIGOS 84, "CAPUT" E SEU § 3º, E 85, §§ 1º E , AMBOS DA LEI 13.146/2015, E AINDA DO ART. , INCISO III, DO CÓDIGO CIVIL, ALTERADO PELA LEI MENCIONADA - PRINCÍPIO DA RESERVA DE PLENÁRIO - SUBMISSÃO DA MATÉRIA AO ÓRGÃO ESPECIAL. - Diante do princípio da reserva de plenário insculpido no art. 97 da Constituição Federal, a questão da inconstitucionalidade de artigos do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) e do Código Civil, deve ser submetida ao Órgão Especial, nos termos do art. 33, I, c, do Regimento Interno deste Tribunal. - Suscitaram incidente de inconstitucionalidade. ”
(TJ-MG - AC: 10000170344196001 MG, Relator: Ana Paula Caixeta, Data de Julgamento: 25/07/0017, Câmaras Cíveis / 4ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 27/07/2017)

04. “APELAÇÃO CÍVEL - PORTADORA DE EPILEPSIA GRAVE COM CONFUSÃO MENTAL SEVERA- CURATELA - INOVAÇÕES TRAZIDAS PELO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA - CONVENÇÃO DA ONU SOBRE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA - STATUS DE EMENDA CONSTITUCIONAL - MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO PLENA E EFETIVA NA SOCIEDADE - PRECEDENTE DO COL. STF- DEFINIÇÃO PREPONDERANTEMENTE SOCIAL - ARTIGOS 84, "CAPUT" E SEU § 3º, E 85, §§ 1º E 2º, AMBOS DA LEI 13.146/2015, E DO ARTIGO , INCISO III, DO CÓDIGO CIVIL - INCONSTITUCIONALIDADE - REJEIÇÃO - RECURSO DESPROVIDO. 1 - O conceito de pessoa com deficiência veiculado pela Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência assinada em Nova York em 30 de março de 2007 e aprovado pelo Congresso por meio do Decreto Legislativo n. 186, de 9 de julho de 2008, em observância ao procedimento estabelecido pelo parágrafo 3º, do art. , da CF/88, goza do status de emenda constitucional. 2 - Acerca do conceito de pessoa com deficiência prepondera, contemporaneamente, o modelo social, devendo os dados médicos ser utilizados para definir compreender suas necessidades, bem como os mecanismos de integração que deverão ser adotados. 3 - Diante das inovações trazidas pela Lei Federal nº 13.146/2015, que instituiu o Estatuto da Pessoa Com Deficiência, a pessoa com deficiência poderá ser submetida a curatela, cujos limites deverão respeitar, na medida do possível, a manifestação do livre desenvolvimento e de vida do curatelado, numa clara superação ao "modelo médico da abordagem da situação das pessoas com deficiência" para dar lugar a uma abordagem social, inclusiva. Precedente do col. STF. 4 - A disciplina dada ao instituto da curatela pela Lei Federal nº 13.146/2015, destina-se à ampliação do espectro de direitos e garantias fundamentais inerentes aos portadores de deficiência mental, não havendo incompatibilidade com o Texto Constitucional. 5 - Recurso desprovido. ”
(TJ-MG - AC: 10133150029006001 MG, Relator: Sandra Fonseca, Data de Julgamento: 26/09/2017, Câmaras Cíveis / 6ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 06/10/2017)

05. “CIVIL E CONSTITUCIONAL. AÇÃO DE INTERDIÇÃO. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. ALTERAÇÃO E REVOGAÇÃO DE DISPOSITIVOS DO CÓDIGO CIVIL. INCAPACIDADES ABSOLUTA E RELATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE AFASTADA. CURATELADA COM QUADRO PROGRESSIVO E INCURÁVEL DE DEMÊNCIA PÓS-AVC. IMPOSSIBILIDADE DE ENTENDER, CONSENTIR E EXPRESSAR SUA VONTADE. INSTITUIÇÃO DE CURATELA. EXTENSÃO DA MEDIDA. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. - O Estatuto da Pessoa com Deficiência inaugurou nova realidade no ordenamento jurídico, com modificações que precisam ser debatidas, assimiladas e aplicadas, e não extirpadas sob a pecha de inconstitucionalidade. A legislação parece conter mais lacunas do que ser inconstitucional, sendo necessário que o intérprete a elas se adapte e construa interpretação que possa aproveitar o seu conteúdo. - Embora as alterações operadas pelo Estatuto no Código Civil possam trazer algumas indagações e perplexidades, há dispositivos legais que permitem graduar a extensão da curatela, e, assim, proteger de forma eficaz a individualidade, a dignidade e os direitos daqueles que, como a autora, não podem exprimir sua vontade. ”
(TJ-MG - AC: 10701160046986001 MG, Relator: Alberto Vilas Boas, Data de Julgamento: 26/09/2017, Câmaras Cíveis / 1ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 04/10/2017)

Da leitura das ementas retro, percebe-se a recorrente incidência de recursos que versam sobre a matéria ventilada neste momento, qual seja, a inconstitucionalidade de dispositivos do Estatuto da Pessoa com Deficiência. No entanto, igualmente, percebe-se que os iminentes relatores têm, em sua maioria, seguido a corrente majoritária de constitucionalidade do diploma em comento, não obstante as contumazes suscitações de inconstitucionalidade em sede de recurso às instâncias superiores.

Entretanto, conforme bem observado pelo ilustre doutrinador Flávio Tartuce (2017, p. 77), “(...) na opinião deste autor, parece ter havido mais um sério cochilo do legislador, que acabou por atropelar uma lei por outra”, e, mais adiante:
“(...) curioso perceber que a recente Lei 13.146/2015, que instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência, alterou artigos do Código Civil sobre a matéria. Todavia, alguns desses dispositivos foram revogados pelo Código Civil, em um verdadeiro cochilo do legislador que gerou o atropelamento de uma norma jurídica por outra, sem as devidas ressalvas. Esperamos que essas imprecisões sejam corrigidas no futuro, por meio do citado Projeto 757, em curso no Senado Federal. ” (TARTUCE, 2017, p. 921)

Isto porque, insta ressaltar, conforme será sintetizado em momento oportuno, apesar da repercutida confusão causada pelas novas redações do Código Civilvigente e as inovações trazidas pela Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência ao nosso ordenamento jurídico, as Normas de Direito Brasileiro, bem como as lições de introdução basilares à formação dos operadores de direito, incitam a utilização da hermenêutica na aplicação da legislação brasileira vigente.

5 O PAPEL DA HERMENÊUTICA NA SOLUÇÃO DAS CONTROVÉRSIAS

Num primeiro momento, se percebe que as controvérsias da jurisprudência pátria, acerca da constitucionalidade das normas contidas no Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), bem como as respectivas mudanças trazidas ao nosso ordenamento jurídico, advém da interpretação literal do texto de lei, o que, decerto, há que se questionar nesse momento.

Isto porque, insta salientar, no campo da Ciência Jurídica, a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB) permite, ao operador de direito, o uso da hermenêutica para preenchimento das lacunas, mais especificamente em seu art. 4º: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”, e, ato contínuo, em seu art. 5º: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Nessa lógica, Leciona Maria Helena Diniz:
“É a hermenêutica que contém regras bem ordenadas que fixam os critérios e princípios que deverão nortear a interpretação. A hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar, mas não esgota o campo da interpretação jurídica, por sem apenas um instrumento para sua realização” (DINIZ, 2003, p. 418)

No entanto, a omissão, por sua vez, pode ser interpretada como a ausência do rol taxativo ou exemplificativo de situações a serem tratadas de forma especial e individual, como, in casu, os tipos e graus de deficiência, que, hodiernamente, encontra-se em fase de regulamentação, conforme alhures mencionado, por meio do Projeto de Lei nº 757/2015, em trâmite no Senado Federal.

Nesse sentido, por ora, pode o magistrado, com fulcro em laudos periciais e estudos biopsicossociais do interditando, não havendo a regulamentação específica em Lei, delimitar a incapacidade relativa de cada indivíduo com base nos aspectos biopsicossociais, utilizando, para tanto, da hermenêutica.

Desta forma, é possível perceber que, não obstante as suscitações de inconstitucionalidade sob a escusa de que a supressão da incapacidade absoluta dá margem ao abandono de incapazes, a Lei define expressamente que o juiz pode, dentro das limitações de cada indivíduo, fixar os limites da curatela, considerando, acima de tudo, as características pessoais do interdito, e observando suas potencialidades, habilidades, vontades e preferências, sendo que, na ausência de capacidade para exprimir suas vontades e preferências, ou exercer suas potencialidades e habilidades, o juiz fará constar da sentença e tornar pública a incapacidade relativa da pessoa com deficiência e quais atos está apto ou não a praticar.

Não obstante, analisando o histórico dos direitos da pessoa com deficiência, considerados pelas Nações Unidas para a aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, alhures substanciada neste artigo, Flávia Piovesan (2013) ainda leciona que a Convenção em comento inovou ao reconhecer explicitamente que “o meio ambiente econômico e social pode ser causa ou fator de agravamento de deficiência”, destarte, reconhecendo, a própria Convenção, que a deficiência é “um conceito em construção, que resulta da interação de pessoas com restrições e barreiras que impedem a plena e efetiva participação na sociedade em igualdade com os demais”.

Desta forma, baseando-se nos paradigmas dos Direitos Humanos, somados à hermenêutica jurídica necessária para a interpretação e aplicação da Lei, as deficiências, em geral, devem ser consideradas “como o resultado da interação entre indivíduos e seu meio ambiente e não como algo que reside intrinsecamente no indivíduo”. (PIOVESAN, 2013)

Nesse ínterim, a renomada doutrinadora Maria Helena Diniz ainda leciona que:
“Ao se interpretar a norma, deve-se procurar compreendê-la em atenção aos seus fins sociais e aos valores que pretende garantir. O ato interpretativo não se resume, portanto, em simples operação mental, reduzida a meras inferências lógicas a partir das normas, pois o intérprete deve levar em conta o coeficiente axiológico e social nela contido, baseado no momento histórico em que está vivendo. Dessa forma, o intérprete, ao compreender a norma, descobrindo seu alcance e significado, refaz o caminho da “fórmula normativa” ao “ato normativo”; tendo presentes os fatos e valores dos quais a norma advém, bem como os fatos e os valores supervenientes, ele a compreende, a fim de aplicar em sua plenitude o ‘significado nela objetivado’ ” (DINIZ, 2003, p. 419).

Por conseguinte, incumbe ao intérprete e ao aplicador do direito, no processo interpretativo, seguir as orientações de várias técnicas interpretativas, dentre elas, a gramatical ou literal, a lógica, a sistemática, o histórico e sociológico ou teológico.

In casu, com base nas controvérsias geradas através da interpretação literal do texto do Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), as técnicas interpretativas recomendadas são o processo sistemático, a técnica interpretativa histórica e o processo sociológico, conceituadas, por Maria Helena Diniz, nos seguintes termos:

“O processo sistemático “é o que considera o sistema em que se insere a norma, relacionando-a com outras normas concernentes ao mesmo objeto. O sistema jurídico não se compõe de um único sistema normativo, mas de vários, que constituem um conjunto harmônico e interdependente, embora cada qual esteja fixado em seu lugar próprio. Poder-se-á até dizer que se trata de uma técnica de apresentação de atos normativos, em que o hermeneuta relaciona umas normas a outras até vislumbrar-lhes o sentido e o alcance. É preciso lembrar que uma das principais tarefas da ciência jurídica consiste exatamente em estabelecer as conexões sistemáticas existentes entre as normas (...). Deve-se, portanto, comparar o texto normativo, em exame, com outros do mesmo diploma legal ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto, pois por umas normas pode-se desvendar o sentido de outras. Examinando as normas, conjuntamente, é possível verificar o sentido de cada uma delas.

A técnica interpretativa histórica (...) baseia-se na averiguação de antecedentes da norma. Refere-se ao histórico do processo legislativo, desde o projeto de lei, sua justificativa ou exposição de motivos, emendas, aprovação e promulgação, ou às circunstâncias fáticas que a precederem e que lhe deram origem, às causas ou necessidades que induziram o órgão a elaborá-la, ou seja, às condições culturais e psicológicas sob as quais o preceito normativo surgiu (occasio legis). Como a maior parte das normas constitui a continuidade ou modificação das disposições precedentes, é bastante útil que o aplicador investigue o desenvolvimento histórico das instituições jurídicas, a fim de captar o exato significado das normas, tendo sempre em vista a razão delas (ratio legis), ou seja, os resultados que visam atingir. Essa investigação pode conduzir à descoberta do sentido e alcance da norma.

O processo sociológico ou teológico objetiva, como quer Ihering, adaptar a finalidade da norma às novas exigências sociais. Adaptação está prevista pelo art. da Lei de Introdução ao Código Civil A interpretação, como nos diz Ferrara, não é pura arte dialética, não se desenvolve como método geométrico num círculo de abstrações, mas prescruta as necessidades práticas da vida e a realidade social. O aplicador, nas palavras de Henri de Page, não deverá quedar-se surdo às exigências da vida, porque o fim da norma não deve ser a imobilização ou a cristalização da vida, e, sim, manter contato íntimo com ela, segui-la em sua evolução e a ela adaptar-se. Daí resulta, continua ele, que a norma se destina a um fim social, de que o magistrado deve participar, ao interpretar o preceito normativo. ” (DINIZ, 2003, p. 427/428)

Portanto, temos, então, que o aplicador e hermeneuta não deve cingir-se a tão somente a disposição literal do artigo de lei, mas também e principalmente, conectar-se às demais normas exigentes, para uso da analogia, quando cabível, bem como acompanhar o processo evolutivo e progressista da sociedade, levando em consideração os momentos históricos vividos, bem como as questões sociais.

Nesta senda, cabe ressaltar que as diversas técnicas interpretativas, dentre elas, alhures retro conceituadas, não devem ser aplicadas isoladamente, em outras palavras, “não se excluem reciprocamente, antes se completam”, isto porque não há hierarquia confiável entre as diversas técnicas de interpretação na teoria jurídica interpretativa, pois, tratando-se de operações distintas e sua relação de reciprocidade, “devem atuar conjuntamente” (DINIZ, 2003, p. 429).

Em apertada síntese, pois, tratam-se as técnicas jurídicas interpretativas de hipóteses de solução para as controvérsias existentes, à interpretação da Lei, função atribuída aos operadores do direito na qualidade de intérpretes do ordenamento jurídico, para uma análise fidedigna da individualidade do portador de deficiência, devendo, inexoravelmente, serem ponderados todos os aspectos de sua vida, como as consequências da condição deficiente de cada um, individualmente, posto que a deficiência se manifesta de formas diferentes, assim como cada pessoa as expressa à sua própria maneira, sem olvidar, é claro, das condições do ambiente sócio-econômico-cultural em que está inserido o indivíduo.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em primeiro lugar, importante mencionar a complexidade da matéria e a inexistência de solução legal, até o momento, para a problematização trazida neste artigo, acerca da constitucionalidade do Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Isto porque ainda está em trâmite o Projeto de Lei nº 757/2015, que visa regulamentar o Estatuto da Pessoa com Deficiência, em consonância com o Código Civil e Código de Processo Civil vigente.

Desta forma, é possível concluir que, primordialmente, deverão os diplomas legais supramencionados uniformizados e sincronizados entre si, posto que a principal fonte das controvérsias são os textos de lei omissos, divergentes e, nas palavras de Flávio Tartuce (2017, p. 77 e 921), “atropelados uns pelos outros”.

Entretanto, percebe-se que alguns tribunais superiores têm demonstrado o entendimento que a matéria é constitucional por se trata de Convenção Internacional recepcionada por nosso ordenamento jurídico com força de emenda constitucional.

Ocorre que, ao que parece, muitos operadores de Direito, egressos e veteranos, não têm acompanhado a evolução e as mudanças ocorridas em nosso ordenamento jurídico, sendo certo que, conforme a doutrina consultada, as futuras gerações de formandos em Direito terão acesso às lições doutrinárias acerca desse importante passo rumo à total e efetiva inclusão social, baseada nos princípios de direitos humanos e na premissa maior da dignidade da pessoa humana, inerente a todos os indivíduos.

Considerando que a sociedade vive constantes mudanças e transformações, decerto se deve acompanhar sua evolução e, acima de tudo, tornar possível, a todas as pessoas, portadoras de deficiência ou não, respeitadas suas particularidades e a essência de cada indivíduo, a equidade e a justa participação da vida como membros produtivos da sociedade, posto que a humanização é o primeiro passo para a conscientização acerca da isonomia inerente a todos os indivíduos, atendendo, principalmente, ao princípio da dignidade humana,

O advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, concebido sob valores sociais, morais e humanitários, é um grande passo rumo a um futuro mais justo e acolhedor, pois marca o surgimento de novas oportunidades a pessoas que, pelo preconceito e discriminação, eram consideradas inválidas por serem portadoras de deficiência que comprometa, leve ou moderadamente, suas capacidades civis que, atualmente, passaram a ser relativas.

Deste modo, o “estado vegetativo” compulsório, até pouco tempo inerente a todo e qualquer portador de deficiência, pouco a pouco, desaparecerá do senso comum, quando a conscientização, ainda que involuntária – instituída por Lei, possibilitará a todos os seres humanos a dignidade, o respeito e a liberdade aos quais faz jus, sendo direitos a toda vida humana inerentes, no despertar da esperança de um futuro melhor.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.
BRASIL. Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009. Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007.
BRASIL. Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.
BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil.
BRASIL. Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. AC: 10000170109227001 MG, Relator: Afrânio Vilela, Data de Julgamento: 06/08/0017, Câmaras Cíveis / 2ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 10/08/2017.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. AC: 10701160046986001 MG, Relator: Alberto Vilas Boas, Data de Julgamento: 26/09/2017, Câmaras Cíveis / 1ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 04/10/2017.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. AC: 10000170344196001 MG, Relator: Ana Paula Caixeta, Data de Julgamento: 25/07/2017, Câmaras Cíveis / 4ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 27/07/2017.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. AC: 10133150029006001 MG, Relator: Sandra Fonseca, Data de Julgamento: 26/09/2017, Câmaras Cíveis / 6ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 06/10/2017.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. APL: 10037659420158260564 SP 1003765-94.2015.8.26.0564, Relator: Alexandre Lazzarini, Data de Julgamento: 14/03/2017, 9ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/03/2017.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 15ª ed. – à luz da Lei n. 10.406/02. São Paulo: Saraiva, 2003.
NUNES, Rizzatto. Manual da Monografia Jurídica. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14.ª ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. Ebook
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 7. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017.


[1] Projeto de Lei do Senado nº 757, de 2015, de autoria dos Senadores Antonio Carlos Valadares (PSB/SE), Paulo Paim (PT/RS) e outros. Natureza: Norma Geral. Assunto: Social - Direitos humanos e minorias. Ementa: Altera a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), e a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), para dispor sobre a igualdade civil e o apoio às pessoas sem pleno discernimento ou que não puderem exprimir sua vontade, os limites da curatela, os efeitos e o procedimento da tomada de decisão apoiada. Explicação da Ementa: Altera o Código Civil, o Estatuto da Pessoa com Deficiência e o Código de Processo Civil para não vincular automaticamente a condição de pessoa com deficiência a qualquer presunção de incapacidade, mas garantindo que qualquer pessoa com ou sem deficiência tenha o apoio de que necessite para os atos da vida civil. Último andamento da tramitação em 11/10/2017; local: CCJ - Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania; Situação: Pronta para a pauta na comissão; Ação: Recebido, às 10h25min, o relatório da Senadora Lídice da Mata, com voto pela aprovação do Projeto, nos termos do Substitutivo que apresenta. Matéria pronta para a Pauta na Comissão. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/124251. Consulta em 24/11/2017.
https://smassistenciajuridica.jusbrasil.com.br/artigos/535620211/os-efeitos-do-estatuto-da-pessoa-com-deficiencia-lei-n-13146-2015-em-nosso-ordenamento-juridico?utm_campaign=newsletter-daily_20180117_6532&utm_medium=email&utm_source=newsletter

Retrospectiva: Principais julgados de Direito Civil de 2017

Publicado por Flávia Teixeira Ortega
(...)

4) A separação judicial continua existindo no ordenamento jurídico mesmo após a EC 66/2010

A EC 66/2010 não revogou, expressa ou tacitamente, a legislação ordinária que trata da separação judicial. STJ. 3ª Turma. REsp 1.431.370-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 15/8/2017 (Info 610). STJ. 4ª Turma. REsp 1.247.098-MS, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 14/3/2017 (Info 604).

5) Contrato de convivência não exige escritura pública

É válido, desde que escrito, o pacto de convivência formulado pelo casal no qual se opta pela adoção da regulação patrimonial da futura relação como símil (igual) ao regime de comunhão universal, ainda que não tenha sido feito por meio de escritura pública. Em outras palavras, um casal que vive (ou viverá) em união estável pode celebrar contrato de convivência dizendo que aquela relação será regida por um regime de bens igual ao regime da comunhão universal. Esse contrato, para ser válido, precisa ser feito por escrito, mas não é necessário que seja realizado por escritura pública. STJ. 3ª Turma. REsp 1.459.597-SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 1/12/2016 (Info 595).

6) Partilha dos direitos de concessão de uso para fins de moradia de imóvel público

Na dissolução de união estável, é possível a partilha dos direitos de concessão de uso para moradia de imóvel público. Ex: João e Maria viviam em união estável. No curso dessa união eles passaram a residir em uma casa pertencente ao Governo do Distrito Federal sobre o qual receberam a concessão de uso para fins de moradia. Depois de algum tempo decidem por fim à relação. Deverá haver uma partilha sobre os direitos relacionados com a concessão de uso. STJ. 4ª Turma. REsp 1.494.302-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 13/6/2017 (Info 609).

7) Legitimidade do Ministério Público para a ação de alimentos

Súmula 594-STJ: O Ministério Público tem legitimidade ativa para ajuizar ação de alimentos em proveito de criança ou adolescente independentemente do exercício do poder familiar dos pais, ou do fato de o menor se encontrar nas situações de risco descritas no art. 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ou de quaisquer outros questionamentos acerca da existência ou eficiência da Defensoria Pública na comarca. STJ. 2ª Seção. Aprovada em 25/10/2017, DJe 06/11/2017.

8) Se o filho é maior de 18 anos, mas apresenta doença mental incapacitante, seus pais têm dever de prestar alimentos, sendo a necessidade presumida

É presumida a necessidade de percepção de alimentos do portador de doença mental incapacitante, devendo ser suprida nos mesmos moldes dos alimentos prestados em razão do poder familiar, independentemente da maioridade civil do alimentado. STJ. 3ª Turma. REsp 1.642.323-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 28/3/2017 (Info 601).

9) A obrigação alimentar avoenga é complementar e subsidiária

Súmula 596-STJ: A obrigação alimentar dos avós tem natureza complementar e subsidiária, somente se configurando no caso de impossibilidade total ou parcial de seu cumprimento pelos pais. STJ. 2ª Seção. Aprovada em 08/10/2017, DJe 20/11/2017.

10) Em caso de sucessão causa mortis do companheiro deverão ser aplicadas as mesmas regras da sucessão causa mortis do cônjuge

No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a diferenciação de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no artigo 1.829 do Código Civil. STF. Plenário. RE 646721/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso e RE 878694/MG, Rel. Min. Roberto Barroso, julgados em 10/5/2017 (repercussão geral) (Info 864). STJ. 3ª Turma. REsp 1.332.773-MS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 27/6/2017 (Info 609).

Fonte: Dizer o Direito.

https://draflaviaortega.jusbrasil.com.br/noticias/534408432/retrospectiva-principais-julgados-de-direito-civil-de-2017?utm_campaign=newsletter-daily_20180110_6496&utm_medium=email&utm_source=newsletter

Minha ex nora não me deixa ver meus netos. O que devo fazer?

Publicado por Wesley P. Silveira

Aos avós existe a possibilidade jurídica de ingressar com Ação de Regulamentação de Visitas, por ser um direito expresso no nosso ordenamento jurídico, mais precisamente, no parágrafo único do art. 1.589 do Código Civil, a saber:
Art. 1.589. O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação.
Parágrafo único. O direito de visita estende-se a qualquer dos avós, a critério do juiz, observados os interesses da criança ou do adolescente. (Incluído pela Lei nº 12.398, de 2011)

Os avós podem obter a regulamentação das visitas aos seus netos liminarmente, com ou sem a prévia oitiva dos pais de seus netos, isso porque a nossa atual Constituição Federal dispõe em seu art. 227 que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, dentre outros, a convivência familiar.

Em caso de negativa injustificada por parte dos genitores, estes podem responder pela prática de Alienação Parental, estando sujeitos às consequências jurídicas por impedir o exercício do direito fundamental à convivência familiar.

Nos processos judiciais que envolvam interesses de menores, o bem estar dessas crianças e adolescentes sempre estará acima de qualquer outro interesse judicial, devendo ser preservada a integração da criança ou adolescente no núcleo familiar.

Quem é detentor do conhecimento técnico-jurídico sabe que não existe ex sogra/sogro ou ex nora/genro por força do artigo 1.595do Código Civil, que trata da relação de parentesco civil por afinidade, a qual não se encerra com o fim do casamento ou da união estável.

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Renovação sucessiva de aluguel autoriza rescisão imotivada?

Publicado por Lorena Lucena Tôrres

A renovação sucessiva de contrato de aluguel urbano não permite a rescisão imotivada, também chamada de denúncia vazia, definida pelo artigo 46 da Lei do Inquilinato: "Nas locações ajustadas por escrito e por prazo igual ou superior a trinta meses, a resolução do contrato ocorrerá findo o prazo estipulado, independentemente de notificação ou aviso". Isso porque a legislação não permite a adição de tempo nessa situação.

Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu recurso de um inquilino e julgou improcedente a ação de despejo movida pelo proprietário. O dono do imóvel pretendia retomar o bem com base em denúncia vazia porque os 30 meses de locação já tinham terminado. Desse total, seis meses se referem ao contrato original, e o restante, a dois aditivos de um ano cada.

Em primeira e segunda instâncias, o pedido do proprietário para rescindir o contrato sem justificativa foi julgado procedente. Para o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a soma do período original do contrato mais as duas prorrogações seria suficiente para atender à legislação vigente e permitir a denúncia vazia.

A lei é clara sobre a necessidade do requisito temporal em um único pacto justamente para garantir a estabilidade contratual, disse Villas Bôas Cueva.

Gilmar Ferreira

Já o relator do recurso no STJ, ministro Villas Bôas Cueva, afirmou que a Lei do Inquilinato é clara ao estabelecer que o prazo de 30 meses que permite ao proprietário fazer uso da denúncia vazia deve corresponder a um único contrato.

“Fica evidente que o artigo 46 da Lei do Inquilinato somente admite a denúncia vazia se um único instrumento negocial estipular o prazo igual ou superior a 30 meses, sendo impertinente contar as sucessivas prorrogações”, disse.

O magistrado lembrou que, nos casos em que se celebra contrato por prazo inferior a 30 meses, o locador deve aguardar o prazo de cinco anos para denunciá-lo sem justificativa. Villas Bôas Cueva explicou ainda que a posição do tribunal de origem foi assentada na acessão de tempo, mas a Lei do Inquilinato, quando admite a soma de prazos em contratos prorrogados, o faz de forma expressa. No caso do contrato residencial de aluguel urbano, entretanto, tal soma é vedada.

“A lei é clara quanto à imprescindibilidade do requisito temporal em um único pacto, cujo objetivo é garantir a estabilidade contratual em favor do locatário”, concluiu o relator.

Fonte: Conjur
www.lucenatorres.adv

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Mantida decisão que revogou doação de imóveis por ingratidão de ex-mulher

Atentado contra a vida do doador, injúria grave e calúnia foram os motivos da anulação

Publicado por CERS Cursos Online

Um homem, ao se separar de sua mulher, fez a esta doações de imóveis e depósitos em dinheiro. Passado algum tempo, a mulher teria efetuado disparo de fogo em frente à casa do doador e ex-marido. Tal atitude, unida ao fato de que a mulher, em outra ocasião, compareceu à polícia para acusar o ex-marido de ter contratado seguranças para invadir sua casa, fez com que este movesse contra ela uma ação ordinária revogatória das doações.

Em sede de apelação, o TJ/PE entendeu ter havido atentado contra a vida do doador, injúria grave e calúnia, e revogou as doações. Mas a ex-esposa recorreu ao STJ. Alegou a inexistência do atentado, e que os fatos que em tese constituiriam calúnia e injúria de fato ocorreram, de modo que não haveria crime. Alegou, ainda, a impossibilidade da revogação das doações, pois estas se tratariam de e doações de caráter remuneratório pela dedicação, zelo e atenção que ela sempre dispensou ao matrimônio e filhos – não apenas aos do casal, mas também aos do primeiro casamento do doador.

O relator, ministro Marco Buzzi, reconheceu que a jurisprudência do STJ já se manifestou no sentido de que, para a revogação de doação por ingratidão, exige-se que os atos praticados sejam marcadamente graves, como os enumerados no artigo 557 do Código Civil, mas destacou a impossibilidade de rever a decisão do tribunal de origem, por força da Súmula 7 do próprio Tribunal.

“Tendo o tribunal de origem concluído pela ocorrência de atos graves, praticados pela recorrente e caracterizados como atos de ingratidão, na forma da legislação então vigente, rever tal conclusão demandaria novo exame das provas dos autos, sobretudo para investigar todas as circunstâncias envoltas nos inúmeros atritos ocorridos durante a sociedade conjugal e narrados no processo”, disse o relator.

A decisao do TJ/PE, portanto, foi mantida em sua integralidade.

Por Danilo Fernandes Christófaro

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A imposição de técnica coercitiva para assegurar o cumprimento das obrigações de pagar quantia certa

1. INTRODUÇÃO

É sabido e ressabido que o Poder Judiciário brasileiro tem encontrado severas dificuldades em conferir efetividade às suas próprias decisões, que condenam determinado jurisdicionado ao pagamento de quantia certa em detrimento de outrem.

Ocorre que, historicamente, a técnica executiva para o cumprimento dessas obrigações de pagar se dava por meio de sub-rogação, ou seja, o magistrado realiza a prestação devida no lugar da pessoa a quem incumbia fazê-la. Assim ocorre, por exemplo, com expropriação de bens, quando, logicamente dentro dos parâmetros legais, o juiz elege um bem do devedor e o afeta para pagamento da dívida.

Não obstante, no Brasil, é comum que alguns devedores queiram prolongar ao máximo o pagamento de suas dívidas, já que os juros legais e a correção monetária são baixos, o que os faz acreditarem ser melhor procrastinar a dívida e aplicar os recursos que lhe fariam frente em outros negócios "mais rentáveis". Com isso, não é incomum nos depararmos com devedores que ocultam ou blindam seu patrimônio, de tal sorte que a técnica executória direta (por sub-rogação) se torna ineficaz.

O CPC antigo não permitia o uso de medidas coercitivas para assegurar o cumprimento da obrigação de pagar quantia. Tal técnica apenas era deferida para o cumprimento das obrigações de fazer, não fazer ou entregar coisa.

Assim, de fato, o cumprimento das obrigações de pagar quantia (cumprimento de sentença ou execução) se ressentiam de maior efetividade.

No entanto, com o advento do novo código de processo civil, o artigo 139, IV expressamente consignou a possibilidade de uso das medidas coercitivas no cumprimento das obrigações de pagar e certamente assim, deu um grande passo para conferir autoridade e efetividade às decisões judiciais.

2. O USO DE MEDIDAS COERCITIVAS (EXECUÇÃO INDIRETA) COMO INSTRUMENTO QUE ASSEGURA O DIREITO FUNDAMENTAL À TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA

O direito de acesso à justiça é garantido pelo art. 5º, XXXV, o qual dispõe que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Nessa senda, a garantia de acesso à justiça não pode se condicionar somente ao fato do Poder Judiciário estar aberto ao jurisdicionado para o recebimento de protocolo da petição inicial.

O direito de ação não pode ser concebido como mera possibilidade de obtenção de um provimento jurisdicional abstrato, devendo ser compreendido, sim, como uma garantia bem mais ampla, capaz de efetivar o direito substancial. Deve ser assegurado ao jurisdicionado que sua pretensão será efetivamente julgada pelo Poder Judiciário, dentro de critérios justos e adequados.

Ora, ao ajuizar-se uma ação (FELICIANO, pg 297), “pede-se ao juiz explícita ou implicitamente mais que a condenação do réu; pede-se a efetividade da tutela”.

Ademais, art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal, no dizer de Daniel Mitidiero (2007, pg 46) passou a prever a celeridade e efetividade da tramitação processual, também, como garantias fundamentais do indivíduo, irradiando-se assim “dever ao Estado de organizar procedimentos que importem na prestação de uma tutela jurisdicional sem dilações indevidas”, passando a obrigar o Estado-legislador e o Estado-Juiz na sua realização. O mesmo doutrinador (2007, pg 67) continua a afirmar que “ainda que a concretização dos direitos fundamentais seja, em primeiro lugar, tarefa do legislador (...), a ausência de legislação infraconstitucional ou mesmo a deficiência da legislação existente autoriza o Poder Judiciário a concretizar de maneira imediata o direito fundamental à tutela jurisdiciona".

Nesse passo, é cediço que, em regra, o cumprimento das obrigações de pagar quantia deve ser implementado a partir da técnica de execução direta, por sub-rogação, pois é assim que está firmado na legislação processual. No entanto, certificada a incapacidade dessa técnica para conferir efetividade à decisão judicial, ou seja, esgotadas as tentativas sub-rogatórias sem que a obrigação de pagar seja cumprida, em respeito às garantias fundamentais antes mencionadas, deve o magistrado fazer uso de qualquer outra medida capaz de impedir que aquela determinação judicial de pagar quantia se torne letra morta.

Exatamente nesse contexto, o uso pelo juiz de medidas coercitivas para impor o cumprimento da obrigação de pagar quantia surge como uma possibilidade altamente eficaz. É que com o uso dessas medidas poder-se-á impor ao devedor um temor em não cumprir com sua obrigação de pagar, de tal sorte a repercutir-lhe consequências extremamente negativas nas mais diversas fases de sua vida.

Anteriormente, diante de uma execução, bastava o devedor não registrar patrimônio em seu nome que nada mais se podia fazer. Assim, não era incomum se deparar com grandes devedores que, apesar de não possuírem, formalmente, bens passíveis de execução, ostentavam notórios sinais de riqueza, dirigindo carros de luxo, morando em condomínios de alto padrão, viajando com contumácia, a passeio, para o exterior, entre outros. Não há como negar que a situação desse devedor era extremamente confortável.

Mas com a possibilidade do uso de medidas coercitivas a fim de conferir efetividade no cumprimento da obrigação de pagar, certamente essa zona de conforto do devedor é substancialmente afetada, pois poderá o juiz impor penalidades que incomodarão o devedor (inclusive em sua vida particular) e o compelirá a cumprir com sua obrigação, sob pena de contra ele ser efetivada a medida punitiva.

Imaginemos a hipótese daquele devedor que apesar de não possuir patrimônio aparente, sabe-se frequentar as mais badaladas e abastadas casas noturnas e que viaja com frequência a passeio para destinos não acessíveis a qualquer um (e hoje com as redes sociais isso é muito fácil de ser descoberto): frustrada uma execução por sub-rogação contra esse devedor, poderia, por exemplo, o juiz determinar a proibição, ou limitação do mesmo em frequentar as casas noturnas que tanto gosta; poderia determinar o cancelamento do passaporte do devedor; poderia determinar às companhias aéreas que somente vendessem ao devedor bilhetes aéreos mais baratos (independentemente da duração dos vôos), entre outros.

Ora, notadamente, as medidas acima mencionadas impõe ao devedor dificuldade em manter o padrão de riqueza que ostentava e assim, o compele a pagar a dívida judicialmente contemplada, sob pena de se não o fizer ter, efetivamente, aquelas medidas contra si implementadas.

Vejamos, também, o caso das instituições financeiras. Não é incomum que um banco retarde o cumprimento das obrigações de pagar quantia, pois tais instituições lucram a partir do dinheiro que têm disponíveis. É muito mais rentável ao banco atrasar o pagamento de um débito judicialmente consolidado, a juros de 1% ao mês e correção monetária e com esse dinheiro fazer aplicações mais rentáveis no próprio mercado financeiro. Assim, no momento que pagar do débito judicial, já dobrou ou triplicou aquele capital, onerando assim o credor, que precisou amargar tempo completamente desarrazoado para receber o que lhe era direito. Imaginemos, se por exemplo, o juiz, ao utilizar uma medida coercitiva, impõe ao banco, caso não pague imediatamente a dívida, multa mensal (astreintes) equivalente a 10% sobre o valor devido; certamente o banco pagaria o débito judicialmente consolidado, pois dificilmente lhe seria rentável atrasar tal pagamento.

A partir dessas ilustrações, fica demonstrado que o direito fundamental do credor em ter efetividade na prestação jurisdicional reivindicada (pagamento de quantia certa) se torna muito mais real, pois poderá, o juiz, a partir de critérios que sejam convenientes, determinar quaisquer medidas que possam causar temor, desconforto, ou mesmo prejuízo ao devedor, assegurando assim o cumprimento do obrigação de pagar, de forma célere, justa e efetiva. Ao colocar na balança a decisão entre pagar o débito executado ou sofrer com as medidas que lhe podem ser impostas, por coerção, o devedor estará mais inclinado a pagar o que deve e assim a efetividade da prestação jurisdicional estaria mais próxima.

3. A POSSIBILIDADE DE IMPOSIÇÃO DE MEDIDAS COERCITIVAS ÀS OBRIGAÇÕES DE PAGAR QUANTIA À LUZ DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

A imposição de medidas coercitivas como técnica de execução indireta decorre do princípio da atipicidade dos meios executivos. Tal princípio consiste em conceder ao juiz poderes suficientes para impor quaisquer medidas que entenda necessárias, sejam elas indutivas, coercitivas, sub-rogativas etc, para a finalidade de, preservando a autoridade da decisão judicial, possa a ela conferir efetividade. É a imposição de qualquer medida necessária ao cumprimento da obrigação.

Daniel Amorim Assumpção Neves (2015, pg 151) afirma que o princípio da atipicidade dos meios executivos não é novidade no sistema, pois o CPC/1973, §5º, antes de iniciar a enumeração dos diferentes meios de execução, se valia da expressão "tais como", em nítida demonstração do caráter exemplificativo do rol legal. O mesmo autor prossegue dizendo, entretanto, que aquele princípio se aplicava apenas às obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa, pois estava prevista apenas no capítulo do código relacionado às execuções dessa natureza.

Comungando com o entendimento acima, a jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.036.968/DF, Resp 893.484/RS), possuía bastante resistência em implementar essa técnica de execução indireta (por coerção) nas obrigações de pagar quantia certa.

De fato, a lei processual não previa expressamente essa modalidade de execução indireta para o cumprimento das obrigações de pagar quantia. Todavia, ao nosso ver, o posicionamento da jurisprudência não se justificava, pois não seria necessário muito esforço para ver que a utilização dessa técnica contra o devedor de obrigação de pagar quantia se justificava como decorrência do direito fundamental de acesso à jurisdição, quando a técnica por sub-rogação se apresentasse frustrada (tese, inclusive, defendida em monografia em minha primeira pós-graduação em direito processual civil).

Todavia, o Novo Código de Processo Civil, contrariando a jurisprudência do STJ, acertadamente, expressamente previu a possibilidade de impor medidas de cunho coercitivo nas obrigações de pagar quantia, efetivamente, institucionalizando a técnica de execução indireta para as obrigações dessa natureza.

O art. 139, IV do CPC dispõe que o juiz dirigirá o processo conforme as disposições do CPC, incumbindo-lhe "determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária".

Com este dispositivo, o princípio da atipicidade das formas executivas se consagra definitiva e expressamente para o cumprimento das obrigações de pagar quantia certa. Agora, pode o Juiz, de ofício ou a requerimento, se utilizar de todas aquelas medidas de apoio antes previstas apenas para as obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa. Nesse contexto, vale transcrever a palavras de Roberto Sampaio Contreiras de Almeida (WAMBIER, Tereza Arruda; DIDIER JR, Freddie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, 2016, pg. 452):

Como tais poderes judiciais encerram cláusula geral e diante da atipicidade de tais medidas, o juiz deve avaliar, de acordo com o caso concreto, a técnica mais adequada a ser aplicada, valendo-se do princípio da proporcionalidade, de modo que, dentre as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias, decida com base nos seguintes subprincípios apontados por Marcelo Lima Guerra ao tratar do art. 461 do CPC/1973, mas aplicáveis a técnicas processuais, em geral, de efetivação de decisões judiciais i) da adequação, no sentido de que haja a real possibilidade concreta de que o uso da medida leve ao cumprimento específico; ii)da exigibilidade, segundo o qual a medida escolhida pelo juiz deve resultar o menor prejuízo possível ao devedor, dentro do estritamente necessário para que atinja a efetivação buscada; e iii) da proporcionalidade em sentido estrito, segundo o qual o magistrado, antes de eleger a medida, sopese as vantagens e desvantagens de sua aplicação, buscando a solução que melhor atenda aos valores do conflito (Marcelo Lima Guerra. Direitos fundamentais e proteção do credor na execução civil. São Paulo: Ed RT, 2003,p127).

A transcrição retro é eloquente e define muito bem a forma como o magistrado deverá pautar sua decisão pela opção de aplicar ou não a técnica coercitiva para a execução de pagar quantia. Logicamente, percebendo o magistrado que nem mesmo uma medida coercitiva (ou qualquer outra medida) será capaz de conferir efetividade à determinada decisão judicial que obrigue alguém a pagar quantia, a medida não deve ser aplicada. Se o devedor, por exemplo, de fato, não possui patrimônio, nem aparenta tê-lo, para satisfazer o débito, então de nada adiantará impor uma medida coercitiva contra aquele devedor, isso porque as medidas coercitivas implementadas na execução indireta não possuem natureza penal, mas apenas servem como instrumento hábil (ainda que por coerção) a viabilizar o cumprimento de uma decisão judicial que, efetivamente, possa ser cumprida.

Outrossim, não podemos deixar de registrar que o magistrado poderá ser responsabilizado se houve abuso no exercício de suas funções, conforme art. 143 do CPC. Com isso, eventual medida empregada como técnica de execução indireta deve ser muito bem ponderada, para que não seja aplicada ao devedor como uma mera penalidade, pois assim, transgredir-se-ia a finalidade da norma. Desta forma, caso o juiz impusesse medida de cunho coercitivo ao devedor e lhe causasse prejuízo, sem que houvesse adequação justificada daquela medida, poderá o juiz ser responsabilizado civilmente.

4. DA POSSIBILIDADE DE IMPUTAÇÃO DO CRIME DE DESOBEDIÊNCIA, CASO O DEVEDOR DESCUMPRA MEDIDA COERCITIVA IMPOSTA

Importante destacar que o artigo 139, IV do CPC permite ao juiz se utilizar de quaisquer medidas necessárias a conferir efetividade a suas decisões, inclusive na obrigação de pagar quantia certa.

Nesse passo, é possível que para assegurar o cumprimento de uma obrigação, o juiz imponha como medida coercitiva, ao devedor, um fazer ou não fazer (Câmara, 2016). Imaginemos o seguinte exemplo: uma grande rede de supermercados procrastina há longos anos a execução de uma determinada obrigação de pagar; estando o juízo convencido da conduta atentatória dessa rede de supermercados e de sua plena condição de satisfazer o débito, impõe a mesma que faça o pagamento em quarenta e oito horas, sob pena de não o fazendo, estar proibida de abrir suas portas em determinado final de semana. Tal medida impõe à rede de supermercados, caso não pague a sua dívida, enorme prejuízo, pois sabemos que aos finais de semana o faturamento dos supermercados é elevadíssimo. Por certo, essa seria uma medida extremamente eficaz para conotar eficácia à obrigação de pagar do supermercado. Mas suponhamos que o supermercado não efetue o pagamento, então nesse caso, não poderá abrir suas portas no final de semana determinado. No entanto, se mesmo assim, ao contrário da decisão judicial e em desrespeito a mesma, abrir suas portas, estará, notadamente, cometendo crime de desobediência o responsável por aquela rede de supermercado, à luz da legislação penal.

Não se trata aqui de criminalizar o não pagamento de dívida, pois não é essa conduta que se submete ao tipo penal de desobediência. A conduta criminosa, é sim, desobedecer um mandamus do juiz, que no caso do exemplo que citamos, foi estar aberto a funcionamento em data que o juiz proibiu.

A propósito, o art. 536§3º do CPC afirma expressamente que no cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente, o executado incidirá nas penas de litigância de má-fé quando injustificadamente descumprir a ordem judicial, sem prejuízo de sua responsabilização por crime de desobediência.

Acreditamos que esse dispositivo legal, além de redundante, pois o Código Penal em seu artigo 330 já seria suficiente para subsumir a conduta de desobedecer ordem judicial ao tipo, também se aplica quando a ordem judicial não for um fazer ou não fazer decorrente de sentença, mas decorrente de qualquer decisão judicial.

Ora, o crime de desobediência tutela o respeito à Administração Pública e os juízes são servidores públicos que tanto quanto os outros (talvez até mais) precisam ter preservadas as suas autoridades. Assim, de nada adiantaria o juiz determinar um mandamento à parte e essa simplesmente se recusasse a cumprir. Além do mais, uma sentença é uma decisão judicial e não haveria sentido tutelar apenas a autoridade de uma espécie de decisão judicial. O bem maior a ser tutelado é a preservação da autoridade do próprio Poder Judiciário e suas decisões.

Com isso, entendemos que a conduta do devedor de pagar quantia, que deixa de cumprir um fazer ou não fazer imposto pelo magistrado como decorrência do uso de técnica de execução indireta, responderá pelo crime de desobediência.

Certamente com isso, traz-se mais eficácia ao cumprimento das obrigações de pagar quantia, pois o devedor, certamente ponderará, inclusive, o risco de responder pelo crime de desobediência, que poderá até não levá-lo à prisão, mas lhe acarretará uma anotação na ficha de antecedentes criminais, o que lhe trará enormes contratempos em sua vida civil.


5. CONCLUSÃO

A partir do exposto, entendemos que a inovação legislativa trazida pelo artigo 139, IV do CPC certamente trará muito mais efetividade ao cumprimento das obrigações de pagar quantia, pois o uso de técnica coercitiva, agora definitivamente institucionalizada para as obrigações mencionadas, induzirá o devedor (logicamente aqueles que possuem condições) a pagarem seus débitos, sob pena, até, de eventualmente responderem pelo crime de desobediência.

As medidas de execução indireta colocam em conflito para o devedor o seu direito patrimonial até mesmo com o direito seu de liberdade (não se está a falar de prisão, mas de outras restrições que poderá o juiz impor, como as já mencionadas neste artigo) e assim, sopesando esses direitos, acredita-se que a probabilidade do devedor optar pelo pagamento da dívida será bem maior.

Tal medida chega alinhada à garantia fundamental de acesso a uma tutela jurisdicional efetiva e, com isso, acreditamos que os processos de execução e cumprimentos de sentença das obrigações de pagar quantia serão abreviados e o sistema jurídico se tornará mais seguro a todos os jurisdicionados.

REFERÊNCIAS
CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2016.

FELICIANO, Guilherme Guimarães. O Novíssimo” Processo Civil e o Processo do Trabalho – Uma Outra Visão. Revista LTR: São Paulo, ano 71, n.º 03, março de 2007.

MITIDIERO, Daniel. Processo Civil e Estado Constitucional. Ed. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2007

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. O novo Código de Processo Civil - Lei 13.105/2015.; São Paulo: Método 2015.

WAMBIER, Tereza Arruda; DIDIER JR, Freddie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno. Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Ed Revistas dos Tribunais: São Paulo, 2015.


BARROSO, Hugo. A imposição de técnica coercitiva para assegurar o cumprimento das obrigações de pagar quantia certa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5313, 17 jan. 2018. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/58740>. Acesso em: 18 jan. 2018.